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Artigo: Vírus, comunidade e cuidado

Por Lívia Lourenço Dias e Mariana Penteado

A utilização de conceitos biológicos para analisar e descrever fenômenos sócio-culturais é cada vez mais comum. Tanto de maneira metafórica como de investigação das relações entre biologia e política, várias camadas de interpretação têm surgido quando pensamos a respeito do nosso trabalho na Casa 1.

Diante da maior incidência de alguns desses conceitos por conta da pandemia de coronavírus, resolvemos utilizar essas chaves de análise para entender aspectos do funcionamento social com os quais nos deparamos diariamente.

Pensando na atuação basal da Casa 1, que se constitui como um centro cultural e de acolhida para jovens LGBT que foram expulsos de casa, podemos observar desde o início a negação e a negligência para com essas vidas. É importante mencionar que a maior parte das pessoas que chega não está somente à procura de um local para morar, mas está destituída de “recursos institucionais organizadores da vida social (saúde, educação, moradia, trabalho, segurança, etc)”, assim como aponta Miriam Debieux Rosa em um texto sobre a escuta psicanalítica e o que nomeia como vidas secas, pessoas que padecem de um desamparo social.

O esvaziamento do direito à vida para parte da população parece mais acirrado quando olhamos para a vivência das pessoas recebidas nos serviços da Casa 1. Há uma confluência de elementos de estigma – LGBTs em sua maioria negros, pobres e periféricos – , que são utilizados como justificativas para a condição de restos e, portanto, passíveis de políticas de extermínio e combate, ou os “matáveis”, como nos aponta Paulo Endo: “os vulneráveis, excluídos, desiguais, periféricos, marginais que se tornaram os matáveis das cidades […]. São acumulados, amontoados, massificados como forma homogênea, sem singularidades, nem diferenças. E serão, por obra da violência, reduzidos ao que é mau, ruim, sujo, e repetidamente, condenados por isso.”

Viralizar e resistir

A lógica viral da circulação da informação não é uma realidade nova. Mas nos últimos anos assistimos à ampliação do recurso viral para esferas centrais como a vida política. O uso do atual governo das imagens, fake news e memes, mostra a eficácia desse estilo de comunicação para o embate público e produção de “verdades”.

As duas principais características das formas virais são o contágio e a fusão entre meio e público-alvo. A estratégia se baseia na exploração das conexões entre as pessoas para que aquela informação se auto reproduza em grande escala. O acúmulo e a reprodução exaustiva dessas unidades de informação produzem narrativas que determinam a interpretação que fazemos das situações e contribuem para a formação de estigmas.

Os enquadres geram necessariamente algo que está fora do lugar de legitimação, que está excluído. Como diria Susan Sontag, “… fotografar é enquadrar e enquadrar é excluir”. As imagens são sempre permeadas por um conjunto de sentidos históricos (corpo, gênero, raça, etc) e situacionais produzidos pelo enquadre, pela moldura.

Por conta do efeito de contágio da comunicação viral, existe a tendência a cristalizar aquele enquadre específico. Nesse sentido, faz-se necessário instigar processos de resistência, de disputa do sentido dos quadros.

Renata Carvalho, atriz, diretora, dramaturga e transpóloga afirma em uma de suas entrevistas que as travestis ainda estão lutando para serem consideradas humanas. Renata, atualmente com 38 anos, já superou a média da expectativa de vida de uma travesti no país, que é de 35 anos. As travestis encaram no corpo a vivência real do “matável” e suas existências já são por si só, um ato de resistência.

Resistir é reenquadrar. Trazer imagens, narrativas e conceitos que disputem os lugares de produção de sentido. O trabalho de comunicação da Casa 1 tem buscado a mudança do quadro. Trazendo novas vozes, novas histórias e evitando cair na lógica da viralização sem reflexão.

Comunidade e Imunidade

Embora pareçam pertencer a contextos diferentes, comunidade e imunidade possuem uma origem comum. Esposito aponta a raiz latina munus nas duas palavras, que consistia na obrigação donativa. Dessa maneira, a ideia de comunidade estaria na ligação coletiva por meio desse dever tributário, que se constituía também como oferenda, como dom. Imunidade viria da desoneração, da isenção dessas condições que são impostas aos demais membros de uma comunidade.

A noção de imunidade, portanto, antes de ser usada no campo biomédico, pertencia ao âmbito jurídico e terminou por se estender a outros campos semânticos. Existiria assim um dispositivo imunitário no contexto político-social que diferencia os indivíduos entre os imunes (que detêm o privilégio da isenção) e aqueles que são vistos pela coletividade como perigosos e são excluídos com a narrativa da proteção. A noção imunitária gera um critério classificatório que se autoriza a exercer poder diferencialmente sobre os corpos: gerindo a existência e as formas de vida dos corpos pertencentes à comunidade e exterminando os corpos que são percebidos como invasores. Não é por coincidência que as ideias políticas de criar barreiras, muros e fronteiras físicas, legais e culturais são características do nosso contexto sócio-político (qualquer semelhança com os discursos de Trump e Bolsonaro não é mera coincidência).

A percepção de certos corpos como invasores ou estranhos aparece em muitos autores que buscam dar conta dos aspectos biopolíticos da nossa sociedade.

Seguindo a tradição foucaultiana de biopoder, Butler analisa, em “Quadros de Guerra”, a ética da violência que permeia a definição de quais vidas são válidas de serem vividas e quais não.

Considerando que nos constituímos enquanto sujeitos sempre em uma cena de reconhecimento frente ao outro, por que matamos? Se é o processo de relação com a alteridade que nos condiciona à vida, como é possível aniquilar a existência de alguém? A resposta é simples: essas existências aniquiladas não podem ser consideradas como vidas. Essa ética da violência produz um conjunto de justificativas para o genocídio daqueles que não reconhecemos como importantes para nossa constituição de sujeito.

Se essas existências não são consideradas vidas, não produzem enlutamento. Como aponta Sidney Chalhoub durante entrevista ao podcast da “Ilustríssima Conversa” de abril desse ano: “a morte é uma doença social, ela não afeta de maneira igual todas as camadas da população, seja qual for a doença, ela vai se espraiar, ela vai vitimar segundo as estruturas de classe, de raça, de gênero da população.” Assim, esse “lugar de resto”, de “matável”, já mencionados anteriormente, não surge a partir de uma epidemia, mas já está em curso em nossa estrutura social e se corporifica diariamente na vida de uma parcela considerável da população.

Um exemplo contumaz dessa impossibilidade de enlutar nossos mortos eram as valas clandestinas de Perus. Um dos trabalhos que se desmembraram da iniciativa da Comissão de Anistia é o projeto “Clínicas do Testemunho Nas Margens”, que tem como objetivo oferecer reparação psíquica aos afetados pela violência do Estado durante os anos de ditadura militar no país, em regiões marginais e periféricas. O trabalho rendeu um livro que tenta mudar o foco das narrativas centradas em uma classe média intelectual e perseguida para recolocá-lo diante daqueles que sofrem incontestes violações de direitos humanos.

Segundo um dos textos que compõem a obra, nomeado “Periferia da Periferia: Testemunhos em Perus”: “Perus é a periferia da periferia da cidade de São Paulo, o que o constituía como local perfeito para abrigar tudo aquilo que o município gostaria de esconder; o cemitério de Perus foi o destino de muitos presos políticos da época da ditadura, mas também os corpos de moradores em situação de rua, crianças com meningite vítimas de um surto de saúde pública cujos números o Estado desejava maquiar e homens mortos pela polícia na chacina do Carandiru dos anos 90.”

Voltando à noção de gestão imunitária da vida, o grande problema é que se cria um sistema onde a morte é entendida como um instrumento para preservar a vida. Os corpos minoritários são apontados como ameaças, não como vidas. Assim, manchetes como “Coronavírus mata mais jovens na periferia de SP do que em bairro rico” ou “Pretos têm 62% mais chance de morrer por Covid-19 em São Paulo do que brancos” se proliferam como vírus durante a pandemia.

Extensivamente, segundo Preciado, a epidemia radicaliza e recoloca as técnicas biopolíticas dos territórios-nação para todos os corpos. Um aumento do controle e da vigilância é mais tolerado diante da justificativa da ameaça do vírus. Mas é evidente que mais uma vez os corpos imunes, pretensamente desobrigados com relação à comunidade, são aqueles privilegiados que podem erguer muros e fronteiras para seus corpos.

Este fato não está circunscrito ao COVID-19. Chalhoub, citado anteriormente, é historiador e autor do livro “Cidade Febril: Cortiços e Epidemias na Corte Imperial”, obra cuja a tônica está centrada na política higienista do século passado, que atrela o pensamento médico a ideologias políticas e por conseguinte, à execução de políticas públicas que levam em conta um ideal de embranquecimento e uma classificação das “classes pobres”, e majoritariamente negra, como “classes perigosas”, que precisam ser cada vez mais afastadas, invisibilizadas, marginalizadas. Os modos como lidamos com epidemias somente amplificam a lógica de exclusão sob narrativas de proteção.

Nesse período de isolamento na Casa 1, uma das nossas maiores preocupações foi como manter o trabalho apesar da situação da pandemia.

A experiência do contato com pessoas cujas existências não são consideradas de fato como vidas é constante no nosso trabalho. E o resgate da noção de comunidade, em contraposição à imunidade, é essencial para compreender como lidamos com as pessoas que atendemos.

Sempre entendemos que estamos em um território, que a Casa 1 tem uma existência física e material – e, portanto, um entorno. Durante esse período de pandemia, muitas pessoas nos procuraram para ajuda em diferentes frentes. Atendimento psicológico, acolhimento, busca de cestas básicas. Mas o curioso é que nos buscaram sempre para serviços que já fazíamos antes da pandemia. Já existia, portanto, a noção de comunidade, de pertencimento com relação ao nosso espaço. Isso deriva em grande parte da nossa visão das definições que provocam exclusões que ou geram extermínio ou geram a tentativa de reenquadrar esses corpos e vivências a uma norma: nossa ação nunca é higienista. Não tentamos trazer as pessoas de volta ao enquadre. Nossa intenção é sempre de mudar o enquadramento e entender esses corpos como possíveis e viventes. Isso envolve um trabalho constante, integralista, comunitário, não imunitário.

No entanto, esta tarefa não é fácil. A localização da Casa 1 traz consigo uma série de ambiguidades. Situada no centro de São Paulo, recebe predominantemente pessoas vindas da periferia da cidade ou dos interiores de um país que já é ignorado. Tal posição desvela como menciona Grada Kilomba a dor vinda das margens e que é impossibilitada de entrar no centro, visto que, após o período de permanência na moradia da Casa 1, dificilmente os jovens conseguirão manter-se em um local que cobra preços abusivos aos seus moradores, sendo rapidamente empurrados novamente às margens.

Cuidados paliativos

Uma das frentes em que atendemos a maior quantidade de pessoas é no serviço que chamamos de Paliativo. Trata-se do acolhimento a pessoas em situação de rua com distribuição de roupas e kits de higiene.

A noção de paliação dentro do contexto biomédico defende a utilização de terapêuticas de alívio ao sofrimento dos pacientes em situação grave, em contraste com as terapêuticas curativas. O objetivo dos cuidados paliativos não é sanar o problema, mas sim estabelecer uma prática de cuidado e melhoria da qualidade de vida das pessoas. Cuidado paliativo pode inclusive ser oferecido em conjunto com outros cuidados de intenção curativa.

Nesse sentido, ao mesmo tempo em que entendemos que lidamos com problemas estruturais que exigem lutas na esfera macropolítica, acreditamos que a existência das pessoas que sofrem múltiplas violências e exclusões precisa de uma ação concreta e imediata. Tendo o atendimento humanizado como um dos pilares das nossas ações, a intenção é reconhecer essas vidas e brindar o conforto possível. Ainda que nossa ação não tenha caráter resolutivo, entendemos que o acolhimento é sempre necessário. As pessoas que atendemos são vidas, possuem uma existência concreta, são corpos reais que sofrem.

Referências e sugestões de leitura

BUTLER, J. 2015. Quadros de Guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira

CHALHOUB, S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

ENDO, P. A ambivalência como problemática particular no debate entre psicanálise e política. Publicado na Revista latinoamericana de psicopatologia fundamental, ano IX, n. 3, set/2006.

ESPOSITO, R. Communitas: origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003.

FOUCAULT, M. O nascimento da biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.

KILOMBA, G. Memórias da plantação – Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

PRECIADO, P. B. Aprendiendo del virus in: Sopa de Wuhan. Pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias (S/L: ASPO), 2020

ROSA, M. D. Uma escuta psicanalítica das vidas secas. Publicado na Revista de psicanálise Textura, n. 2, ano 2002.

SONTAG, S. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das letras, 2003.

TURRIANI, A. Clínicas do Testemunho nas Margens / Anna Turriani, Anita Vaz, Kwame Yonatan, Laura Lanari, Pedro Obliziner, Victor Barão Freire Vieira. São Paulo: ISER, 2017.

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Sobre as autoras:

Lívia Lourenço Dias é psicanalista formada pelo Instituto Sedes Sapientiae. Atua nas áreas clínica e social. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde do Centro de Acolhida e Cultura Casa 1 e da Clínica Social Casa 1

Mariana Penteado é psicóloga formada pela USP. Atua nas áreas clínica e social. Colabora com o Centro de Acolhida e Cultura Casa 1 no Grupo de Trabalho de Saúde Mental e na Clínica Social

Ilustração: Bruno Oliveira

A Casa 1 é uma organização localizada na região central da cidade de São Paulo e financiada coletivamente pela sociedade civil. Sua estrutura é orgânica e está em constante ampliação, sempre explorando as interseccionalidade do universo plural da diversidade. Contamos com três frentes principais: república de acolhida para jovens LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) expulsos de casa, o Galpão Casa 1 que conta com atividades culturais e educativa e a Clínica Social Casa 1, que conta com atendimentos psicoterápicos, atendimentos médicos e terapias complementares, com foco na promoção de saúde mental, em especial da comunidade LGBT.

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