Levantamento mostra que Casa foca em restringir direitos de pessoas trans
Por Camilla Figueiredo e Paulo Malvezzi para Agência Diadorim
Em sete meses, o Senado mais que dobrou o número de projetos de lei que atacam direitos LGBTQIA+: de novembro de 2024 a junho de 2025, passaram de três para oito. Nenhuma nova proposta, no entanto, buscou ampliar a proteção dessa população.
Sete dos oito PLs seguem em tramitação — apenas um foi arquivado, o 2152/2025, sobre “definição de gênero”. Cinco foram apresentados em 2025, com foco majoritário em restringir direitos de pessoas trans. Os dados são do levantamento mais recente da Observatória, ferramenta da Agência Diadorim que monitora a atuação legislativa pró e anti-LGBTQIA+ nas assembleias estaduais e no Congresso.
Em comum, os textos — assinados pelos senadores Jorge Seif (PL-SC), Cleitinho (Republicanos-MG) e Magno Malta (PL-ES) e pelo atual governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL-SC), ex-senador — partem de uma lógica central: instituir o sexo biológico como critério absoluto para acesso a direitos e políticas públicas, além de vedar o uso de linguagem inclusiva em ambientes educacionais.
Essa ofensiva legislativa encontra terreno fértil na atual composição do Senado. Nas últimas eleições, o PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, elegeu oito senadores. Com isso, a sigla passou a ter 13 representantes, tornando-se a maior bancada partidária da Casa.
Esse fortalecimento contribuiu para a formação de uma bancada conservadora que vai além do PL, incluindo parlamentares de partidos como Republicanos e União Brasil, alinhados à extrema-direita — como a ex-ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Damares Alves, atual presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado.
Para a cientista política e professora da UFG (Universidade Federal de Goiás) Rayani Mariano, o resultado das eleições de 2022 já sinalizava essa virada: “Com o PL tendo sido o partido que mais cresceu em número de cadeiras no Senado, já traziam essa tendência de um aumento do conservadorismo nessa Casa”.
Ela destaca, no entanto, que a maioria dos projetos foi proposta por um pequeno grupo. Por isso, pondera se há indicativo de uma intensificação muito drástica do conservadorismo naquele espaço.
O cientista político Vitor Lacerda Vasquez também chama atenção para a autoria restrita: os cinco PLs com conteúdo anti-LGBTQIA+ apresentados em 2025 são de apenas dois senadores — Jorge Seif e Cleitinho — e até agora nenhum deles foi distribuído às comissões.
“O teor de um projeto é um representante fiel da preferência política de seu autor, ainda que ele nunca chegue a virar uma lei”, afirma. “Portanto, a afirmação que pode ser feita a partir desses projetos é que Jorge Seif e Cleitinho são abertamente contrários às pautas LGBTQIA+”.
Confira aqui os projetos levantados na Observatória
Sexo biológico como critério legal
Há uma retórica que se repete nos textos dos projetos propostos no Senado. Os autores justificam suas propostas com os mesmos termos: proteção à “intimidade”, à “incolumidade física” e à “norma culta da língua portuguesa”.
No PL 2199/2025, Cleitinho propõe uma definição legal de “sexo biológico” baseada em “características sexuais primárias e composição cromossômica presentes no nascimento”. O objetivo seria dar “segurança jurídica” e “estabilidade” a políticas públicas em saúde, educação e segurança.
Vitor Lacerda Vasquez aponta que esse tipo de justificativa costuma se esconder sob uma aparente neutralidade. “A diferenciação em sexo biológico garantiria o estabelecimento de um critério ‘técnico e objetivo’ de distinção”, explica.
Segundo ele, os efeitos são perversos. “Os projetos não reconhecem o pleno direito para que as pessoas se identifiquem com um gênero distinto daquele estabelecido em seu nascimento.”
Rayani Mariano concorda e afirma que os parlamentares conservadores “atuam como se gênero e as desigualdades de gênero não fossem um fato da realidade”. Para ela, essas propostas buscam mobilizar “medos e inseguranças” com objetivos eleitorais e de visibilidade política.
Banheiros, esporte e linguagem
No campo da educação, o PL 1838/2023, de Magno Malta, altera o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) para proibir que estudantes usem banheiros escolares que não correspondam ao seu sexo biológico de nascimento. O texto prevê multas e justifica que a presença de pessoas trans pode causar “constrangimento”, “danos psicológicos” e até “molestamento”.
Jorge Seif propôs dois projetos com redação idêntica que também reforçam a exclusão por sexo de nascimento. O PL 1735/2025 garante que mulheres de sexo biológico feminino tenham acesso exclusivo a banheiros e vestiários. Já o PL 1736/2025 proíbe a participação de pessoas trans em categorias esportivas femininas.
As propostas também transferem às entidades esportivas a responsabilidade por definir “padrões cromossômicos, anatômicos e hormonais” para atletas intersexo — um modelo que, segundo Vasquez, repete tendências internacionais, como um decreto recente do presidente norte-americano Donald Trump que restringe vistos para atletas trans. “Essa é uma decisão crítica, se considerarmos que os EUA serão o palco dos próximos Jogos Olímpicos”, diz.
O terceiro alvo é a linguagem inclusiva. Dois projetos — o PL 899/2023, de Jorge Seif, e o PL 2648/2021, de Jorginho Mello — propõem a proibição da linguagem neutra em salas de aula e materiais didáticos. Ambos alegam que a prática compromete o aprendizado e fere a norma culta da língua.
Na avaliação do cientista político, essas propostas restringem “formas de pertencimento e afirmação via linguagem” e reduzem a diversidade a uma binariedade artificial: “Permitem apenas dois tipos de existência — homem e mulher — e apagam a essência social da vida humana”.
Conservadorismo articulado
Apesar das diferenças temáticas, os sete projetos analisados compartilham conceitos, argumentos e, em muitos casos, trechos literais – o que indica articulação direta entre parlamentares e avanço coordenado dessa agenda legislativa.
Todos adotam o “sexo biológico” como critério absoluto. Termos como “vantagens fisiológicas irreversíveis”, “norma culta da língua portuguesa” e “intimidade da mulher” reaparecem sistematicamente.
“Há uma busca por ocupar diferentes espaços políticos pelos conservadores, e o Senado é uma casa muito importante”, avalia Rayani Mariano.
A professora lembra que o Senado, além de legislar, tem o poder de aprovar ministros do STF e julgar crimes de responsabilidade — e que o protagonismo conservador na Casa “pode trazer consequências perigosas”.
Vasquez ressalta o papel decisivo do Legislativo na consolidação dessa agenda. “Ocupar esses espaços é um ponto de partida fundamental para qualquer grupo que queira defender suas preferências políticas”, afirma. Ele alerta para o comportamento do eleitorado: “Normalmente priorizamos as escolhas para o Executivo e subjugamos as escolhas para o Legislativo. Esse é um comportamento inadequado”.
Contraponto
Na contramão do avanço conservador, o Senado também recebeu, entre 2019 e 2024, 28 projetos voltados à proteção da população LGBTQIA+.
Essas iniciativas tratam de combate à discriminação, reconhecimento de identidade de gênero, inclusão em serviços públicos e políticas de acolhimento. A maioria ainda está em tramitação — apenas uma foi aprovada até o momento: o PL 2353/2021, que proíbe a discriminação com base na orientação sexual de doadores de sangue.
Para Vitor Lacerda Vasquez, a ausência de novas propostas em 2025 não deve ser vista de forma isolada e que isso “não significa necessariamente que não existam parlamentares que lutem pelos seus interesses na Casa”. “Mais do que criar projetos, vale a pena defender aqueles que já estejam em tramitação. Uma ação política bem coordenada tende a ser muito mais efetiva do que ações individuais.”
Em 2023, por exemplo, lembra Vasquez, o Senado lançou um guia de inclusão e diversidade LGBTQIA+ e, em 2024, aprovou, através do Projeto de Lei Complementar (PLP) 150/2021 de Fabiano Contarato (PT-ES), uma lei que garante celas específicas para a comunidade LGBTQIA+.
“Meu ponto não é afirmar que nosso Senado não seja majoritariamente conservador. Pelo contrário”, destaca, reforçando que pautas contra direitos LGBTQIA+, baseadas em justificativas genéricas, mas com aderência, de defesa à ‘família’ e à ‘mulher’ serão cada vez mais frequentes nesse contexto.
“Por isso é importante nos atentarmos a quais ações podem ultrapassar a mera sinalização para o reduto eleitoral de parlamentares conservadores agindo individualmente, como até agora parece ser o caso dos PLs de 2025, e quais ações são coletivamente articuladas e podem de fato se concretizar em ataque a direitos”, afirma. “Obviamente que os dois tipos de ação incomodam, mas o segundo é mais grave e, por isso, deve receber mais atenção.”
Foto de capa: Plenário do Senado Federal durante sessão. Saulo Cruz/Agência Senado