Caetano Veloso já havia sacramentado na canção “Pecado original”: “A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo”. O refrão ecoa ao longo das 11 histórias que conduzem o segundo livro de contos de Mateus Baldi, Os anos de vidro (Editora Nós), por onde transitam personagens inquietos, incompletos e inábeis na relação com o próprio querer. Eles enfrentam, cada um à sua maneira, a hostilidade da cidade e o abismo da intimidade.
Os contos exploram afetos desviantes, tensões de classe, violências cotidianas e epifanias inesperadas. Baldi propõe uma investigação de gênero — tanto do ponto de vista literário quanto do corpo, da sexualidade e do espaço urbano. E, assim, encadeia narrativas que se revelam mais pela ausência e o não dito do que por certezas e tramas com ponto final.
Há ecos da escrita cortante de Rubem Fonseca, da ambiguidade psicológica dos romances policiais de Luiz Alfredo Garcia-Roza, da elegante fragmentação narrativa dos contos de Lygia Fagundes Telles e do fraseado heterodoxo e mordaz de Marques Rebelo. Em meio ao caos urbano, com cruzamentos inesperados, as vidas se entrelaçam silenciosamente, e ganham corpo e voz no novo livro da escritora carioca.
A obra começou a surgir em um processo criativo iniciado em 2022, quando a autora participou do evento “Vozes da diversidade”, na Universidade de Colônia, na Alemanha. Na ocasião, ela leu o conto “Cavalo” — sobre uma jovem em início de transição de gênero que, numa noite em Copacabana, vai parar no apartamento de uma prostituta e sua amiga trans.
“Jamais pude imaginar a reação dos estudantes ao fim da leitura. Eles diziam que eu tinha que levar aquilo adiante”, conta a autora. “Durante um bom tempo, ‘Cavalo’ foi o título do livro que agora sai como ‘Os anos de vidro’.”, afirma.
A estrutura é de um quebra-cabeça narrativo: há um elo de continuidade entre alguns contos, como o do roubo no sábado de carnaval planejado por dois ex-parceiros — um reencontro motivado pela gravidez e o câncer da filha de um deles — e as histórias ligadas a Marina, uma jovem em processo de transição de gênero. Mas a conexão é fragmentada e não-linear, como os romances policiais que formaram a autora.
As tramas se chocam, se entremeiam e abrem espaço para muitas leituras. São pessoas vivendo no mesmo lugar e inevitavelmente se esbarrando — em ônibus, calçadas, apartamentos, festas, consultórios, desejos. “Me interessava que elas se chocassem, mas que também dessem a ver outras existências, afinal são vidas numa cidade — e simplesmente não tem como você não cruzar, trombar, tropeçar, se deixar contaminar por tudo à sua volta.”
O conto “Uma verdade”, escrito numa madrugada dentro de um trem, entre Berlim e Frankfurt, surge como núcleo emocional da coletânea e abre o livro. “Uma mulher extrapola os limites que se oferecem à relação com outro passageiro: acho que é uma maneira de encapsular o que as personagens vivem nos contos, o tempo todo querendo se libertar de algo que muitas vezes nem sabem bem o que é” , diz a autora.
A crítica literária Beatriz Resende assina a orelha e ressalta a recusa de Mateus Baldi à lógica binária. “Mateus, a escritora, traz para perto dos leitores aqueles que formam o mundo das faltas e dos excessos. São os pobres, os miseráveis, mas também os inseguros de seus papéis artificiais, prostitutas, bichas e amores improváveis.”, avalia. Em seguida, conclui: “É impossível ver o mundo com nossas antigas e desgastadas certezas.”
Três anos e meio separam o lançamento do primeiro livro da autora, Formigas no paraíso, do atual, Os anos de vidro, e a cronologia temporal é incapaz de elucidar as transições íntimas vividas por Mateus Baldi. “A questão de gênero me importa, sem dúvida. Mas quis escrever também sobre outras vidas que não a minha. Quando finalmente compreendi o que se descortinava à minha frente, tive certeza de que a única forma possível era a ficção.”
Sobre a autora:
Mateus Baldi nasceu em 1994, no Rio de Janeiro. Mestra em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, é autora de Formigas no paraíso (Faria e Silva, 2022) e organizadora da antologia Vivo muito vivo: 15 contos inspirados nas canções de Caetano Veloso (José Olympio, 2022).