Enquanto Brasil volta pro Mapa da Fome, redes de supermercados batem recordes de lucro

Melhor ano de vendas para o setor tem lucro recorde de grandes redes ao mesmo tempo em que arroz e feijão estão sumindo da mesa dos brasileiros; medo de contrair covid e pouca proteção em estabelecimentos cheios preocupam funcionárias

Por Lola Ferreira e Flávia Bozza Martins*

Todo brasileiro que chefia uma casa e vai às compras toma um novo susto a cada vez que chega ao supermercado ou abre o aplicativo: batata, arroz, óleo, carne e outros itens básicos para a alimentação de uma família registraram aumento considerável em 2020. Na análise dos 35 itens mais vendidos nos supermercados brasileiros, houve um aumento de 21% entre 2019 e 2020. Em meio à pandemia de covid-19 e à confirmação do retorno do Brasil ao Mapa da Fome, esse aumento de custo se reflete em maior insegurança alimentar, ao mesmo tempo em que o lucro dos supermercados não implica, necessariamente, em melhores condições de trabalho ou em mais segurança trabalhista para os funcionários destes estabelecimentos. Essa reportagem é um desdobramento das análises para o estudo “Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil”, realizado pela Gênero e Número em parceria com o Instituto Ibirapitanga.

“Com tudo fechado, as pessoas passaram a ir mais ao supermercado”, diz Norma Bonfim, 46 anos, que trabalha há cinco como operadora de caixa em uma grande rede no Rio de Janeiro. Além de alterar o comportamento do consumidor, a crise sanitária obrigou os supermercados a investirem em medidas de proteção aos funcionários que, de acordo com Bonfim, na maioria das vezes se limitou à distribuição de álcool em gel. 

“Algumas redes obrigam os clientes a entrarem de máscara, outras não. Se eu trabalho de máscara e um cliente não está protegido, não adianta, porque é proteção coletiva. Todas as minhas colegas de trabalho pegaram covid-19, e o que vimos é que os mercados não dão nenhum suporte extra. Nem na questão da alimentação, que precisamos investir mais, por precisar de uma alimentação mais saudável e reforçada. A gente fica de atestado e pronto”, conta Bonfim, que acredita que a ação dos supermercados poderia ser diferente, já que “houve uma maré boa”.

Trabalhadoras de supermercados acreditam que suporte durante pandemia não foi suficiente | Foto: Procon/RO
Trabalhadoras de supermercados acreditam que suporte durante pandemia não foi suficiente | Foto: Procon/RO

Mesmo sendo muito cedo para quantificar em nível nacional os problemas como os relatados por Norma Bonfim, dados mostram que as mulheres estão em postos de trabalho mais precarizados e atingidos pela pandemia: elas são maioria entre os trabalhadores de comércios e mercados (58%) e nas funções de apoio administrativo (62%), de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do último trimestre de 2019.

O livro “Donos do Mercado: Como os grandes supermercados exploram trabalhadores, fornecedores e a sociedade”, de Victor Matioli e João Peres, traz relatos e informações sobre essa precarização. Na publicação, os jornalistas expõem a dificuldade da rotina dessas mulheres, como a possibilidade de ir ao banheiro somente duas vezes ao dia e o fato de ocuparem funções consideradas “menos relevantes”, além do receio constante da exposição ao coronavírus em supermercados cheios e com pouca proteção. Matioli e Peres também analisam os relatórios do Grupo Pão de Açúcar, que mostraram que em 2018 o salário mais alto do grupo era 150 vezes maior que o salário mais baixo.

E com a pandemia, os lucros dos supermercados só aumentam, apesar da perda de postos de trabalho e renda instável para os brasileiros. No comparativo do trimestre entre setembro e novembro de 2020 com o mesmo período do ano anterior, todo o comércio (não incluindo bares e restaurantes) perdeu 10,4% dos seus postos de trabalho, o que significa cerca de 1,9 milhão de pessoas trabalhadoras no comércio desempregadas. O Grupo Pão de Açúcar teve lucro de R$ 1,59 bilhão no último trimestre de 2020, um aumento de 58,5% em relação ao mesmo período de 2019. Já o Carrefour registrou lucro de R$ 935 milhões, um aumento de 47% em relação ao último trimestre do ano anterior.

Impacto do auxílio

Além do lucro e da informação do alto fluxo de clientes, citada por Bonfim, há outro exemplo do ano dourado para os supermercados brasileiros. O índice geral de vendas, calculado pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras) — como o custo dos 35 itens mais vendidos —  disparou em 2020: os supermercados venderam 9,36% a mais do que em 2019, o maior aumento anual da categoria em 20 anos. Os números já são corrigidos pela inflação. De acordo com a Abras, o cálculo é feito em um universo de mais de 2.800 lojas. Em nota à imprensa, Márcio Milan, vice-presidente da Abras, disse que as medidas de isolamento social influenciaram os brasileiros a “mudar seus hábitos, contribuindo com o aumento do consumo dentro do lar”. 

Líderes do setor e a Abras também acreditam que o auxílio emergencial foi responsável pelo pico de vendas, já que a principal linha de gastos para os beneficiários é realmente a alimentação, de acordo com o Datafolha. Na pesquisa feita pelo instituto em agosto de 2020 sobre o tema, 53% dos respondentes afirmaram que gastaram os R$ 600 do auxílio preferencialmente com alimentação. Depois, para pagar contas e despesas domésticas. Com análise por grupo, o gasto com alimentação é de 61% entre os mais pobres e de 59% entre os com menor escolaridade. A pesquisa mais recente, de dezembro, mostrou que o auxílio era a única fonte de renda para 36% dos que se inscreveram para recebê-lo. 

Supermercados venderam mais durante a pandemia do que na última década

Alta de preços e insegurança financeira não impediram disparo nas vendas do setor

FONTE ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SUPERMERCADOS

Diante das incertezas sobre a continuação do auxílio, cresce o cenário de insegurança alimentar para mulheres pobres, principalmente as negras e indígenas, mesmo com um gasto maior do brasileiro em supermercados. Vender mais não significa que mais gente está comendo, muito menos comendo melhor.

“A insegurança alimentar é um problema de gênero”, avalia Ana Carolina Feldenheimer, professora do departamento de Nutrição da UERJ que atuou como consultora na elaboração de diferentes políticas relacionadas ao tema no governo federal entre 2008 e 2015. “As mulheres negras e mais pobres são as que têm mais dificuldade para garantir a alimentação da sua família e isso é uma cascata: elas têm menos chances de emprego, menos recursos financeiros e, consequentemente, terão mais dificuldade de garantir boa alimentação para a sua casa”, completa.

Num cenário de fragilidade econômica e extrema vulnerabilidade social, como a pandemia, ações para segurar a alta dos preços dos alimentos e fortalecimento de políticas como restaurantes populares deveriam ter sido priorizadas, na avaliação da pesquisadora, mas houve omissão dos governos nesse sentido. Nem mesmo a merenda escolar, assunto que já faz parte da gestão das secretarias, contou com definições rápidas durante a pandemia. 

Durante pandemia, alimentação de crianças na rede pública foi interrompida | Foto: Prefeitura do Rio (2015)
Durante pandemia, alimentação de crianças na rede pública foi interrompida | Foto: Prefeitura do Rio (2015)

Com escolas fechadas, crianças da rede pública precisavam de um plano B para continuar a ter acesso aos alimentos e refeições oferecidas nas unidades de ensino. Mas uma ação que pudesse garantir a alimentação às crianças não foi implementada em âmbito federal, e cada município decidiu como fazê-lo de forma individual.

Alguns municípios conseguiram fazer cestas adequadas, com legumes e frutas, mas muitos compraram alimentos ultraprocessados.

Ana Carolina Feldenheimer, professora do departamento de Nutrição da UERJ 

Outros municípios, em vez de cestas, distribuíram cartões para compras de alimentos. De acordo com o Guia sobre Alimentação Escolar, a medida é ineficaz, pois o valor que um aluno “custa” para o Poder Público é mais baixo (R$ 0,36 por dia letivo), já que as compras são feitas em larga escala. A transferência de um valor próximo a este às crianças, individualmente, não supre a necessidade nem garante a alimentação saudável daquelas que estão em famílias sem outras fontes de renda.

Reflexos

O problema exposto, claro, é visto também por profissionais que atuam diretamente na saúde pública ou comunitária. Clarice Miranda, nutricionista que atende moradores na comunidade do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, avalia que nos últimos seis meses houve aumento no número de atendimentos de pessoas jovens, principalmente mães, em situação de insegurança alimentar. Um caso recente, do início de fevereiro, é o de uma mulher de 21 anos que não consegue se alimentar idealmente porque deixa os alimentos para que a filha, de cerca de 1 ano, consiga fazer todas as refeições. O cardápio geralmente é macarrão. “A gente não escuta mais falarem tanto de  arroz e feijão, que são a base da alimentação brasileira. De proteína, você escuta frango, ovo, mas não carne vermelha.”

A situação dessa casa é classificada pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE) como insegurança alimentar moderada: “redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos”. Se essa redução quantitativa atingisse a filha da jovem, elas estariam em situação de insegurança alimentar grave. 

A falta de arroz e feijão nos pratos, percebida por Miranda, também foi mapeada pela POF. De acordo com a pesquisa, em 15 anos houve redução de 52% na quantidade de feijão consumida anualmente por membros de famílias brasileiras. Em relação ao arroz, o índice foi de 37%. 

“No nosso trabalho, hoje, estamos de mãos atadas. O máximo que podemos fazer é orientar quanto a possíveis benefícios, se a família se encaixar nos critérios. Também acionamos as redes [como chamam os contatos com instituições ligadas ao tema] para incluir as famílias nas ações em que ONGs entregam cestas básicas, por exemplo. Mas não tem muito além disso. E dentro de cada realidade, tentamos encontrar soluções, mas geralmente o cenário é muito desolador”, explica a nutricionista.

Os números da POF/IBGE, a principal pesquisa sobre orçamentos dos brasileiros, com dados atualizados em 2018, mostram que mais de 84 milhões de pessoas no Brasil vivem em insegurança alimentar, de leve a grave. Destas, 59 milhões são negras ou indígenas. E mais de 24 milhões de famílias vivem em algum nível de insegurança alimentar, sendo que cerca de 66% têm como pessoas de referência, os chamados “chefes de família”, negros ou indígenas.

Entre todas as famílias com algum nível de insegurança alimentar, 32% são comandadas por mulheres negras ou indígenas. No universo de famílias comandadas por mulheres e na situação de insegurança alimentar, as chefiadas por negras ou indígenas são 68%.

Famílias chefiadas por mulheres e negros e indígenas são maioria com insegurança alimentar

Renda também é menor que a média total e diminui conforme insegurança aumenta

FAMÍLIAS EM (IN)SEGURANÇA ALIMENTAR POR GÊNERO E RAÇA

FONTE PESQUISA DE ORÇAMENTOS FAMILIARES (POF/IBGE)

Descentralização de políticas públicas

Em janeiro de 2019, logo no início do mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), foi extinto um órgão fundamental para ajudar a resolver esse problema, com impacto direto na mesa dos brasileiros mais pobres: o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), criado em 1993, por Itamar Franco, revogado durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso e reconstituído no início do Governo Lula. Por meio da Medida Provisória 870, que se converteu na lei 13.844/2019, Bolsonaro esvaziou o órgão ligado diretamente à Presidência da República e que era responsável por formular, executar e monitorar políticas públicas relacionadas à segurança alimentar e nutricional. 

Hoje, o trabalho feito pelo Consea, com o aval do governo federal, não existe mais. Mas organizações da sociedade civil, como o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, tentam continuar o trabalho de monitoramento e planejam uma nova conferência nacional sobre o tema — inicialmente prevista para agosto de 2020. Um evento em moldes similares era mantido pelo conselho extinto.

O Consea não tinha poder mandatório ou de legislação, não criava leis sobre alimentação, mas a falta do monitoramento e de ações coordenadas tem sido prejudicial. Daniela Canella, professora do departamento de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora sobre determinantes alimentares, avalia que o Consea era um dos principais elementos para garantir a segurança alimentar do brasileiro. 

Aquela situação complicada em relação à perda da alimentação escolar poderia ter sido apoiada mais de perto pelo Consea, que congregava pessoas de diferentes áreas e experiências, auxiliando na operacionalização da entrega da alimentação escolar correta nesse contexto.

— Daniela Canella, professora do departamento de Nutrição da UERJ

A pesquisadora também lista dificuldades para manter um nível de soberania e organização alimentar sem esse conselho específico: “Perde-se a referência central. Em cidades grandes, em alguma medida há mais dificuldade operacional, mas tem mais gente trabalhando. Na cidade pequena há mais facilidade de entregar uma cesta de legumes, por exemplo, mas provavelmente com menos gente formulando políticas sobre isso, leva-se mais tempo para construir uma estratégia eficiente”.

Órgãos como o Consea também fazem falta para iniciativas como a da nutricionista Clarice Miranda, que trabalha com as famílias da comunidade do Jacarezinho. “Se ele ainda existisse, faríamos denúncias e teríamos estratégias e ações para resolver situações de famílias nessa insegurança: incluí-las em programas de cesta básica, batalhar por renda mínima. Tudo nesse sentido de movimentação, que não temos mais.”

Movimentação

No contexto da pandemia, grandes redes de supermercados divulgaram ações pontuais de apoio à alimentação dos brasileiros. Mesmo com as denúncias de racismo enfrentadas após o assassinato de José Alberto Freitas, homem negro, em uma de suas lojas, a rede Carrefour divulgou longo relatório que detalha suas ações durante a pandemia. A primeira “frente de ação” foi a doação de alimentos e de máscaras de proteção e prevenção ao coronavírus. 

De acordo com o Carrefour, a ação foi feita em 22 estados brasileiros, número abaixo dos 26 estados em que a rede opera. Foram gastos, ainda de acordo com a empresa, quase R$ 9 milhões para auxílio a 900 mil pessoas. 

Ano marcado por assassinato em loja não impediu aumento do lucro do Carrefour | Foto: Wikimedia Commons
Ano marcado por assassinato em loja não impediu aumento do lucro do Carrefour | Foto: Wikimedia Commons

O Grupo Big, ex-Walmart, também divulgou ações semelhantes. Numa parceria com outras três instituições, afirma, foram distribuídas 250 toneladas de alimentos e cerca de 30 mil itens de higiene pessoal.

Mas fora deste contexto, ações pensadas e aplicadas para combater a insegurança alimentar brasileira são escassas. O Carrefour, por exemplo, tem uma “plataforma de combate ao desperdício”, mas não divulga qualquer informação sobre as ações de auxílio às “demandas dos consumidores por alimentação saudável, acessível e sustentável.” O Grupo Big se preocupa em “estimular uma cadeia de valor socialmente responsável”, mas não tem ações fixas ou reflexões públicas sobre o momento atual da fome no Brasil. 

Por outro lado, movimentos sociais, como dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), promovem ações constantes de distribuição de alimentos. Durante a pandemia, o MST conseguiu distribuir ao menos 3.500 toneladas de alimentos em 24 estados brasileiros, graças à produção familiar, além de criação de novas hortas comunitárias para aumentar a quantidade de alimentos a serem doados.

Debate interno e externo

Enquanto isso, organizações da sociedade civil que pesquisam, debatem e agem sobre o tema denunciam que há um lobby silencioso feito pelos supermercados em detrimento da alimentação mais saudável, fato que impacta no ciclo de escassez de alimentos e insegurança alimentar. Uma dessas organizações é o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que visibiliza e discute cidadania no Brasil. 

Athayde Motta, diretor-executivo do Ibase, explica que a melhor forma de garantir soberania alimentar e reduzir os altos índices de famílias em situações de insegurança é fortalecer a produção local, e que esta não é uma preocupação dos supermercados.

Os supermercados fazem lobby. Não de forma explícita e ativa, mas fazem.

“As grandes redes não compram legumes do produtor local, mas ao mesmo tempo fortalecem a ideia da praticidade, que comprar no ar-condicionado é melhor do que ir na feira, pechinchar e comprar os orgânicos. E sutilmente os supermercados tiram a ideia dos ‘produtos de época’, muito comum nas feiras livres, porque eles suprem tudo o tempo inteiro, e um produtor local não consegue colher morangos o ano inteiro, por exemplo”, explica Motta.

Athayde Motta acredita que soberania alimentar no Brasil passa por fortalecimento dos produtores locais | Foto: Divulgação

A escolha por alimentos ultraprocessados em cestas básicas também contribui para a insegurança alimentar, pois para sair dessa categoria é preciso ter acesso a alimentos de qualidade. No contexto de pandemia, a escolha das autoridades também prejudica a soberania alimentar — enquanto fortalece as grandes redes.

“Quando uma prefeitura compra de um atacadão ou supermercado, além de alimentos de menor qualidade para as crianças [no caso das merendas], gera um impacto para além de 2021, pois descapitaliza os agricultores familiares: eles não vendem sua safra, têm problemas de escoamento e não vão ser recapitalizados para a próxima safra. Cria-se um outro ciclo que cria impacto no preço do alimento fresco”, afirma Ana Carolina Feldenheimer. Assim, portanto, as famílias mais pobres continuam comendo mal, pouco ou nada.

Preocupação dos supermercados

O relatório “Por trás das suas compras”, da Oxfam Brasil, mostra que a preocupação com trabalhadores e produtores rurais e locais também não é uma constante para grandes redes de supermercados. A ONG avaliou indicadores internos de Carrefour Brasil, Grupo Pão de Açúcar e Grupo Big em relação aos Direitos Humanos, cadeias de fornecimento e equidade de gênero. 

Gustavo Ferroni, coordenador de Setor Privado e Direitos Humanos da organização, avalia que um dos principais problemas que a Oxfam encontrou na análise é a falta de linearidade entre prática e discurso: “Os supermercados têm discurso de sustentabilidade forte, mas na prática é diferente. Quando divulgam suas ações nesse sentido, as informações são escassas. Mas sequer sabemos se eles realmente fazem. Não tem como fazer checagem das informações e ações divulgadas”.

Ferroni exemplifica que há uma demanda histórica para saber quem são os fornecedores das grandes redes, para mapear eventuais problemas na cadeia de fornecimento que sejam contrárias à garantia dos direitos humanos e denunciá-los às redes, para cessar transações. Mas os canais de denúncias, na realidade, são nulos. “Do que adianta ter um canal para denunciar um fornecedor problemático se não sabemos sequer para onde vão os alimentos que ele produz?”, questiona, em relação à falta de transparência da lista de fornecedores.

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Equidade de gênero é observada internamente mas supermercados não priorizam produtoras do campo Foto: José Fernando Ogura/ANPr

Uma outra conclusão do relatório é que, em relação à equidade de gênero, os supermercados se preocupam com seus processos internos de fomento à contratação de mulheres para cargos de liderança, mas o mesmo não acontece em relação à vida e ao trabalho das mulheres agricultoras, que estão na cadeia de fornecimento. E não é que a equidade nos altos cargos seja dispensável: o livro “Donos do Mercado” também mostra que, em 2018, havia 15 mulheres na “alta administração” do Grupo Pão de Açúcar, enquanto homens eram 62. Em cargos de “liderança”, que os autores chamam a atenção pela possibilidade de ser apenas líder de setor em uma das lojas, elas eram 32,3%.

Mas o relatório da Oxfam não tem registro de ação das grandes redes para lutar pela equidade de gênero fora do ambiente administrativo, principalmente em entender como é o panorama dentro da cadeia de fornecimento.

“Não tem como uma empresa dizer que não é um tema relevante, tanto na ponta da cadeia quanto na loja. É importante que uma empresa olhe para as mulheres nas cadeias de fornecimento, no sentido de mitigar riscos, mas também no sentido de fortalecer as produções das mulheres. Tem alguns pontos: a falta de investimento no campo, a mulher trabalhando, a diferença de pagamento, a questão de condição de trabalho, banheiro, maternidade. Como uma trabalhadora lactante vai se deslocar 30 quilômetros para trabalhar, como vai amamentar? Como isso é cumprido? Se não olharem, estão contribuindo para que uma situação desigual, injusta e violadora de direitos se mantenha”, avalia Ferroni.

E completa: “Existem compromissos, falam em questões de gênero e uma preocupação específica das mulheres e questões LGBT+, mas quando vai mais longe na cadeia de fornecimento, não há ações”. 

*Lola Ferreira é repórter e Flávia Bozza Martins é analista de dados da Gênero e Número

Nome social explode no Enem. Ação dos movimentos sociais é um dos fatores

Por  Lola Ferreira para Gênero e Número

Na primeira vez que fez a prova do Enem, Joane Bastos, de 28 anos, não conseguiu usar seu nome social. “Eu não tinha como exercer meu direito, minha cidadania, ser tratada pelo meu nome”, relembra. Na vez seguinte, e definitiva, já conseguiu assinar com o seu nome. Hoje, a pedagoga reconhece que os percalços que enfrentou no caminho rumo ao diploma ajudaram a pavimentar o caminho para outros alunos transgênero. O Enem de 2020 registrou uma explosão: 2.184 candidatos e candidatas pleitearam o nome social, um aumento de 450% em relação a 2019. Um avanço construído a muitas mãos.

“Sem dúvida esse fato é resultado de um engajamento do movimento social trans brasileiro, que faz esse trabalho de base, de forma didática, para informar toda a população trans sobre o direito [ao nome social]. Uma vez que o movimento social articulado de pessoas trans coloca em pauta essas questões e acata denúncias dos processos do nome social, antes da política pública, ele está expondo uma necessidade”, avalia Bastos, que cita as organizações Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE).

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Pedagoga Joane Bastos enfrentou problemas institucionais e hoje trabalha para pavimentar caminhos | Foto: Arquivo pessoal

A pedagoga relembra os dias no colégio, em que sofria diversos episódios de transfobia de seus colegas: “Para mim, sentar numa cadeira da escola era uma tortura”, diz. Levou anos até que ela, depois de formada no ensino médio, conseguisse prestar vestibular e iniciar sua vida acadêmica. A escolha por pedagogia, um curso diretamente relacionado ao processo educacional, não foi de imediato, mas hoje ela percebe como a educação se tornou, também, uma forma de fazer as pazes com o passado e reconhecer a importância da sala de aula.“Hoje eu vejo a educação como forma de desabafar: na minha escrita, no processo de produção de conhecimento. É importante ocupar esses lugares e estar bebendo da fonte do movimento social de travestis e transexuais. Temos que exaltar figuras que construíram essa trajetória”, afirma.Bastos cita Sayonara Nogueira, que hoje preside o IBTE e é professora da rede estadual de ensino de Minas Gerais, como uma de suas referências. Além de Sayonara, o IBTE identificou em um mapa colaborativo outros 73 professores e professoras trans e travestis que lecionam no ensino superior e básico no Brasil. A maioria opta pela área de Ciências Humanas, mas com grande presença nas áreas de Linguística, Letras e Artes.

Mapeamento colaborativo identifica maioria de professores trans em Humanas

Sudeste é a região que mais concentra profissionais trans em sala de aula.

Fonte: Instituto Brasileiro de Trans Educação

Problema visível

Uma das professoras que constam no levantamento do IBTE é Sara Wagner York, mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutoranda recém-aprovada em quatro programas públicos no Brasil. York pesquisa a inclusão de pessoas trans no processo educacional. Para a pesquisadora, a necessidade de discutir e ampliar o acesso à educação para pessoas trans ganha mais espaços nos últimos anos porque é uma das áreas mais visíveis, mas ela ressalta que a marginalização desses corpos acontece em todas as áreas.

“A educação é mais visível porque é na educação que vamos fomentar as principais bases para que esse sujeito [trans] alcance a potência de cidadão, para poder ecoar seus direitos, pedidos e problemas. A educação tem o dever de instrumentalizar os sujeitos para que busquem isso”, avalia.

York, entretanto, pondera que o processo educacional não é restrito ao ambiente escolar: “É uma questão social, e todos precisam estar envolvidos na construção de sujeitos respeitados em suas identidades e especificidades”.

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Professora Sara Wagner York defende presença de professores trans para ampliar visão de mundo | Foto: Arquivo pessoal
Vantagens da presença

Para York, professores e professoras trans auxiliam os alunos, inclusive do ensino básico, a elaborarem suas próprias diferenças e subjetividades.

“Alunos serão pessoas muito melhores ao estarem expostos a professores trans porque a própria dinâmica sexista poderá ser colocada em xeque: ora, se existe a ideia de ‘força para meninos’ e ‘delicadeza para meninas’, uma professora trans que rompe com essa lógica, por ser forte, por exemplo, pode colocar por terra toda essa estrutura. Eu acho que a diferença do corpo é benéfica”, avalia York, que também é uma pessoa com deficiência.

“Na minha sala de aula, como sou cega de um olho, os alunos do 6º ano diziam ‘tá olhando pra onde?’ como forma de constrangimento, e eu explicava. Esse aluno exposto a uma condição de observar as diferenças vai levar isso para outras situações e colocar esse constrangimento de uma forma que não seja mais tolerado”.

Marina Reidel, diretora de Promoção de Direitos LGBT do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, também é pesquisadora em Educação e corrobora o discurso da colega sobre a presença de pessoas trans nas escolas ampliarem a discussão de temas e valores fundamentais, além de apoiar eventuais alunos trans. “Eles não ensinam ninguém a ser LGBT+. Eles simplesmente são profissionais que buscam, com suas histórias, serem reconhecidos como sujeitos de direitos e que sabem que poderão acolher alguém que está vivendo em sofrimento e não consegue dialogar com a família ou com outras pessoas no ambiente escolar”.

Responsabilidade de todos

Para Joane Bastos, há ainda uma lacuna da Academia em aceitar a produção intelectual de pessoas trans. Essa resistência a novos aprendizados, vivências e produções, diz ela, forma professores distantes da realidade nesse sentido. Ela também cita a falta de preocupação de diretores, donos de instituições privadas e outros profissionais da educação em incluir pessoas trans nos seus quadros de funcionários.

“Uma vez que a pessoa trans não está na sala de aula, ou trabalhando dentro de uma instituição de ensino, torna-se muito distante para a realidade dos alunos. Precisamos de autocrítica profunda e procurar integrar a todos nos espaços, dar oportunidade para inseri-los na sociedade de fato”, afirma Bastos.

Ainda assim, a pedagoga reconhece ser uma entusiasta de todo o processo educacional, e acredita que, assim como as que vieram antes, ela está trilhando um caminho de mais acesso e acolhimento para outras pessoas trans no ambiente acadêmico. “Dentro da minha experiência, da minha história de vida, percebi que quanto mais eu me calasse, mais apagada e silenciada eu estaria. E é preciso reverenciar quem me antecedeu, porque elas semearam a terra para que hoje pudéssemos colher algum tipo de fruto. Hoje sou eu quem vou plantar a semente para outras que estão por vir. Nossas histórias são fortes, muitas vezes tristes, mas que daqui para frente possamos contar mais e mais histórias alegres, de superação, de não sucumbir ao sistema transfóbico do nosso país.”

Imagem de capa: Ricardo Matsukawa/TemQueTer

Assassinato de pessoas trans cresce 75% em dez anos sem políticas públicas eficazes de proteção

Por Vitória Régia da Silva e Lola Ferreira para Gênero e Número 

Levantamento feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais considera perfil das vítimas assassinadas em 2020; problemas institucionais são apontados como um dos principais gargalos para solução da violência

Chiara Duarte, 27 anos, foi assassinada a facadas em setembro de 2020 no centro de São Paulo e, depois, jogada do 7º andar do seu prédio pelo assassino. A família da vítima não tem dúvidas: foi transfobia. O mesmo aconteceu com Márcia Shokenna Bastos da Silva, de 28 anos, na região litorânea do Rio de Janeiro. No caso dela, o assassinato foi a pauladas, e o corpo acabou abandonado em um sítio. Chiara, Márcia e ao menos outras 173 mulheres trans foram assassinadas em 2020, número que mantém o Brasil no topo do ranking de países que mais matam essa parcela da população.

Os dados inéditos foram compilados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e divulgados em dossiê inédito nesta sexta-feira (29), Dia Nacional da Visibilidade Trans. O extenso documento cataloga os efeitos sempre nocivos da transfobia e chama a atenção para a escalada de crimes contra pessoas trans.

“O que fica nítido é o quanto a omissão e o descaso do Estado no cuidado com a população trans, ao não se debruçar sobre os processos de vulnerabilidade e precarização da nossa população, têm nos deixado cada vez mais próximos desse cenário de violência. Esse afastamento do acesso a direitos e o não reconhecimento da nossa cidadania também”, pontua Bruna Benevides, secretária de articulação da Antra e uma das autoras do dossiê. “O Estado tem falhado na proteção das nossas vidas quando não conseguimos efetivar as denúncias ou quando são desqualificadas”.

Mortes como as de Chiara e Márcia são a maioria: em 77% dos casos, os assassinos usaram requintes de crueldade, uma característica comum em crimes de ódio. O fato de serem todas mulheres no levantamento da Antra revela que o preconceito de gênero também aparece em casos de transfobia. Benevides reforça que o levantamento não afirma que todas as mortes são por transfobia ou por identidade de gênero, mas os elementos que compõem esse cenário de violência denunciam o quanto a transfobia é presente. “O principal indicador é esse perfil de humilhação, excesso de violência e crueldade nos crimes de ódio. A identidade de gênero aparece como o principal motivador, e precisamos fazer essa discussão. A intensidade, repetição e o cruzamento do método de violência é o que nos denuncia essa violência como crime de ódio”.

Assassinatos de pessoas trans aumentam 75% na década

Vitimas em 2020 são mulheres trans e travestis, principalmente negras e jovens

PERFIL DAS VÍTIMAS ASSASSINADAS EM 2020

Fonte: Associação Nacional de Travestis e Transexuais

As pesquisadoras também destacam que o assassinato de homens trans ou pessoas transmasculinas (pessoas designadas com o gênero feminino ao nascer, mas que têm identidade de gênero relacionada ao masculino, sem necessariamente serem homens trans) é marcado por outro fator violento: o desprezo às suas identidades, seja por não terem retificado documentos ou por ainda haver uma ideia de associação imediata ao gênero da pessoa apenas por conta da sua genitália, principalmente aquelas no início da transição de gênero. Tudo isso dificulta a identificação desses casos. O perfil majoritário da vítima dos assassinatos, no entanto, é mulher trans, negra e pobre, mais próxima do ideal de “travesti” rechaçado pela sociedade, e também profissionais do sexo.

Raça, território e espaços

Em relação ao perfil regional, o Nordeste concentra 43% dos casos de assassinatos, seguido pelo Sudeste, com 34% dos casos. Desde 2017, de acordo com a Antra, essa triste liderança da região Nordeste se mantém. Já em relação à idade, a faixa etária que concentra 56% dos casos é de 15 a 29 anos. A idade média de todas as vítimas assassinadas em 2020 é 29,5 anos.

Para as pesquisadoras responsáveis pela publicação, meninas trans serem assassinadas cada vez mais cedo é reflexo do discurso contra pessoas trans que tem ganhado musculatura na sociedade nos últimos anos, paralelamente ao aumento da discussão por amplitude de direitos. Ou seja, cada vez mais cedo pessoas trans abraçam sua identidade de gênero e também cada vez mais cedo são perseguidas por este fato.

O dossiê “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2020″ também avalia o impacto da raça das vítimas nos números. E em 78% dos casos, mulheres trans assassinadas eram negras (pretas ou pardas), mantendo o índice médio de 80% dos levantamentos anteriores da Antra. As pesquisadoras ressaltam que são as travestis e transexuais negras as que têm mais chances de serem mortas, têm menos acesso ao mercado formal de trabalho e trabalham mais na rua.

“Tentam homogeneizar nossas experiências, mas quando fazemos o recorte, passamos a compreender que pessoas trans têm mais chances de serem assassinadas por ódio e transfobia do que pessoas cis, mas algumas pesssoas trans estão mais sucetíveis ao assassinato violento e cruel do que outras, o que não quer dizer que essas outras não têm risco de serem assassinadas. Não surpreende que em um país em que cresce o número de feminícidios e que mata constantemente jovens negros, essa disparidade de gênero, racial e etária apareça”, disse Benevides.

Mas a realidade do trabalho na rua tem reflexos também em outros dados fundamentais: a quantidade de assassinatos no espaço público. Em 2020, 71% dos casos aconteceram no espaço público, com ao menos oito vítimas que estavam em situação de rua. E do total de casos, 72% das vítimas eram profissionais do sexo. De acordo com o dossiê, elas “são as mais expostas à violência direta e vivenciam o estigma dos processos de marginalização”.

Marina Riedel, diretora de promoção dos direitos LGBT no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, informou que um dos objetivos da área que comanda é desenvolver projetos que possam mudar a realidade dessas violências, em constante discussão com todas as esferas de governo. “Um deles é a proposta de um pacto federativo sobre a violência LGBTfóbica, e também o programa de empregabilidade”, explica.

Espaço público e armas de fogo marcam maioria dos assassinatos de pessoas trans no Brasil

2020 registrou 175 assassinatos em todo o Brasil, com maior ocorrência no Nordeste

PERFIL DA VIOLÊNCIA EM 2020

Fonte: Associação Nacional de Travestis e Transexuais

Subnotificação

O dossiê ainda analisa o recorrente problema de subnotificação dos casos de violência LGBTfóbica. Não há hoje, no Brasil, um sistema de dados que consiga compilar e divulgar todas as violências sofridas com destaque para a identidade de gênero das pessoas, o que ajudaria a mapear as violências transfóbicas.

A Antra, portanto, denuncia que muitos assassinatos de pessoas trans se perdem nos registros de ocorrência ou em laudos que ignoram a identidade de gênero. De acordo com a entidade, “são os estados, as polícias e órgãos de segurança os responsáveis pela falta de dados e manutenção da subnotificação dos dados de assassinatos de pessoas trans no Brasil”.

Essa omissão institucional também é exposta, pela organização, no preconceito que pessoas trans ainda encontram no atendimento em órgãos públicos, o que dificulta a denúncia. Para a Antra, “ao se abster de mapear ou informar sobre o transfeminicídio, o Estado se exime da responsabilidade de pautar políticas de segurança para esta população”.

E o relatório continua: “Não acessar informações dos movimentos sociais a fim de gerar tais dados, tampouco se preocupar em levantá-los, é a maior demonstração de descaso com a nossa população”, citando a não obrigatoriedade do preenchimento da identidade de gênero em bancos de dados públicos, como o Disque 100.

Foto de Capa: Ricardo Matsukawa/TemQueTe

Visibilidade, solidariedade e violência contra as mulheres lésbicas nas redes

Por Vitória Régia da Silva para Gênero e Numero

Pesquisa da organização Coding Rights mostra como o discurso de ódio e a reprodução de preconceitos na internet afetam esta população; mais de um ano após a criminalização da Lgbtfobia, 49% dos estados não têm informações sobre este crime 

A carioca Ana Claudino, 29, cresceu sem referências lésbicas e com a sensação de não pertencimento. Buscou refúgio na internet, nas salas de bate-papo e nas contas anônimas do orkut e msn. Fez amizades que leva até hoje e começou a construção de uma rede de afeto e identificação nas redes sociais. Em 2017, criou o seu canal do YouTube, chamado “Sapatão Amiga”, para amplificar sua voz e pautar as narrativas de lésbicas negras como ela.

“Veio deste lugar de compartilhar minhas experiências e alcançar outras lésbicas negras. Hoje em dia, tenho meu canal, meu podcast, minha coluna na Mídia Ninja e faço parte de uma rede de lésbicas pelo Brasil afora, até da América Latina, que construí para ampliar essa rede sapatão. Nessa rede conseguimos, na medida do possível, ter um espaço para trocar com outras de outros lugares e entender as vivências dessas mulheres lésbicas de outras regiões e países”, conta a youtuber e pesquisadora de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A internet atua como um espaço de visibilidade e amplificação das vozes lésbicas, mas ser visível é arriscado, e o discurso de ódio e violência nas redes contra lésbicas também é presente. Isso é o que mostra a pesquisa “Visibilidade Sapatão nas redes: entre violência e solidariedade” da Coding Rights (organização feminista interseccional que defende os direitos humanos no desenvolvimento, regulação e uso das tecnologias), que foi publicada em 21/8 e analisa as existências lésbicas no mundo digital.

Realizada pelas pesquisadoras Ivanilda Figueiredo e Joana Varon, o estudo destaca seis mulheres lésbicas que utilizam a internet como forma de amplificar suas existências e ativismo: Bruna Bastos (idealizadora da Sapatona Entendida e uma das articuladoras da Coletiva Brejo Salvador), Camila Marins (uma das editoras da Revista Brejeiras), Carol Bastos (administradora da página do facebook da Liga Brasileira de Lésbicas do Rio Grande do Sul e co-administradora do facebook da LBL Nacional), Kamilla Valentim ( integrante da Coletiva Resistência Lésbica da Maré no Rio de Janeiro), Michelle Seixas (integrante da Associação Brasileira de Lésbicas) e Mônica Benício (ativista lésbica e viúva de Marielle Franco).

A violência contra mulheres lésbicas na internet aparece de diferentes formas, segundo Ivanilda Figueiredo, professora adjunta de Direito e Pensamento Político e Direitos Humanos da faculdade de direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e coordenadora do Universidade, Resistência e Direitos Humanos (URDIR) e do Núcleo de Direitos Humanos em Ensino, Pesquisa e Extensão da UERJ. “A primeira é a violência que vem dos usuários, que se reproduz nas redes e nas ruas devido ao ódio contra essa população, que é legitimado porque ninguém freia essa violência na internet”, explica.

Desde o período eleitoral de 2018, houve um acirramento da violência e discursos de ódio contra a população LGBT+. Como mostra a pesquisa “Violência contra LGBTs+ no contexto eleitoral e pós eleitoral”, produzida pela Gênero e Número,  51% das pessoas LGBTs+ entrevistadas sofreram pelo menos uma agressão durante o segundo semestre de 2018 e 36% relataram ter sofrido perseguição, ameaça ou agressões nas redes sociais pela orientação sexual ou identidade de gênero durante os períodos eleitoral e pós-eleitoral. Mulheres lésbicas foram um dos grupos que mais relataram ter sofrido perseguição ou agressões nas redes sociais, (37%).

Ana Claudino presenciou de perto essa perseguição nas redes sociais. Em 2018, na época das eleições, quando  começou a falar mais publicamente de política e se juntou ao movimento #EleNão, recebeu ataques em massa de bots em um vídeo em que dava dicas de segurança para lésbicas que iam ao ato #EleNão, o que fez com que desativasse os comentários da sua publicação. Este ano, uma pessoa criou uma conta falsa com sua foto, passando-se por uma ativista lésbica de São Paulo que pedia o contato e marcava encontros com outras mulheres lésbicas. “Uma seguidora me avisou desse fake, eu denunciei a conta e o Instagram tirou do ar, mas isso mostra como estamos a mercê dessas plataformas. Estamos hackeando essas plataformas que não querem sapatões ali dentro e, por isso, puxamos o #VerificaSapatão no twitter, para que a plataforma verifique as criadoras de conteúdo e dê mais segurança para essas mulheres”, destaca.

A ativista Michelle Seixas, entrevistada pela pesquisa, também cita um episódio de violência durante o período eleitoral de 2018 contra a página da Associação Brasileira de Lésbicas (ABL): “Nós recebemos ameaças no messenger do facebook, dizendo que estávamos com os dias contados, que a farra ia acabar porque o capitão [referência a Bolsonaro] estava chegando. Nós não respondemos a este tipo de mensagem e encaminhamos a denúncia para o ‘Disque 100’, que é um serviço telefônico para recebimento e encaminhamento de denúncias feito ao Governo Federal. Mas logo depois começou o governo que justamente legitimava as ameaças contra nós, e não recebemos resposta”.

Censura à palavra “sapatão” e algoritmo

Em 2019, depois de pressão e reclamações de organizações lésbicas de diferentes partes do mundo, o Google alterou seu algoritmo para que a palavra “lésbica” não fosse mais sinônimo de pornô. A partir de então, o usuário seria direcionado para conteúdos informativos e à página do Wikipédia. No entanto, ainda hoje, se digitar a palavra “lésbica negra”, os resultados do Google Imagens remetem em sua maioria a imagens pornográficas. O mesmo acontece quando é digitado “lésbica branca”, mas esses conteúdos aparecem misturados a outros informativos.

Segundo Figueiredo, essa é a segunda forma de violência presente nas redes sociais.“Seria o  algoritmo e a responsabilidade das empresas, que deveriam não reproduzir esse preconceito, mas não é isso que acontece na prática. Isso faz com que mulheres lésbicas não se sintam seguras, sejam censuradas pelo uso de certas palavras como ‘sapatão’ e não saibam como ter apoio das empresas quando acontece algum tipo de violação. As empresas precisam fazer algum controle que proteja as usuárias sem censurar suas liberdades.”

Criminalização da LGBTfobia aplicada ao discurso de ódio

O estudo também traz dados inéditos sobre registros dos crimes de Lgbtfobia. Por meio da Lei de Acesso à Informação, foram solicitados os dados para as 27 unidades federativas, a partir da data de decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), 13 de junho de 2019, até o dia 31 de maio de 2020. Das 27, 23 responderam à solicitação e, em 4 estados, o sistema não funcionou ou a solicitação não foi respondida. Dentre as respostas recebidas, apenas 12 efetivamente enviaram dados que contabilizam 2.865 casos de LGBTfobia: Acre, Alagoas, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Pará, Paraná, Pernambuco, Roraima e Tocantins.

Mais de um ano após a decisão de criminalização da LGbtfobia pelo STF, prevalecem a  escassez e discrepância dos dados sobre violência contra a população LGBT+. Quase metade dos estados  (49%) não possui dados sistematizados sobre LGBTfobia e quatro estados ainda alegaram falta de tipificação para não possuir essa informação: Amapá, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Rondônia.

“Isso faz parte de uma política muito ampla de negação de direitos. Esse levantamento mostra a falta de interesse dos estados em proteger essa população, porque eles arrumam qualquer desculpa para não ter esses registros ou os dados consolidados. A população LGBT+ deveria saber que pode denunciar, ser bem atendida nas delegacias, não ser revitimizada, e, nas delegacias, deveria ter os campos de preenchimento que levam em conta orientação sexual e identidade de gênero. Existe uma falta de interesse em nos proteger, porque o governo federal e dos estados acham que isso iria legitimar nossa existência e eles não querem isso”, disse Figueiredo.

Não existe previsão legal tratando especificamente do discurso de ódio e nem um consenso no judiciário do que caracteriza essa violência, o que pode dificultar seu combate e punição. Existe a possibilidade de enquadrá-lo na previsões da Lei Antirracismo (Lei n.7716/1989, na lei que que trata sobre misoginia na internet ( Lei 13642/18) ou nos dispositivos que tratam de crime contra a honra, especialmente difamação ou injúria (artigos 139 e 140 do Código Penal), e ainda no crime de ameaça (art. 147) e nos crimes contra a paz pública (art.286 a 288).

De acordo com Figueiredo, o debate do discurso de ódio é complexo no país e ainda não temos uma definição fechado do que seria essa violência. “Essa falta de uma jurisprudência homogênea é muito perigosa porque faz com que as pessoas fiquem na dúvida na hora de denunciar e existam visões e decisões muito díspares na forma como o Supremo e os juízes enxergam essa questão”, finaliza.

Foto de capa: Isadora Heimig/TemQueTer 

Pessoas trans e LGBT+ negras e indígenas estão mais expostas ao impacto da covid-19

Texto de Vitória Régia da Silva para a Gênero e Número

A carioca Edilene Junger, 38, teve sua renda completamente impactada pela pandemia causada pelo coronavírus. Artista freelancer, Junger trabalhava como modelista, grafiteira e fazia brincos para a venda. “A pandemia afetou todas as minhas áreas profissionais. Os brincos, eu vendia em festa e eventos lésbicos e, com a quarentena, isso afetou bastante. No meu trabalho com modelagem, tive que parar por conta da pandemia e porque eu faço parte do grupo de risco”, conta.

Por ser, como ela mesmo descreve, uma “mulher negra, gorda, favelada e lésbica”, a carioca trata na sua arte da interseccionalidade dessas identidades e do impacto disso na sua vida. Nas primeiras semanas, depois que foi decretado o isolamento social, Junger contou com ajuda de amigas, e agora se mantém com o auxílio emergencial de R$ 600, mas o valor está longe de ser suficiente.

Pessoas LGBT+s negras como Junger estão em uma situação de vulnerabilidade grave durante a pandemia causada pela covid-19, revela a pesquisa diagnóstico LGBT+ na pandemia do coletivo Vote LGBT+, que trata dos desafios dessa comunidade no contexto de isolamento social. Realizada entre os dias 28 de abril e 15 de maio, por meio de formulário online, a pesquisa recebeu mais de 9.000 respostas das cinco regiões do país.

Divulgado neste domingo, 28/6, data marcada pelo Dia do Orgulho LGBT+, o estudo aponta um índice inédito de vulnerabilidade LGBT+ em relação à covid-19 e revela que pessoas transgênero são as mais vulneráveis aos impactos do isolamento social, seguidas pelas pessoas pretas, pardas e indígenas. Os bissexuais aparecem em terceiro. Todos esses grupos estão na faixa de vulnerabilidade considerada grave.

“A população bissexual é invisibilizada dentro do movimento LGBT+ e tem algumas vulnerabilidades que não são retratadas por conta disso. Quando fizemos a análise, fiquei até surpresa em perceber, dentre esse grupo, o alto percentual de pessoas com renda menor ou igual a um salário mínimo. Eu imaginei que esse dado fosse um pouco mais próximo das lésbicas e gays, mas estava mais próximo das pessoas trans”, destaca Fernanda Fortes de Lena, demógrafa da Unicamp e integrante do coletivo Vote LGBT+. “A importância de ter feito essa pesquisa e encontrado esses dados nos ajuda a focalizar nesse grupo que está sofrendo vulnerabilidades e infelizmente é muito invisibilizado”, completa.

O Índice Vulnerabilidade LGBT+ em relação a covid-19 (VLC) é um índice que varia entre 0 e 1. Quanto mais próximo a 1, maior a vulnerabilidade ao novo coronavírus do grupo analisado. O VLC é aplicado a três variáveis: renda e trabalho, saúde, exposição ao risco.

A diversidade de identidade de gênero, raça/cor e orientação sexual aprofundam a condição de vulnerabilidade, que já é alta entre os grupos. Pretos, pardos e indígenas, por exemplo, possuem 22% mais chance de indicar falta de dinheiro como a maior dificuldade da quarentena do que brancos e amarelos.

“Enquanto pesquisadores, demógrafos e ativistas, sabemos das interseccionalidades da nossa comunidade e quando pensamos em fazer uma pesquisa, pensamos em mostrar as problemáticas, onde estão as maiores vulnerabilidades e evidenciar isso quantitativamente”, explica a demógrafa e pesquisadora.

Queda na fonte de renda

Segundo a pesquisa, a taxa de desemprego entre os LGBT+s foi de 21,6%, quase o dobro (12, 6%) do registrado pelo IBGE, no trimestre encerrado em abril, referente a toda a população brasileira. Quase metade (44,3%) das pessoas LGBT+s teve suas atividades totalmente paralisadas e 24% perderam emprego durante o isolamento social.

Uma das pessoas LGBT+s que perderam seus empregos devido à pandemia foi Carina Menezes, 34. Ela, que trabalhava há dois anos e meio em uma empresa de tecnologia e informação, foi dispensada do trabalho sobre a justificativa de queda no fluxo de caixa, no início de maio.

“Isso vai impactar muito na minha renda. Eu perdi meu plano de saúde, vou ter que pagar por fora, e essa era uma despesa que eu não tinha antes. Todas as minhas despesas fixas permanecem, e eu não tenho mais a certeza de uma renda fixa todo mês. Agora é juntar o que eu tenho e fazer isso render o máximo que eu conseguir enquanto procuro outro trabalho”, conta Menezes.

A cearense, que mora há quase 25 anos no Distrito Federal, conta que por ser bissexual tem que levar em conta sempre o quão diversa e segura é a empresa na busca por um novo trabalho: “Eu fico muito mais seletiva com relação às oportunidades que estou buscando. Faço uma pesquisa sobre a empresa para ter certeza que é um ambiente diverso e que tem uma filosofia parecida com a minha. Sou mais consciente das coisas que tenho que procurar para me sentir mais segura. Isso limita minhas oportunidades, que já são poucas”.

O estudo ainda revela uma situação de extrema vulnerabilidade desta população, já que 4 em cada 10 pessoas LGBT+ e mais da metade das pessoas trans (53%) disseram que não conseguem sobreviver sem renda por mais de 1 mês caso percam sua fonte de renda.

“São várias as questões que fazem com que essa taxa seja superior à população em geral. E, durante uma pandemia, esse cenário fica pior”, destaca Lena. “O principal fator não está relacionado à covid-19 especificamente, porque sistematicamente existe um problema de acesso ao mercado de trabalho para essa população. Isso está ligado a muitas questões, como o preconceito com pessoas LGBT+ que não estão dentro da heteronormatividade e ao fato de que essa população é ‘expulsa’ da escola devido à LGBTfobia e acaba não completando a educação formal para que possa acessar cargos e ser competitiva dentro do mercado de trabalho”. De acordo com a pesquisa, 3 em cada 10 dos desempregados estão sem trabalho há 1 ano ou mais.

A jovem travesti Uma Reis Sorrequia, 24, conhece bem essas barreiras de acesso ao mercado de trabalho. Graduanda em geografia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), a pesquisadora, que já apresentou trabalhos acadêmicos fora do Brasil, está prestes a se formar e não conseguiu emprego como professora durante a graduação.

“Eu tinha plena consciência da violência transfóbica na empregabilidade, mas por um momento me enganei porque acreditei que, por ter construído um currículo internacional e aproveitado tudo que a universidade pode me oferecer, eu tinha rompido essa barreira e iria conseguir trabalhar como professora de geografia. Mas isso não aconteceu, e a ficha caiu”, conta Sorrequia.

Desde então, a jovem atua como arte educadora e mora há um ano em São Paulo. No momento que o isolamento social foi decretado, fazia pouco mais de um mês que tinha saído do trabalho em uma exposição com proposta de retorno em abril, além de ter dois contratos assinados para dar uma palestra e para fazer o programa de um curso por 1 ano.

“A pandemia chegou e simplesmente tudo foi suspenso. Dos trabalhos que estavam encaminhados, apenas um aconteceu de forma online. No primeiro momento, fiquei muito mal e temerosa porque voltar para a minha cidade (em Sorocaba), para o berço da minha família, significaria voltar para onde aconteceu toda a violência que eu sofri. Seria extremamente doloroso, por isso eu fiquei me segurando da forma que dava”, desabafa a arte educadora.

Avaliação do presidente e dos governadores

Os pesquisadores também questionaram os entrevistados sobre a atuação dos gestores públicos no combate à pandemia. Para 98,7% das pessoas LGBT+s entrevistadas, o desempenho do presidente Jair Bolsonaro é ruim ou péssimo. Essa avaliação é reflexo das ações do governo, já que as demandas da comunidade LGBT+ estão fora da pauta federal. Em 2019, foi extinto o Conselho de Combate à Discriminação LGBT+ , o Ministério da Educação cancelou um vestibular voltado para pessoas transgêneras e intersexuais, o Itamaraty baniu o uso da palavra gênero e de menções a direitos LGBT+ de documentos e o presidente retirou o incentivo ao turismo LGBT+ no Brasil do Plano Nacional de Turismo.

O foco da reprovação de políticas públicas está localizado na figura do atual presidente da República porque 74,7% da população LGBT+ que respondeu à pesquisa aprova os governos estaduais. A melhor avaliação estadual foi no Ceará: 53,23% das pessoas indicaram que o governador Camilo Santana está tendo ótimo desempenho durante a pandemia. Na região Sudeste, apenas o governador de Minas Gerais, Romeu Zema, teve uma avaliação péssima elevada: 34,3%.

“Não foi uma surpresa a avaliação do presidente, porque está de acordo com as atitudes dele. Esse resultado está condizente, mostra que a população LGBT+ está sofrendo com as atitudes desse governo e que estamos atentos a isso. Lembrando que essa é uma pesquisa online, e isso mostra que essas pessoas têm acesso à informação e estão informadas em relação ao que o governo tem feito diante da pandemia”, finaliza a pesquisadora.

A pesquisa completa você confere clicando aqui.