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Nome social explode no Enem. Ação dos movimentos sociais é um dos fatores

Por  Lola Ferreira para Gênero e Número

Na primeira vez que fez a prova do Enem, Joane Bastos, de 28 anos, não conseguiu usar seu nome social. “Eu não tinha como exercer meu direito, minha cidadania, ser tratada pelo meu nome”, relembra. Na vez seguinte, e definitiva, já conseguiu assinar com o seu nome. Hoje, a pedagoga reconhece que os percalços que enfrentou no caminho rumo ao diploma ajudaram a pavimentar o caminho para outros alunos transgênero. O Enem de 2020 registrou uma explosão: 2.184 candidatos e candidatas pleitearam o nome social, um aumento de 450% em relação a 2019. Um avanço construído a muitas mãos.

“Sem dúvida esse fato é resultado de um engajamento do movimento social trans brasileiro, que faz esse trabalho de base, de forma didática, para informar toda a população trans sobre o direito [ao nome social]. Uma vez que o movimento social articulado de pessoas trans coloca em pauta essas questões e acata denúncias dos processos do nome social, antes da política pública, ele está expondo uma necessidade”, avalia Bastos, que cita as organizações Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE).

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Pedagoga Joane Bastos enfrentou problemas institucionais e hoje trabalha para pavimentar caminhos | Foto: Arquivo pessoal

A pedagoga relembra os dias no colégio, em que sofria diversos episódios de transfobia de seus colegas: “Para mim, sentar numa cadeira da escola era uma tortura”, diz. Levou anos até que ela, depois de formada no ensino médio, conseguisse prestar vestibular e iniciar sua vida acadêmica. A escolha por pedagogia, um curso diretamente relacionado ao processo educacional, não foi de imediato, mas hoje ela percebe como a educação se tornou, também, uma forma de fazer as pazes com o passado e reconhecer a importância da sala de aula.“Hoje eu vejo a educação como forma de desabafar: na minha escrita, no processo de produção de conhecimento. É importante ocupar esses lugares e estar bebendo da fonte do movimento social de travestis e transexuais. Temos que exaltar figuras que construíram essa trajetória”, afirma.Bastos cita Sayonara Nogueira, que hoje preside o IBTE e é professora da rede estadual de ensino de Minas Gerais, como uma de suas referências. Além de Sayonara, o IBTE identificou em um mapa colaborativo outros 73 professores e professoras trans e travestis que lecionam no ensino superior e básico no Brasil. A maioria opta pela área de Ciências Humanas, mas com grande presença nas áreas de Linguística, Letras e Artes.

Mapeamento colaborativo identifica maioria de professores trans em Humanas

Sudeste é a região que mais concentra profissionais trans em sala de aula.

Fonte: Instituto Brasileiro de Trans Educação

Problema visível

Uma das professoras que constam no levantamento do IBTE é Sara Wagner York, mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutoranda recém-aprovada em quatro programas públicos no Brasil. York pesquisa a inclusão de pessoas trans no processo educacional. Para a pesquisadora, a necessidade de discutir e ampliar o acesso à educação para pessoas trans ganha mais espaços nos últimos anos porque é uma das áreas mais visíveis, mas ela ressalta que a marginalização desses corpos acontece em todas as áreas.

“A educação é mais visível porque é na educação que vamos fomentar as principais bases para que esse sujeito [trans] alcance a potência de cidadão, para poder ecoar seus direitos, pedidos e problemas. A educação tem o dever de instrumentalizar os sujeitos para que busquem isso”, avalia.

York, entretanto, pondera que o processo educacional não é restrito ao ambiente escolar: “É uma questão social, e todos precisam estar envolvidos na construção de sujeitos respeitados em suas identidades e especificidades”.

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Professora Sara Wagner York defende presença de professores trans para ampliar visão de mundo | Foto: Arquivo pessoal
Vantagens da presença

Para York, professores e professoras trans auxiliam os alunos, inclusive do ensino básico, a elaborarem suas próprias diferenças e subjetividades.

“Alunos serão pessoas muito melhores ao estarem expostos a professores trans porque a própria dinâmica sexista poderá ser colocada em xeque: ora, se existe a ideia de ‘força para meninos’ e ‘delicadeza para meninas’, uma professora trans que rompe com essa lógica, por ser forte, por exemplo, pode colocar por terra toda essa estrutura. Eu acho que a diferença do corpo é benéfica”, avalia York, que também é uma pessoa com deficiência.

“Na minha sala de aula, como sou cega de um olho, os alunos do 6º ano diziam ‘tá olhando pra onde?’ como forma de constrangimento, e eu explicava. Esse aluno exposto a uma condição de observar as diferenças vai levar isso para outras situações e colocar esse constrangimento de uma forma que não seja mais tolerado”.

Marina Reidel, diretora de Promoção de Direitos LGBT do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, também é pesquisadora em Educação e corrobora o discurso da colega sobre a presença de pessoas trans nas escolas ampliarem a discussão de temas e valores fundamentais, além de apoiar eventuais alunos trans. “Eles não ensinam ninguém a ser LGBT+. Eles simplesmente são profissionais que buscam, com suas histórias, serem reconhecidos como sujeitos de direitos e que sabem que poderão acolher alguém que está vivendo em sofrimento e não consegue dialogar com a família ou com outras pessoas no ambiente escolar”.

Responsabilidade de todos

Para Joane Bastos, há ainda uma lacuna da Academia em aceitar a produção intelectual de pessoas trans. Essa resistência a novos aprendizados, vivências e produções, diz ela, forma professores distantes da realidade nesse sentido. Ela também cita a falta de preocupação de diretores, donos de instituições privadas e outros profissionais da educação em incluir pessoas trans nos seus quadros de funcionários.

“Uma vez que a pessoa trans não está na sala de aula, ou trabalhando dentro de uma instituição de ensino, torna-se muito distante para a realidade dos alunos. Precisamos de autocrítica profunda e procurar integrar a todos nos espaços, dar oportunidade para inseri-los na sociedade de fato”, afirma Bastos.

Ainda assim, a pedagoga reconhece ser uma entusiasta de todo o processo educacional, e acredita que, assim como as que vieram antes, ela está trilhando um caminho de mais acesso e acolhimento para outras pessoas trans no ambiente acadêmico. “Dentro da minha experiência, da minha história de vida, percebi que quanto mais eu me calasse, mais apagada e silenciada eu estaria. E é preciso reverenciar quem me antecedeu, porque elas semearam a terra para que hoje pudéssemos colher algum tipo de fruto. Hoje sou eu quem vou plantar a semente para outras que estão por vir. Nossas histórias são fortes, muitas vezes tristes, mas que daqui para frente possamos contar mais e mais histórias alegres, de superação, de não sucumbir ao sistema transfóbico do nosso país.”

Imagem de capa: Ricardo Matsukawa/TemQueTer

A Gênero e Número é uma empresa social que produz e distribui jornalismo orientado por dados e análises sobre questões urgentes de gênero e raça, visando qualificar debates rumo à equidade. A partir de linguagem gráfica, conteúdo audiovisual, pesquisas, relatórios e reportagens multimídia alcançamos e informamos uma audiência interessada no assunto. O conteúdo da Gênero e Numero é livre de direitos autorais e reproduzido aqui no site da Casa 1 com os devidos créditos.

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