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A história pioneira de João W. Nery em seus livros de memórias

Por Tamara Cleveland, voluntária da Biblioteca Caio Fernando Abreu

De 29 de janeiro a 4 de fevereiro, aconteceu na Casa 1 a VII Semana de Visibilidade Trans e Travesti. O evento, que teve o tema “O Futuro depois da Visibilidade”, contou com diversas atividades representativas, entre elas shows, oficinas, mesas de debate e uma roda de conversa na biblioteca Caio Fernando Abreu com Caê Vasconcelos, sobre seu livro “TransResistência: Pessoas Trans no Mercado de Trabalho”.

Pensar sobre o futuro de uma população que vive no país que mais assassina pessoas trans e travestis no mundo pelo 14º ano consecutivo é, por muitas vezes, refletir sobre o passado, as perspectivas do que já mudou e o que ainda é necessário para a construção de um futuro sem transfobia no Brasil. É nesse cenário de violência persistente que lembramos da trajetória pioneira do escritor e ativista João W. Nery, que em tempos ainda mais opressores foi o primeiro homem trans a passar pela cirurgia de redesignação sexual no país. 

VIAGEM SOLITÁRIA: A TRAJETÓRIA PIONEIRA DE UM TRANSEXUAL EM BUSCA DE RECONHECIMENTO E LIBERDADE

Figura importantíssima para a história LGBTQIAPN+ do Brasil, João narrou sua trajetória no livro autobiográfico. O livro, publicado pela editora Leya em 2011, ganhou uma nova edição em 2019, presente no acervo da biblioteca. Após a sua publicação, Nery se tornou referência como ativista do reconhecimento das pessoas trans perante a sociedade. Símbolo da liberdade de gênero, Nery escreveu um livro comovente e poderoso ao narrar sua jornada de libertação e autoconhecimento.

Em meio à Ditadura Militar (1964-1985), João realizou de forma clandestina cirurgias de mamoplastia masculinizadora, histerectomia e uma neouretra, para poder urinar em pé, procedimentos considerados ilegais na época. “Eu não conhecia ninguém igual a mim. Não era hétero, não era homo, era trans. Mas o que é ser trans? Eu não sabia. Eu só era diferente. Precisava me reinventar”, escreveu João.

De forma envolvente, acompanhamos como ele navegou desde sua infância, onde já se entendia como um menino que gostava de jogar bola de gude na praça com outros garotos, até seus relacionamentos na fase adulta e a experiência de ser pai.

Em um dos capítulos, João conta como conseguiu, com a ajuda de uma amiga, uma nova certidão de nascimento masculina na década de 70, deixando para trás seu nome de nascimento, e com ele seu título acadêmico em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e todo seu currículo de quase 30 anos. É importante lembrar que o projeto de lei sobre identidade de gênero, de autoria dos então deputados federais Jean Wyllys e Érika Kokay, leva o nome João Nery e tramita na Câmara desde 2013. Em 2018, no mesmo ano do falecimento de João, o Supremo Tribunal Federal (STF) garantiu uma vitória em parte da PL, ao aprovar o direito das pessoas transexuais e travestis de alterarem nome e gênero no registro civil sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo.

VELHICE TRANSVIADA: MEMÓRIAS E REFLEXÕES

Como ativista, João W. Nery jamais deixou de refletir e falar sobre o futuro de pessoas trans. Pensamentos que tomaram forma em seu segundo livro de memórias, finalizado pouco antes de seu falecimento e publicado postumamente pela editora Objetiva, em 2019. A obra conta com relatos de outros LGBTs idosos, que constantemente foram vítimas de descaso e que chegaram a ultrapassar a marca dos 50 anos com o sentimento de não terem direito a essa longevidade.

“A velhice na nossa cultura é a partir dos 60, mas se uma mulher trans, por exemplo, fez 50, ela já é uma sobrevivente. Já pode se considerar uma mulher velha. E não tem asilo para os trans velhos, não tem saúde específica para atendê-los. Eles muitas vezes não têm estudo e não têm casa para morar”.

Texto

Descrição gerada automaticamente

DICA EXTRA DE LEITURA

João também é parte integrante do livro “Vidas Trans: A luta de transgêneros brasileiros em busca de seu espaço social”, publicado em 2017 pela editora Astral Cultural. Uma segunda edição com nova capa foi lançada em 2022. O livro reúne quatro pessoas trans: Amara Moira, Tarso Brant, Márcia Rocha e João W. Nery. Seus relatos individuais se unem na força de suas histórias comuns de dor, coragem, luta e libertação. Com momentos de intimidade, os quatro narram suas dificuldades e realizações na busca pelo direito aos seus nomes e corpos.

Esses e outros títulos representativos LGBTQIAPN+ fazem parte do acervo da Biblioteca Caio Fernando Abreu. Conheça o espaço e faça a sua carteirinha de segunda a sábado, das 10h às 19h, na Rua Condessa de São Joaquim, 277, no bairro Bela Vista.

Boa leitura!

Foto de Capa: imagem do acervo pessoal presente no livro “Viagem Solitária”

Citação: Entrevista Agência Brasil

A Casa 1 é uma organização localizada na região central da cidade de São Paulo e financiada coletivamente pela sociedade civil. Sua estrutura é orgânica e está em constante ampliação, sempre explorando as interseccionalidade do universo plural da diversidade. Contamos com três frentes principais: república de acolhida para jovens LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) expulsos de casa, o Galpão Casa 1 que conta com atividades culturais e educativa e a Clínica Social Casa 1, que conta com atendimentos psicoterápicos, atendimentos médicos e terapias complementares, com foco na promoção de saúde mental, em especial da comunidade LGBT.

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