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Afinal, as crianças sabem lidar com o amor entre pessoas do mesmo gênero?

Por Marcela Tiboni

Certa vez, quando eu tinha 10 anos, passeava de carro com o meu pai quando vi dois rapazes se beijando. Estavam sentados próximos a um viaduto. Aquela cena me chamou a atenção, não conseguia parar de olhar, virei o rosto, fixei meus olhos, torci meu corpo, tudo para que pudesse ver melhor a cena do beijo. Quando percebi meu pai me observava pelo retrovisor, diante um curto silêncio em que nossos olhos se cruzaram ele me disse: eles estão namorando. Simples, rápido, curto. Sem me dar chances para elaborar uma pergunta, sem permitir que eu aprofundasse o assunto, ele simplesmente respondeu o que sabia, ou o que tinha para me entregar, e encerrou o assunto começando um outro qualquer. Afinal, pensava ele, eu era uma criança e crianças não precisam saber sobre amor entre pessoas do mesmo
gênero.

Já na adolescência, conforme minha curiosidade e desejo por beijar uma outra garota se expandia, era comum escutar adultos insistindo na máxima:

— Não tenho preconceito, mas os homossexuais não precisam se beijar na rua, o que eu vou falar para meu filho se ele ver? Como vou explicar? Respeitem as crianças!

Já não bastassem meus próprios dilemas e descobertas da adolescência tinha ainda que conviver com o receio de pais, mães e responsáveis de que explicitar o amor entre lésbicas nas ruas traria problemas de relação entre crianças e família, ou crianças e sociedade. E eu, no auge dos meus 16 anos, não queria trazer problemas para nenhuma criança.

Permitam-me fazer um corte seco no tempo, e trazer esta reflexão para o presente. Comecei a me relacionar com mulheres ao final da minha adolescência. Namorei algumas. Aos 33 anos me casei, e aos 36 me tornei mãe ao lado de outra mãe. Tivemos filhos gêmeos. Assim que meus filhos nasceram minha cabeça borbulhou de pensamentos, eram tantos, entre medos, angustias, preocupações. E obviamente a lembrança de que crianças não podiam ver o amor entre pessoas do mesmo gênero, sob risco de problemas na relação, com a própria família, com a sociedade, consigo mesma.

Bem, viveriam então meus filhos em eterno problema, porque tinham duas mães apaixonadas e que se beijavam a todo instante que tinham oportunidade! Era chegada a ora de repensar a máxima de que “crianças não sabem e não precisam lidar como o amor de pessoas do mesmo gênero”. Meus filhos nasciam em um lar de duas mães e desde o primeiro segundo de suas vidas conviveriam com este amor.

Vê-los crescer me trouxe inúmeras oportunidades de conversar sobre o amor entre pessoas, seja ela quem for. Sobre composições familiares, casamento, gestação, transição de gênero e outros tantos assuntos que surgiam conforme eles iam crescendo e observando e absorvendo o mundo a sua volta. Viram o amor entre suas mães, viram famílias com dois pais, tiveram uma educadora que transicionou de gênero enquanto era professora deles na escola, viram a filha de uma amiga namorar meninos e meninas. E tudo isso virou assunto, alguns mais salientes, outros com uma obviedade por parte deles que qualquer conversa parecia se tornar desnecessária. Até que eles adentraram uma escola grande, com cerca de 250 alunos e ali seria uma grande oportunidade para que eu e eles pudéssemos perceber e constatar: afinal,
crianças sabem lidar com o amor entre pessoas do mesmo gênero?
.

Você, assim como eu, já sabe a resposta. Sim. É claro que sim! E eu poderia passar uma tarde inteira escrevendo sobre as tantas situações em que dialoguei com crianças a respeito da diversidade, e quão ricos foram estes momentos. Um criança de 8 anos queria entender como duas mulheres poderiam ser casadas? Ela abordou a minha esposa por 3 dias seguidos fazendo a mesma pergunta, um tanto incrédula de que esta informação só havia lhe chegado aos ouvidos depois de tantos anos de nascida. Outra criança, de 5 anos, queria entender como meu filho tinha duas mães e nenhum pai? Já que a colega de classe tinha também duas mães, mas tinha outros dois pais (sua mãe e pai haviam se separado e casado novamente). Outra queria saber como minha filha fazia quando as duas mães diziam para ela tomar banho? Ao passo que ela respondeu: eu vou e tomo o banho, ué, queria que eu fizesse o que? Outra, de 4 anos, queria saber como nossos filhos foram feitos, se não tinha uma semente para colocar na barriga? Na maioria das vezes eu me abaixo, escuto, respondo, pergunto e sigo a conversa com a criança até entender que o assunto está, por ora, encerrado. Nunca, nem uma única vez, vi no rosto das crianças uma feição que pudesse sugerir trauma, desespero, raiva. O que vi foram reações de surpresa, de conhecimento, de reflexão. Conversas que praticamente todas as vezes terminaram com sorrisos e um olhar distante de quem diz: agora eu entendi!

Crianças são tão capazes quanto adultos. Capazes de conversar, de compreender, de perguntar, de duvidar, de discordar e de acumular novos conhecimentos. Para elas saber que duas mulheres podem se casar e ter filhos talvez possa ser tão desconhecido como saber porque os aviões voam sem cair, ou porque peixes respiram embaixo da agua, ou como o corpo consegue ficar de ponta cabeça em uma bananeira. E da mesma forma amorosa e paciente que nós explicamos sobre os peixes, os aviões e as bananeiras, porque não explicaríamos sobre o amor, o casamento, o beijo, os filhos de famílias quaisquer, seja hetero ou homo, seja cis ou não, seja trans ou não binário?

Voltando ao início do meu texto, acredito que o mundo seria mais sincero se as frases fossem reescritas da forma correta:

— Eu não tenho preconceito, mas os homossexuais não precisam se beijar na rua, o que eu vou falar para MIM MESMO SE meu filho se ele ver? Como vou explicar PARA ELE QUE EU SOU HOMOFÓBICO? Respeitem OS PAIS QUE QUEREM ESCONDER O MUNDO Das crianças!

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