Levantamento da Diadorim mostra como atuaram Daiana Santos (PCdoB-RS), Dandara (PT-MG), Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG)
Por Jess Carvalho para Agência Diadorim
Diante do Congresso Nacional mais conservador da história democrática do Brasil, as deputadas federais Daiana Santos (PCdoB-RS), Dandara (PT-MG), Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG) — que se autodeclaram lésbica, bissexual e travestis, respectivamente — encerraram o primeiro ano desta legislatura apresentando, ao todo, 74 projetos de lei distintos, sendo quase 30% voltados à população LGBTQIA+.
O balanço foi feito pela Agência Diadorim, com base em dados da Câmara. Do total de PLs apresentados pelas parlamentarem LBTs, 21 beneficiam diretamente a população LGBTQIA+. Sete deles são voltados ao combate à violência; cinco, dedicados à instituição de datas celebrativas; três, com foco em emprego e trabalho; outros três, para cidadania. Cultura, educação e saúde são áreas que têm, cada uma, um projeto de lei proposto.
Apesar da atenção especial à população LGBTQIA+, as parlamentares não se restringiram e atuaram em diferentes frentes, lançando um olhar interseccional para a formulação de projetos de lei, considerando também marcadores sociais como raça e classe.
“Dandara se destacou pela defesa das cotas e das mulheres negras. Daiana Santos, pela defesa das mulheres lésbicas e por isso mesmo sofreu ameaças de estupro ‘corretivo’. Erika Hilton se destacou pela defesa das causas trans e contra a transfobia institucional na Câmara. Já Duda Salabert possui nítida preocupação com as causas ambientais, além de ter se destacado com a vitória judicial contra Nikolas Ferreira”, aponta Cleyton Feitosa, doutor em Ciência Política pela UnB (Universidade de Brasília) com tese premiada sobre movimento LGBTI+ e partidos políticos.
Apenas Erika Hilton alcançou a aprovação de dois dos projetos que apresentou: o PL 2245/2023, que institui a “Política Nacional de Trabalho Digno e Cidadania para População em Situação de Rua – PNTC PopRua”, e o PL 380/2023, que cria diretrizes para fomentar “a construção de cidades resilientes às mudanças climáticas”.
Os projetos protocolados pelas demais deputadas seguem em tramitação, e o PL 4/2023, proposto por Dandara, que visava estabelecer um protocolo de segurança para as mulheres em casas de festas, discotecas, boates e bares, foi arquivado.
“Este é o primeiro mandato de Erika Hilton na Casa, ela nunca tinha sido parlamentar na Câmara dos Deputados antes, e foram aprovações em tempo recorde. Isto é, sem dúvida nenhuma, um mérito dela e da equipe dela na mobilização que foram capazes de fazer no Congresso e com atores sociais mobilizados”, comenta Evorah Cardoso, coordenadora de pesquisa e incidência da ONG VoteLGBT.
Contudo, a especialista ressalta que a atuação parlamentar não se resume à aprovação de PLs. “Tem um trabalho de denúncia, fiscalização, envio de ofícios para órgãos públicos, solicitação de audiências públicas, defesa contra ataques que são proferidos dentro das próprias casas legislativas contra a pauta e contra as próprias parlamentares, e esse é um trabalho que não pode ser invisibilizado”, diz.
Feitosa comunga da avaliação da colega. “A própria presença de grupos historicamente excluídos do parlamento, a presença de seus corpos, discursos e os enfrentamentos que fazem dentro de uma instituição tradicionalmente conservadora são fatores que devem ser levados em conta. Termos não uma, mas duas mulheres trans acompanhadas de outras mulheres lésbicas e bissexuais no parlamento é uma grande vitória dos movimentos sociais e da desigual democracia brasileira”, pontua.
Daiana Santos celebra a possibilidade de ser a primeira deputada federal negra e sapatão a representar o Rio Grande do Sul e se fazer ouvida na Casa. “Realizamos a 1ª Sessão Solene do Dia da Visibilidade Lésbica da história do Congresso Nacional. Na Câmara Federal, pela primeira vez na história há uma Bancada Nacional LGBTI+, com parlamentares a nível municipal, estadual, distrital e federal. No Congresso, temos uma Frente Mista em Defesa da População LGBTI+, envolvendo Câmara e Senado. Estamos construindo ações conjuntas e suprapartidárias para impedir que os direitos conquistados sejam perdidos e aprimorar as legislações”, diz, em entrevista.
PLs pró-LGBTQIA+
As quatro deputadas apresentaram 21 PLs distintos diretamente relacionados a demandas da população LGBTQIA+, ou seja, 28,3% do total de projetos protocolados durante o período. Destes, cinco têm a ver com datas comemorativas e/ou de luta reivindicadas pelos movimentos sociais, ou seja, 23,8%.
São eles:
2654/2023 – Dia Nacional do Orgulho Trans, 15 de maio
3278/2023 – Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, 29 de agosto
4639/2023 – Dia Nacional do Orgulho Bissexual, 26 de setembro
4886/2023 – Dia Nacional da Visibilidade Trans, 29 de janeiro
5687/2023 – Dia Nacional de Combate à Mutilação Genital Infantil, 26 de setembro
A coordenadora de pesquisa do VoteLGBT, Evorah Cardoso, defende que, embora se possa pensar que esses são PLs de baixa complexidade, eles constituem marcos importantes para a população LGBTQIA+, que ainda carece de visibilidade.
“Temos as datas às quais os movimentos aderem e utilizam para sua própria mobilização, mas não são datas oficialmente constituídas e não dá para negar que quando existem essas datas oficiais, existe uma mobilização no ensino, na mídia, na produção de dados e até mesmo na produção legislativa sobre elas”, explica.
Além disso, os demais projetos apresentados, na avaliação da especialista, são complexos e demandam articulação com diversos atores sociais relevantes.
Duda Salabert foi quem mais apresentou projetos que podem beneficiar a população LGBTQIA+, totalizando dez propostas – oito de sua autoria. A deputada propôs o PL 3627/2023, que busca proibir a prática e a divulgação de terapias de conversão de sexualidade e/ou expressão e identidade de gênero, pauta que ganhou repercussão após o suicídio de Karol Eller. A parlamentar também trabalhou pela empregabilidade da população trans, com o PL 960/2023, que dispõe sobre a reserva de vagas do Sistema Nacional de Empregos para pessoas em situação de rua, travestis e demais pessoas trans; e para que o Estado gere dados sobre bebês intersexo, duplas maternidades e paternidades, a partir do PL 2643/2023.
Erika Hilton teve a segunda melhor performance, do ponto de vista quantitativo. Foram oito PLs apresentados, sendo seis de sua autoria, com destaque para o PL 3109/2023, que “estabelece a reserva de vagas para pessoas trans e travestis nas universidades federais e demais instituições federais de ensino superior”; o PL 1058/2023, que obriga o Disque 180 a “garantir atendimento e encaminhamento especializado às mulheres transexuais e travestis vítimas de violência”; e o PL 2022/2023, que “inscreve no Livro dos Heróis da Pátria o nome de Tibira do Maranhão, indígena reconhecido como primeira vítima fatal documentada da homofobia no Brasil, assassinado em 1614”.
Daiana Santos protocolou quatro PLs voltados às pessoas LGBTQIA+, sendo dois de sua autoria: o reconhecimento do Dia Nacional do Orgulho Bissexual, PL 4639/2023; e a implementação do Protocolo Nacional de Acolhimento e atendimento à Mulher Lésbica, vítima de violência física, sexual e/ou psicológica, PL 4155/2023.
Dandara, por sua vez, foi quem menos apresentou PLs pró-LGBTQIA+ – ao menos de maneira direta, ou seja, sem levar em conta as interseccionalidades que atravessam essas vivências. Ela propôs apenas o PL 4518/2023, que tipifica o crime de violência política contra LGBTs – pauta essencial após um ano de perseguições e ameaças de “estupro corretivo” a parlamentares lésbicas, bissexuais ou aliadas da população LGBTQIA+.
Cardoso destaca que esses dados são relevantes para avaliar a atividade dos mandatos, que têm pessoas LGBTQIA+ como base eleitoral, porém, o número de projetos pró-LGBTQIA+ não deve balizar o trabalho das parlamentares. “O fato de elas serem LBTs é algo que vai atravessar várias outras pautas, então é importante pensar a questão LGBT+ de maneira transversal, e não como pauta única”, afirma.
Desafios
Apesar da produtividade das parlamentares, os especialistas ouvidos pela Diadorim acreditam que não teremos avanços em leis pró-LGBTQIA+ nesta legislatura.
“A gente não tem nenhuma lei até hoje que foi aprovada a favor da população LGBT+, e não acho que vai ser nessa composição de Congresso que a gente vai conseguir isso”, fala Cardoso, apontando o alto número de cadeiras ocupadas por parlamentares conservadores e a dinâmica LGBTfóbica da Casa, que dificilmente coloca em pauta, muito menos aprova projetos de lei voltados às pessoas LGBTQIA+.
“No momento, não acho que tenhamos condições de avançar nessas pautas para além dos debates e das táticas de bloqueio e resistência”, completa Feitosa.
“Eu olho para o lado e vejo poucas mulheres negras periféricas na Câmara, historicamente ocupada por homens, ricos e brancos. Ser mulher e preta, na política, significa também ser alvo de violência política e racista”, diz Dandara, ressaltando que é preciso se manter combativa e resiliente para seguir carreira política.
Daiana Santos também menciona o racismo como um dos principais desafios do dia a dia. “Cada palavra discriminatória, cada olhar de desprezo, cada barreira injustamente colocada em meu caminho, foi um lembrete doloroso das lutas que ainda temos que travar”, lamenta, referindo-se às violências que sofreu este ano.
“Surgiram ameaças de estupro ‘corretivo’, ataques racistas nas redes sociais, fora todo o processo de silenciamento que enfrentamos todos os dias nos plenários e comissões por parte dos parlamentares homens”, conta a deputada gaúcha. “Isso é uma forma de retardar os nossos movimentos dentro e fora da política, porque precisamos construir ações para investigar os suspeitos e mitigar esses casos.”.
Erika Hilton e Duda Salabert também foram procuradas pela Diadorim, mas não responderam aos questionamentos enviados até o fechamento desta reportagem.
Apesar dos desafios, a pesquisadora do VoteLGBT celebra a possibilidade de criarmos contranarrativas. “Houve uma mudança qualitativa na cobertura midiática em relação aos parlamentares LGBTfóbicos, porque tudo o que eles querem é palco em cima dessa pauta, só que a partir do momento que temos representatividade, a nossa voz é escutada, então, para cada absurdo falado, temos uma fala brilhante dessas parlamentares e isso faz com que elas cresçam em capital político também.”