Por Cleiton Zóia Münchow, voluntário da Biblioteca Caio Fernando Abreu
A boa nova é que não há corpos errados: há sociedades erradas
(LANZ. 2015, p. 328).
O que fazer quando o coração grita de angústia? Como tornar-se o que se é? Letícia Lanz, uma das figuras intelectuais incontornáveis do movimento LGBTQPIA+ brasileiro, enfrentou essas e outras questões em seu último livro. A psicanalista que, em 2015, consagrou-se como autora do primeiro compêndio ou livro introdutório sobre os estudos transgêneros escrito por uma pessoa transgênera em língua portuguesa: O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a conformidade e a transgressão das normas de gênero, em 2020 foi a primeira mulher trans a se candidatar à prefeita da cidade de
Curitiba e, em 2021, consolidou-se com sua autobiografia: A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero. Ambos os livros são muito bons e os indico, porém, o presente texto é um convite à leitura do último, pois reúne uma qualidade rara: a beleza estética do dizer com a importância e rigorosidade do que é dito, acrescente-se o fato de que, na Biblioteca Comunitária Caio Fernando Abreu, contamos com um exemplar disponível para leitura de pessoas visitantes ou associadas.
Torna-te o que tu és, o livro de Letícia Lanz trata desse importante imperativo ético que remete à ideia de um saber ethopoietico, um saber implicado na produção, modificação e transformação de um modo de existir, de uma maneira de ser. Na cama da UTI, depois de sofrer um ataque cardíaco que a colocou em contato com a morte, Letícia percebeu que não podia mais continuar a viver com o gênero que lhe foi imposto ao nascer: “Ser uma pessoa e me apresentar ao mundo como outra: essa foi a divisão íntima
que carreguei dentro de mim até meu coração gritar” (LANZ. 2021, p.12). Ela ouviu os gritos do seu coração e decidiu pela vida, resolveu “romper de uma vez por todas com os bloqueios que nos mantém aprisionados de nós mesmos, nos impedindo de ser livres e felizes” (LANZ. 2021, p.14). Letícia Lanz, aos 50 anos decidiu produzir, modificar, transformar quem ela era. Letícia Lanz, sob a luz azulada do teto da UTI, decidiu transicionar, decidiu tornar-se o que ela era por meio de um processo ativo de construção.
A autora relata que trocou uma vida segura por uma vida com os perigos da transfobia, mas, mesmo assim, “infinitamente mais digna, prazerosa e verdadeira do que a que eu estivera levando até ali” (LANZ. 2021, p.14). Tornar-se aquilo que se é, aprendeu Letícia com seu coração e nós podemos aprender com ela, é uma necessidade vital da qual não podemos fugir.
Angela Autran Dourado, companheira de Letícia, no Posfácio do livro, escreveu que não costuma se expor e que se expôs sua vida com a autora o fez por ter a “intenção de que esse relato sirva de alento e estímulo às pessoas que se encontram em situações semelhantes à da Letícia, para sentirem que, sim, é possível” (LANZ. 2021, p.103). Letícia Lanz não se coloca no lugar do exemplo, mas as palavras de Dourado sobre o Posfácio, podem ser aplicadas ao livro inteiro, a escritura de Letícia Lanz serve para que
pessoas em situação semelhantes à dela sintam que é possível ouvir a voz do próprio coração antes que ele grite a exigência de uma mudança da nossa maneira de ser. Letícia Lanz só veio a entender quem ela era quando se deparou com o conceito de gênero (Cf. LANZ. 2021, p.21), o entendimento deste conceito foi fundamental para sua construção num registro fora do binário. O conceito de gênero auxiliou Letícia Lanz no processo de produção de um novo êthos, uma maneira de ser, uma identidade sem uma cisão entre o ser e o aparecer. Letícia Lanz passou do armário ao Na Moral, programa televisivo de projeção nacional, de uma vida angustiada a uma vida livre.
Em meio ao mar de discursos patologizantes o conceito de gênero permitiu que Lanz compreendesse que não nasceu “no corpo errado, mas na sociedade errada” (LANZ. 2021, p. 23). Em nossa sociedade, como bem observa a autora, “toda forma de expressão identitária que fuja da relação amplamente naturalizada entre sexo e gênero é tratada como transgressão, patologia e/ou pecado, tornando-se, por consequência, objeto de repúdio ou de represália por parte da sociedade” (LANZ. 2021, p.24). O gênero “é um dispositivo absolutamente fundamental para o entendimento da estrutura de organização
e de funcionamento da sociedade, designando o conjunto de papéis, atribuições e responsabilidades, direitos, deveres, privilégios e restrições impostas aos indivíduos em função do sexo genital” (LANZ. 2021, p. 21). O gênero, portanto, não deve ser pensado como uma decorrência do sexo biológico que a pessoa apresenta, mas como uma imposição que a sociedade estabeleceu em relação aos sexos. Confrontando Freud e seguindo a filósofa Simone de Beauvoir, Lanz entende que anatomia não é destino (Cf.3 LANZ. 2021, p. 22), e, enquanto transgente, entende que anatomia não é princípio, o corpo é o prisioneiro de uma sociedade.
“Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além” (LEMINSKI. 2013, p.228), a sentença filosófica do poeta Leminski aplica-se perfeitamente a experiência de Letícia Lanz, que, com sua posição libertária, desafia os binarismos e pergunta: “é necessário ter um corpo estereotipado de mulher para poder expressar uma identidade de gênero feminina?” (LANZ. 2021, p.57). Lanz foge aos estereótipos, desempenha o papel de marido, pai e avô, pois entende que sua coerência não é determinada por um gênero imposto ou mesmo assumido, sua coerência é o efeito de sua singularidade como gente: “não sou nem homem, nem mulher, nem trans, mas tão somente Letícia Lanz, uma construção de mim mesma”(LANZ. 2021, p.25). Lanz conta que nunca acreditou “ser uma mulher presa num corpo de homem” (idem, p.57), mas “uma pessoa presa dentro de uma concepção deturpada e falaciosa do ser humano” (Ibidem). “Por isso mesmo”, continua Lanz, “meu corpo é que sempre foi prisioneiro da sociedade” (LANZ. 2021, p.25), “aliás, ultimamente, estou me chamando não mais de
transgênera, mas de transgente” (Ibidem). “Ser você mesma”, escreveu a autora, “é algo que pode ser reprimido e recalcado, mas nunca riscado da sua lista de desejos absolutamente fundamentais. O destino de cada pessoa é ser e se expressar no mundo tal como ela é. Essa é a principal, talvez a única, razão de ser da existência humana, e ninguém vai se livrar de ao menos tentar realizar essa tarefa enquanto estiver viva” (LANZ. 2021, p. 47). Ao entender o conceito de gênero e construir-se a si mesma modificando, em seu processo de transição, sua maneira de ser, Letícia Lanz, sendo exatamente aquilo que ela é, por meio do trabalho com a palavra, consegue nos levar além.
Foto de capa: Lucas Pontes / Companhia das Letras/ Divulgação
BIBLIOGRAFIA
LANZ, Letícia. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero: uma introdução aos estudos trangêneros. Curitiba: Transgente, 2015.
LANZ, Letícia. A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero. Posfácio de Angela Autran Dourado. -1 ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2021.
LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. – 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.