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A visibilidade das línguas indígenas

O Ano Internacional das Línguas Indígenas, campanha promovida pela Unesco em 2019 para a sensibilização contra as ameaças que perpassam as línguas indígenas e as suas comunidades linguísticas, terminou, mas o assunto continuará em relevo e em debate nos próximos anos. O período de 2022 a 2032 será a Década Internacional das Línguas Indígenas, conforme declarou a Unesco no dia 17 de dezembro de 2019, durante as atividades de encerramento deste ano internacional das línguas indígenas.

Penso que, este movimento, iniciativa ou ação, mais do que uma comemoração, é um alerta para visibilizar a diversidade linguística do mundo, mas também para que atentemos para a fragilidade destas línguas, aliás, das condições de vida e existência de seus falantes. Sobretudo num contexto onde seus territórios não são respeitados e estão ameaçados; a diversidade cultural e linguística não são respeitadas e os agentes sociais falantes destas línguas são estigmatizados.

No Brasil, atualmente, são faladas entre 160 e 180 línguas indígenas de diversas famílias linguísticas, e em diferentes estágios e situações de vitalidade. Não temos um retrato da situação sociolinguística das diversas etnias do nosso país.

Algumas questões importantes que necessitaríamos compreender para entender: quais posturas e atitudes têm as diferentes gerações e os grupos em relação ao uso de suas línguas indígenas? como e onde ocorre o uso destas línguas indígenas nos espaços urbanos, quais são as crenças e percepções sobre as mesmas e como os indígenas são percebidos pelos não indígenas neste contexto? Pois é possível observamos um processo de silenciamento que é “naturalizado” pelos próprios falantes que acreditam que suas línguas não têm valor, são inferiores ou menos bonitas:

“… eles se sentem inferior porque falam língua indígena…todas as línguas são bonitas, mas com o português a gente se acha mais bonito, mais superior…” (Indígena Paumari);

“Meus filhos falam que nossa língua é diferente, é pesada…. Eles acham o Paumari uma língua feia, mas eu digo para eles que é bom falar outras línguas para os brancos não entenderem, mas eles dizem que Paumari é feio justamente porque os brancos não entendem. Dentro de casa, a gente fala tudo entremeado Paumari e Português por isso eu falo que é misturado igual carne com banha… Meus filhos começam a mangar de mim quando eu falo com eles em Paumari.” (Indígena Paumari);

“Eles têm sim, eles têm medo que os outros fiquem zombando deles, mas eu falo para meus filhos assim: o jeito do índio é assim… quem sabe o idioma da gente é muito mais importante do que só saber Português porque aí quando você não quer dizer nada assim na frente do outro, daí a gente só fala na língua…eu acho tão engraçado Jarawara na praça quando eles conversam assim quando eles querem dizer alguma coisa, eles falarem na língua deles mesmos. E isso é que eu digo para minhas filhas que é importante. A mais pequena, a menor não tem vergonha, mas as minhas filhas mais velhas (adolescentes), elas têm vergonha” (Indígena Paumari).”

Muro em São Gabriel da Cachoeira citando os nomes de diferentes indígenas do Alto Rio Negro (Foto: Ana Carla Bruno)

As representações e os usos da língua portuguesa e das línguas indígenas na cidade podem variar internamente em cada grupo, de acordo com suas experiências particulares e as ideologias linguísticas que aderiram. Algumas famílias internalizaram as representações estigmatizadas da população regional não indígena a respeito de suas línguas e culturas. Para que estas línguas continuem sendo faladas, cantadas, escutadas, contem histórias, é preciso que seus falantes estejam vivos e sejam respeitados.

Ninguém abandona ou “desiste” de sua língua materna porque quer. São diversos os fatores, situações, contextos, trajetórias que levam um indivíduo “perder” sua língua. O que observamos é que, vivendo nas cidades, muitos destes indígenas frequentam escolas que desconhecem suas histórias, suas línguas e experiências. E desta forma seus corpos e suas línguas são estigmatizados até ajustarem-se a novas formas de se portar e falar, como um ritual de passagem em que o indivíduo deve atravessar a fim de mudar seu status ou sua posição social

No decorrer da história do nosso país, há uma política de estado que em muitos casos vai silenciando estas línguas. Por outro lado estamos notando uma efervescência de micropolíticas linguísticas que são acionadas pelos próprios indígenas que resistem e tentam manter suas línguas. Como no caso dos Paumari que vivem na cidade de Lábrea, no sul do Amazonas; dos Tikuna que vivem no bairro Cidade de Deus em Manaus; dos Pataxós no sul da Bahia; dos Kokama e dos Apurinã, também no Amazonas, só para citar alguns exemplos. Estas línguas são tão importantes quanto o português, o inglês ou o francês. E seguimos acreditando que elas podem e devem ser faladas para além dos espaços domésticos, mas também nos espaços acadêmicos, por que não? Mas para isso seus falantes necessitam ser respeitados.

Por Ana Carla Bruno


A foto que abre este artigo mostra o antropólogo indígena Dagoberto Azevedo, escrevendo em sua língua (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)


Ana Carla Bruno é antropóloga e linguista formada pela  Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, em 2003. É pesquisadora do Inpa desde 2004 e trabalha na Amazônia desde 1991. É professora colaboradora do Programa de Pós- Graduação em Antropologia  Social da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

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