Por Bianca Andrade
O amapaense se acostumou a pagar caro e receber esmola de serviço. Quem diz é o historiador Raylan Morais, morador do bairro Universidade, na zona sul de Macapá. O desabafo dele tem a ver com o último apagão no Amapá, em 8 de abril, mas também com os outros três blecautes de energia elétrica ocorridos nos últimos cinco meses e as contas de luz que não param de chegar, mesmo sob essas condições. “É uma contagem injusta, o contribuinte está pagando pelo apagão, sendo que ele foi vítima.”
Durante três horas, das 18h34 às 21h40, 15 municípios amapaenses ficaram às escuras. Houve também prejuízo no fornecimento de água. A Linhas de Macapá Transmissora de Energia S.A. (LMTE) informou que a subestação Macapá e seus três transformadores da subestação funcionaram sem intercorrências, mas não negou a falha. A resposta da LMTE para a cobrança da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) sobre o problema é singular: “Tal evento ocorre diariamente no Brasil, e no caso particular expõe a fragilidade do sistema de energia do Amapá, que não conta com redundância devido a questão de planejamento setorial”.
A fragilidade ficou notória nacionalmente em novembro de 2020, durante a pandemia do novo coronavírus, quando o sistema de energia do Amapá colapsou. A redundância se refere a um sistema alternativo de geração de energia que cobre quando um outro falha. No Amapá, não há um plano B. Para a maioria da população, no fatídico apagão foram cinco dias ininterruptos sem luz e mais três semanas com rodízio de energia.
Raylan relembra o grande apagão de 2020 e afirma que, de lá para cá, as justificativas e promessas de melhorias divulgadas pelas empresas e pelo governo não são vistas na prática. Quem paga é o contribuinte, afirma Morais, pois muitos perderam eletrodomésticos, noites de sono e isso não é levado em consideração diante do caos energético que o Amapá se encontra.
Na periferia e em comunidades carentes, os serviços de fornecimento de água e luz mostram deficiências rotineiras. Em março, algumas casas ficaram cerca de 10 dias sem água, outras tendo a entrega do produto em quantidade reduzida e condições insalubres para o consumo. E sempre que chove, o amapaense se acostumou a ver oscilações na geração de energia.
Moradora de Pracuúba, município localizado no centro-leste do Amapá e distante 191,7 quilômetros de Macapá, a professora de matemática e física Arlene Pires se preocupa com as habituais faltas de energia e água. Já houve época em que a comunidade ficava em média três dias em um mês sem luz. Já o fornecimento de água fica disponível até as 21 horas e só retorna por volta das 6h30 ou 7h30 do dia seguinte.
“Quando falta energia, falta água, e normalmente o sistema de telefonia fica fora de área, um caos total. Como moro no menor município do estado, o menos evoluído em tudo, a população reclama em casa. Mas na hora de lutar pelos seus direitos, não se movem, acham que tudo aqui é política ou não dará em nada”, lamentou Arlene.
A professora se mudou há 11 anos para Pracuúba após ser aprovada em concurso público. Ela é casada e tem dois filhos, Arthur Josh, de 7 anos, e Alberto Valentino, de 9, ambos autistas moderados. As crianças sofrem muito com a falta de luz. “Eles não gostam do calor. Quando faltou luz, o Alberto disse: ‘Vamos pra aventura papai’, lugar que ele odeia, mas prefere estar lá durante os apagões. É o retiro do pai dele, onde não tem energia elétrica e há uma criação de animais”.
A falha de 8 de abril
A interrupção de 8 de abril não foi relacionada a problemas de distribuição. “Houve uma ocorrência na linha de transmissão do Sistema Interligado Nacional (SIN), de 230 KV, no trecho Jurupari-Laranjal do Jari, na divisa entre Pará e Amapá, o que provocou a interrupção do serviço em todo o estado, com exceção do município de Oiapoque”, relatou por nota a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA).
O Operador Nacional do Sistema Elétrico informou que, naquela data, houve a interrupção no fornecimento de 200MW de carga no sistema elétrico que atende o Amapá e que avaliará as causas da ocorrência junto aos agentes envolvidos.
A Companhia de Água e Esgoto do Amapá (Caesa) detectou problemas em uma das bombas da Estação de Captação de Água Bruta. Segundo a instituição, foi registrada perda de 20% na produção de água. No dia 10, o sistema de abastecimento de Macapá precisou entrar em manutenção, visando manter atendidas áreas onde existem hospitais.
Em toda a capital Macapá, com exceção do centro, houve diminuição na distribuição de água. Mas moradores do bairro central contestaram, pois muitas casas ficaram sem água nas torneiras por mais tempo do que o previsto.
A conservação das vacinas
O Amapá encontra-se na fase vermelha do plano de enfrentamento da Covid-19. Durante esse último apagão, houve questionamentos sobre a conservação dos imunizantes. As vacinas precisam de uma temperatura adequada de refrigeração para ser acondicionada e garantir sua estabilidade.
“É o que chamamos de rede de frios, que os serviços de saúde devem ter em sua estrutura. Com a falta de energia, é retirada do refrigerador e acondicionada em cubas com gelox, mas logo esse gelox também não garante a refrigeração adequada com o decorrer do tempo. Sem energia, sem redes de frio, consequentemente perda de vacina”, alertou o coordenador municipal do Serviço de Atenção Domiciliar da prefeitura de Macapá, o enfermeiro Bruno Vaz.
Até o momento não houve manifestação por parte do governo e prefeituras sobre prejuízos quanto à conservação do estoque das vacinas ou nos atendimentos nos hospitais da rede pública devido ao apagão e falta de água. A Amazônia Real tentou contato com o secretário de Saúde, mas não teve retorno.
Segundo o consórcio de veículos de imprensa, o Amapá é o estado lanterna em vacinados da 1ª dose, com cerca de 10,2% de sua população imunizada, abaixo dos 14,8% da população brasileira. Até 29 de abril, foram aplicadas 86.335 doses do imunizante.
Bruno Vazexplicou ainda que a falta de energia elétrica é potencialmente perigosa para a vida das pessoas que recebem um cuidado domiciliar e pode contribuir para o agravamento ou uma nova hospitalização. “São pacientes que necessitam de aspiração de vias respiratórias, nebulização contínua, acondicionamento de medicamentos que necessitam de refrigeração como insulinas para quem controla a diabetes e até mesmo o fornecimento de água para consumo e para higiene”, salientou.
Sucateamento x privatização
Rogério Batista Pantoja, administrador na empresa Caesa, trabalha na área operacional e atualmente está à disposição do Sindicato dos Urbanitários no Amapá. Enquanto representante dos trabalhadores da CEA, Caesa, Eletronorte, Ferreira Gomes Energia, companhias responsáveis pelo fornecimento de energia no Amapá, o sindicato tem cobrado do governo estadual os investimentos necessários em infraestrutura.
“Essa tem sido uma das nossas bandeiras de lutas constantes, casada agora com o processo de privatização defendido pelo governo do Estado, que na verdade ainda tem uma certa indecisão. Uma hora diz que vai vender tudo, em outra diz que é uma parceria público-privada”, diz Rogério.
Segundo Pantoja, o sindicato também tem cobrado do governo transparência. Ele afirma que o setor necessita de muitos recursos, mas considera uma contradição o governo federal propor financiar esse processo pela iniciativa privada com recursos do BNDES, enquanto se recusa abrir linha de crédito para os estados.
“Estamos falando de uma privatização em meio a uma pandemia de um setor bastante estratégico e importante. Muitos países da Europa, da América Latina e cidades principalmente do Sul e Sudeste estão debatendo a volta do serviço para a tutela do Estado.”
O Amapá tem 16 municípios, hoje, alguns são atendidos pela Caesa com abastecimento de água, estrutura, trabalhadores, produtos químicos, manutenção, sem arrecadação, sendo uma contrapartida do Estado.
A própria Estação Central de Tratamento de Água da Caesa, localizada no bairro do Trem, está em obras e serviços de ampliação há mais de quatro anos, sendo que a previsão de término estava prevista para fevereiro de 2018.
A obra foi orçada em mais de 19 milhões de reais, com recursos captados por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), Caixa Econômica Federal e contrapartida do governo do Amapá no valor de 6 milhões de reais.
Pantoja considera que os constantes apagões são reflexos do processo de privatização nesses setores estratégicos. No início, lembrou o sindicalista, os órgãos responsáveis diziam que foi em decorrência da chuva, depois veio a constatação da falta de manutenção, sobrecarga no transformador. O equipamento reserva estava há um ano esperando manutenção. Até hoje a Aneel e os demais órgãos fiscalizadores não cobraram a fiscalização desse grave problema.
“Isso tem um reflexo diretamente, se não tem energia, não tem água. A exemplo do apagão do dia 8, queimou parte do sistema de bombeamento da Caesa por conta da falta de energia”, disse Pantoja. “Querem construir mais hidrelétricas na Amazônia e metade da população continua no escuro. Se o estado brasileiro não assumir esse processo, não será a iniciativa privada que vai fazer a água ou o saneamento básico chegar na casa de cada um da Amazônia”, concluiu.
Opções energéticas
Com área total de 142.470,762 km² (IBGE, 2019), o Amapá possui diversificadas fontes energéticas, potencialmente produtora de energia elétrica no cenário norte brasileiro, na extremidade oriental da Amazônia Brasileira. Segundo o professor Themístocles Raphael Gomes Sobrinho, do Instituto Federal do Amapá, o estado possui o privilégio de ter à disposição diferentes fontes energéticas.
Para o Amapá, dentre as alternativas de médio a moderado impacto ambiental, Themístocles considera as mais viáveis as de energias solar, eólica e hidráulica, pois são menos poluentes.
A energia maremotriz (marítima) é uma ótima fonte de energia muito interessante, mas muito cara. O estado tem uma variação de maré durante o ano que chegam a 11 metros. “A maré sobe, é represada, passa pelas turbinas, devido a vazão da baixa maré, e transforma a energia mecânica em eletricidade”, salientou.
O professor avalia que se o Estado utilizasse a energia solar, para não sobrecarregar o sistema, teria capacidade de construir pequenos parques produtores de energia elétrica instalados na entrada dos municípios. Com uma subestação pequena, seria possível suprir a demanda local, desafogando a atual subestação centralizadora, onde ocasionou o problema do apagão.
Essa solução é bem mais em conta do que construir uma hidrelétrica, como foi o caso da Santo Antônio da Pedreira, que custou 1,4 bilhões de reais, comparou Themístocles. Outra opção destacada seriam os eletrogeradores (energia eólica) em áreas litorâneas do Amapá, principalmente em áreas de campos inundados.
“É bem provável a instalação, porque é bem difícil a ocupação humana, são áreas vazias, desocupadas. Você tem uma biodiversidade significativa, mas não tão diversificada quanto a floresta, o cerrado, várzea ou mangue e são ambientes que poderiam ser aproveitados, com o auxílio da tecnologia existente”, explicou.
Segundo ele, um número menor que 200 aerogeradores eólicos colocados no litoral amapaense seriam capazes de suprir a totalidade ou parte das demandas dos municípios que tiveram problemas de apagão.
“Para esse avanço se consolidar, é necessário ter agentes políticos comprometidos de fato com o bem-estar da população”, concluiu Themístocles.
Foto de capa: Rudja Santos/Amazônia Real
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