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Projetos de lei atacam direitos da comunidade LGBTQIAPN+ no Amazonas

Por Nicoly Ambrosio

Deputados conservadores e bolsonaristas insistem em conceitos como o da ideologia de gênero e apresentam propostas transfóbicas e inconstitucionais na Assembleia Legislativa. Na Prefeitura de Manaus, Davi Almeida cancelou apoio a casamento coletivo inclusivo sem dar explicações.

Projetos de leis (PLs) de autoria de parlamentares bolsonaristas e evangélicos do Amazonas ameaçam e violam os direitos humanos da comunidade LGBTQIAPN+. Pelo menos sete propostas apresentadas este ano na Assembleia Legislativa do Amazonas contêm discursos preconceituosos. São projetos sobretudo transfóbicos. 

Os projetos foram apresentados no Legislativo por deputados que pertencem a partidos de direita, como o Partido Liberal (PL), sigla do ex-presidente Jair Bolsonaro, e o Partido da Mulher Brasileira (PMB). Cinco deles são de autoria da deputada Débora Menezes (PL) e outros dois dos deputados Delegado Péricles (PL) e Deputado Rozenha (PMB). 

Bolsonarista e com forte discurso religioso, Débora apresentou um projeto de lei (número 317/2023) que busca impedir o acesso de crianças e adolescentes trans a procedimentos médicos, como o uso de bloqueadores de puberdade e hormônios. Na proposta, no momento analisada pela Comissão de Assuntos Econômicos da Casa, são citados dados sobre o atendimento no Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), que realiza acompanhamento médico e psicológico a crianças e adolescentes que se identificam como transgêneros. Segundo esses dados, atualmente cem crianças com idade entre 4 a 12 anos fazem o tratamento de transição de gênero no local, além de 180 jovens de 13 a 17 anos. 

O texto não inclui dados do Amazonas e ignora resolução de 2019 do CFM (Conselho Federal de Medicina), que autoriza o bloqueio puberal a partir dos primeiros sinais da puberdade, desde que feito em instituições credenciadas com protocolo de pesquisa. O tratamento é considerado seguro e reversível e também é indicado para pacientes diagnosticados com puberdade precoce. Já a harmonização é permitida somente a partir dos 16 anos de idade, com exigência da autorização dos pais, enquanto cirurgias de modificação corporal são vedadas a menores de 18 anos.

Em manifestação sobre outros posicionamentos de políticos conservadores, semelhantes ao de Débora, o médico Alexandre Saadeh, coordenador do Amtigos, afirmou que o ambulatório tem o objetivo de amenizar o sofrimento de crianças e jovens com seus corpos e proporcionar uma melhor qualidade de vida.

“Nós não fazemos experimentos com ninguém, não estamos falando de ratos de laboratório, são seres humanos que merecem um tratamento digno e, principalmente, muito respeito. Ninguém é obrigado a tomar hormônios e fazer cirurgias. Isso, se acontecer, é fruto de um criterioso acompanhamento pautado em conceitos médicos, não ideológicos”, explicou.

Defensora de pautas conservadoras, a deputada discursa, em tom acusatório, sobre o “avanço progressista na ideologia de gênero, alegando tentativas de “desvirtuar a inocência de crianças e impor condições que não compreendem. “Estão mexendo com a inocência de nossas crianças”, diz.

Outra proposta da deputada tenta proibir o uso da linguagem neutra nas escolas públicas e privadas do Amazonas. A parlamentar alega que a linguagem neutra é “um retrato de uma posição sociopolítica, sem qualquer embasamento linguístico ou científico, que, nem de longe, representa uma demanda social, mas sim de minúsculos grupos militantes, com objetivo de avançar suas agendas ideológicas, utilizando a comunidade escolar como massa de manobra”. O projeto aguarda parecer da Comissão de Educação da Assembleia.  

A proposta da deputada vai na contramão de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que no mesmo mês decidiu que é inconstitucional os estados determinarem se as escolas devem utilizar ou não a linguagem neutra em sala de aula, cabendo somente ao Ministério da Educação tratar do tema. 

Na decisão, o plenário do STF declarou inconstitucional uma lei de Rondônia que proibia a linguagem neutra em instituições de ensino e editais de concurso público. A Corte entendeu, por unanimidade, que a lei violava a competência legislativa da União para editar normas gerais sobre diretrizes e bases da educação.  

Sob a justificativa de “dever fundamental de proteção à mulher dentro do desporto, para que as mesmas possam competir com outras mulheres do mesmo gênero em igualdade de condições”, a deputada propôs em junho o projeto 609/2023, que estabelece o sexo biológico como o único critério para definição do gênero de competidoras em partidas esportivas oficiais no Amazonas.

De modo transfóbico, o texto da proposta, que é analisada pela Comissão de Constituição, Justiça e Redação, afirma que mulheres trans e travestis teriam vantagens sobre mulheres cis em atividades esportivas, e que há uma narrativa para impor uma “identidade de gênero que não corresponde com a identidade biológica, trazendo prejuízos para atletas do sexo feminino no mundo inteiro, onde há vários relatos do nível de desigualdade física entre um homem que se identifica trans e uma mulher do sexo feminino”.

Ainda em junho, a mesma parlamentar apresentou projeto que assegura a pais e responsáveis o direito de proibir a participação dos filhos em atividades pedagógicas que abordem os temas de gênero e sexualidade, em escolas privadas ou públicas. Ela afirma que há “crescente força de ideais extremistas de desconstrução social, que estimulam a inserção de crianças, jovens e adolescentes em atividades de gênero”, e que tais atividades “subvertem valores cristãos” e têm caráter “doutrinário”. Essa proposta também está na Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Assembleia. 

Débora também tentou proibir a instalação de banheiros unissex em escolas estaduais. O projeto foi arquivado porque outra proposta semelhante, de autoria do deputado evangélico João Luiz (Republicanos), já estava tramitando. 

A deputada é filha do ex-superintendente da Suframa, Coronel Menezes, candidato ao Senado nas eleições de 2022 pelo PL. Assim como seu pai, é bolsonarista e chegou a apresentar projeto de lei que concede o título de cidadã do Amazonas à ex-primeira dama Michelle Bolsonaro, aprovado em abril deste ano.

Além disso, a deputada usou suas redes sociais, no dia 24 de junho, para pedir que os seguidores doassem dinheiro a Bolsonaro. A doação seria para custear dívidas com a Justiça Eleitoral. Na publicação, ela expôs a transferência bancária de R$ 2 mil que fez para a conta do ex-presidente.

Outras propostas

Em março, o deputado estadual Ednailson Rozenha (PMB) apresentou o projeto de lei 197/2023, com o objetivo de proibir publicidade que contenha alusão à orientação sexual, ideologia de gênero e a movimentos sobre diversidade sexual referente ou dirigida à infância e à adolescência no Amazonas. O parlamentar usou como justificativa a proteção das crianças do “autoritarismo ideológico” e da manipulação midiática e publicitária. A proposta, no entanto, foi retirada pelo próprio parlamentar após a repercussão negativa nas redes sociais. 

Em 2019, o Tribunal de Justiça do Amazonas já havia declarado inconstitucional a lei municipal 439/2017, que proibia atividades e orientações com caráter político-pedagógico que reproduzem a “ideologia de gênero” na grade curricular das escolas de Manaus.

Seguindo uma agenda anti-LGBTQIAPN+ em pleno Mês do Orgulho, o deputado Delegado Péricles (PL) apresentou projeto para proibir a participação de crianças e adolescentes na Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ do Amazonas, sob justificativa de que, apesar de tradicional, o evento “se tornou local de prática de exposição do corpo, com constante imagem de nudez, simulação de atos sexuais e manifestações que resultam em intolerância religiosa”. A proposta está pronta para ser votada na Assembleia. 

Também apoiador assumido de Bolsonaro, Péricles criticou a recente decisão do governo federal de extinguir o Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares no país. Ele é um dos principais defensores e articuladores da implementação do programa no Amazonas e afirma ele foi encerrado por “política ideológica”

Ódio, negligência e estigmatização

Os projetos de lei que atacam a comunidade LGBTQIAPN+ no Amazonas provocam a reação de ativistas como o produtor cultural Ravi Veiga,  do Centro de Cultura e Economia Criativa LGBTQIAPN+ da Amazônia. Ele acompanha os projetos como secretário adjunto da Secretaria Estadual LGBTQIAPN+ do PT Amazonas e diz que elas são inconstitucionais, pois se baseiam em fake news, transfobia e lgbtfobia.

“As estatísticas usadas por esses deputados em seus textos não condizem com as atividades do Amazonas, especialmente de Manaus. Eles pegam dados de outros estados, principalmente de São Paulo, como se aqui no Amazonas estivessem sendo realizadas essas ações. Insistem no termo ideologia de gênero, que não existe”, afirma.

Michele Pires, diretora da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado do Amazonas (Assotram), historiadora e integrante do Núcleo de Políticas, Instituições e Práticas Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), afirma que os projetos apresentados na Assembleia têm caráter proibicionista e impedem a construção social e cultural da população LGBTQIPN+, sobretudo de pessoas trans.

“Esses projetos não pretendem avançar enquanto sociedade, pelo contrário, eles têm a finalidade de permanecer dentro de um conservadorismo e de anti progresso social. O grande problema é que os textos não levam em consideração a diversidade que existe na sociedade”, opina.

Michele aponta para a falta de leis que protejam os direitos LGBTQIAPN+ no Amazonas, principalmente para pessoas trans. “Não há uma política efetiva para que essas pessoas cresçam e produzam uma sociedade mais igualitária. O Amazonas não foge a essa regra”.

Para Ravi, o discurso de ódio promove a estigmatização de pessoas trans, as representando como ameaças à sociedade. “Nós seguimos todos os protocolos, não somos infratores e esses projetos estimulam essa imagem errônea da nossa população. Se fizessem pesquisa aqui no estado, não encontrariam violações”.

Apesar dos avanços da pauta LGBTQIAPN+ no Amazonas, como o direito ao uso do nome social por pessoas trans e travestis nos órgãos e entidades públicas do estado, Michele denuncia a ineficácia das políticas públicas voltadas à comunidade. “Essa lei evidencia um avanço significativo, mas não é o suficiente. Precisamos avançar nessas dimensões de leis que pensem um progresso, que levem em consideração a diversidade e as diferenças entre as pessoas, para que de fato a gente possa pensar uma outra realidade, uma possibilidade de sociedade efetivamente igual para pessoas LGBTQIAPN+, especialmente as trans”, diz.

Ravi cobra a adoção de políticas públicas específicas do governo estadual e da prefeitura. “Eu vejo que eles não fazem nada e não aprovam nenhuma política pública efetiva em relação a nossa comunidade”, diz. Lembra que uma das várias situações de descaso dos órgãos públicos com a população LGBTQIAPN+ foi a dissolução do Conselho Estadual de Combate à Discriminação LGBT do Amazonas (Cecod/LGBT).

Criado por meio da Lei 4.475, de 6 de maio de 2017, o conselho é de responsabilidade da Secretaria de Estado de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania e tem a proposta de possibilitar o diálogo com a comunidade LGBTQIAPN+, além de propor diretrizes de ação governamental, voltadas para o combate à discriminação. Os conselheiros, eleitos em 2019, deveriam ter tomado posse no dia 29 de janeiro de 2020. No entanto, não foram chamados e a portaria caducou. 

Censura ao amor

No início deste mês, a Prefeitura de Manaus, por meio da Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Cidadania, se recusou a participar e organizar um casamento coletivo LGBTQIAPN+, promovido pela Caixa de Assistência dos Advogados do Amazonas, previsto para acontecer no dia 30 de agosto. A prefeitura não se pronunciou sobre o caso.

Diante da decisão, a CAAAM publicou uma nota afirmando que a cerimônia vai acontecer mesmo sem a participação da prefeitura. Na nota, o presidente do órgão, Alberto Simonetti Neto, confirmou a celebração. “Em 2014, enquanto presidente da OAB-AM, eu realizei o primeiro casamento lgbt da região norte. E agora não seria diferente, a Comissão LGBTQIAPN+ da CAAAM já está atuando para realizar mais um casamento coletivo. Vamos juntos oficializar uniões e celebrar o amor”.

Após a repercussão do caso, o vereador Rodrigo Guedes (Podemos) apresentou um requerimento para cobrar explicações do prefeito David Almeida (Avante) sobre a decisão. O requerimento foi vetado. Apenas quatro vereadores da Câmara Municipal de Manaus votaram a favor do questionamento. “Todos têm direito de crença e pensamento, mas o estado é laico e não podemos aceitar intolerância institucional”, declarou o vereador em suas redes sociais.

O prefeito é evangélico e ligado a temas e parlamentares conservadores. Apoiador de Bolsonaro nas últimas eleições, declarou que estava alinhado ao então presidente na pauta religiosa. Em junho, participou da 29° Marcha para Jesus em Manaus e discursou sobre a força e a representação do público evangélico manauara. “Entre 40% e 45% da população da cidade de Manaus é evangélica. E esse evento demonstra a força da juventude que move essas igrejas”, declarou no evento.

A Assotram, o Centro de Cultura e Economia Criativa LGBTQIAPN+ do Amazonas e a Associação Transmasculina do Amazonas (ATAM) lançaram notas de repúdio ao ato da Prefeitura de Manaus, considerado discriminatório.

“Nos posicionamos firmemente no combate à LGBTfobia institucional e a favor da promoção da igualdade, respeito à diversidade, independente da sua identidade de gênero, orientação sexual. A atitude vinda do prefeito é crime previsto na Lei do Racismo nº 7.716/89, do Estatuto da Igualdade Racial no Código Civil”, diz trecho da nota.

A Assotram expôs que o posicionamento do prefeito de Manaus “contribui para a validação e naturalização do quadro de intolerância quanto à orientação sexual e identidade de gênero”, diz a nota. A associação também pede para que providências sejam tomadas quanto ao flagrante de homofobia e transfobia.

A ATAM declarou que “o direito do casamento homoafetivo foi assegurado e reconhecido de forma unânime pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF)”, e que a abstenção da prefeitura de participar do evento é uma forma de omissão do poder público.

Para Ravi Veiga, são as associações LGBTQIAPN+ que se mobilizam para pensar políticas públicas e meios de resistência contra atos de discriminação. “Nós temos chamado alguns movimentos sociais e associações para tratar do que tem acontecido no Amazonas”, relata. Desde maio as organizações estão se reunindo para debater ações contra discursos propagados por projetos de parlamentares. “Estamos dialogando com as associações que lutam pelos direitos LGBTQIAPN+ e a partir dessas reuniões nosso principal objetivo é dialogar com os deputados para demonstrar a natureza inconstitucional dos projetos que são elaborados por eles”, diz Isaac Lopes, coordenador da ATAM. 

Os grupos tiveram duas reuniões, nos meses de maio e julho, para articular demandas e debater o teor dos projetos. Ravi afirma que, a partir dos diálogos, um ofício foi elaborado e entregue presencialmente na Ouvidoria da Assembleia. No documento, as associações pediram um encontro para dialogar com a deputada Débora Menezes. O pedido não chegou a ser feito, sob a alegação de que ela é uma pessoa rígida e conservadora.

O ativista alerta que existem outras propostas já sancionadas, como a lei, de autoria do vereador Raiff Matos (DC), que criou o “Dia do Conservadorismo” e foi sancionada em Manaus.

“A gente tem que ter muito cuidado, porque essas pessoas não estão alinhadas às ideias da população em geral, não só trans e LGBTQIAPN+. Eles escrevem projetos baseados na realidade deles e misturam política e religião. Isso é muito perigoso”.

Foto de capa: Hudson Fonseca/Aleam

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