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Camila Cerdeira, escritor não-binário: ‘Gosto de escrever pedaços da vida de uma pessoa’

Por Jessica Santos, para Ponte Jornalismo

No primeiro episódio da Academia de Letras das Ruas, live sobre literatura da Ponte, autor cearense fala sobre racismo, representatividade e sobre seus contos de fantasia

Depois de umas semanas em recesso, a Ponte voltou com força total com as lives temáticas. A primeira de 2021 foi o episódio 3 da Academia de Literatura das Ruas, que teve como convidado o autor Camila Cerdeira, que se define como “nerd por criação, negra, não binário e feminista”. O papo rolou nesta quara-feira (20/1) e pode ser visto na íntegra no YouTube da Ponte.

Cearense e morador de Fortaleza, capital do Estado, sua relação com as letras começou cedo. Antes mesmo de começar a ler, já tinha a tarefa de contar histórias ao irmão caçula. A dupla era incentivada pelos pais a ler desde muito novas e os livros foram parceiros de infância e adolescência.

Como boa parte dos jovens de sua geração, Camila descobriu a saga de Harry Potter aos 11 anos – mesma idade do protagonista no começo dos livros. Afirma que Hogwarts e o mundo encantado dos bruxos eram como seu lar. “Eu me encantei como aquele mundo bruxo, queria fazer parte daquelas aventuras”, conta.

No entanto, o encanto sofreu um forte abalo recentemente quand J.K. Rowling, autora dos livros, resolveu destilar transfobia, afastando uma considerável parcela de seu fã-clube, como é o caso de Camila. “Para mim, atingiu diretamente. Eu sou uma pessoa trans. Eu senti como se fosse minha mãe me atacando”, confessa. “Não estou consumindo. Não sei o que vou fazer com os livros que já tenho”.

A escrita

Autor de contos como “A noite cai” e “Guardião do Destino”, Camilla considera seu lançamento na literatura a partir das histórias fantásticas que contava para seu irmão dormir. No entanto, a primeira vez que, de fato, registrou histórias no papel foi aos 15 anos. “Tinha uma facilidade para escrever histórias curtas, elas me faziam sentido”, explica. Eram sempre contos que escrevia para si e para os amigos. “Gosto de escrever pedaços da vida de uma pessoa. É como se eu desse uma espiada e eu escrevo essa espiada. Para mim, o conto é isso”.

“Sempre fui uma pessoa que disse que não sei escrever fantasia”. Mas é exatamente desse gênero que saem as histórias de Camila com bruxas iorubás, anjos da guarda, lobisomens, invocações mágicas. No entanto, seus personagens humanos não são os clássicos brancos europeus de Tolkein, Lewis e Martin. Com histórias que se passam no Brasil, ela traz pessoas negras, de cabelos de todos os jeitos, de todas as orientações sexuais e em diversas situações onde o afeto – muitas vezes negado a essa população – é uma constante.

Com elementos do folclore brasileiro e da mitologia africana, “A noite cai” está disponível para leitura na Amazon. O conto traz aventuras fantásticas pelas ruas de Fortaleza, saindo do eixo Rio-São Paulo tão comum nas histórias nacionais. Da sua vivência em terreiros de umbanda, o escritor trouxe os orixás que dão energia a duas jovens bruxas. Das dezenas de versões sobre lobisomens, se inspirou para criar os antagonistas da história e assim foi surgindo o conto. “Ele é uma grande mistura de tudo que acabei consumindo”.

“Guardião do Destino” é fruto do desafio de criar histórias com protagonista LGBT+ imortal, lançado pela Editora Resistência. “Comecei a pensar nessa questão do que é um anjo, do que é uma alma e do que é a imortalidade”. A partir de então, desenvolve a história de Ariel, sua protegida e todas as vidas que eles já haviam vividos juntos. A história é parte da antologia “Não morre no final”, que também está disponível na Amazon.

Representatividade

Um termo que ama em voga em quase todas as artes é a representatividade, pouco colocado em prática nos grandes best-sellers. “Ainda não consegui me ver como pessoa negra, trans, não-binária, bissexual. Todos juntos, de uma vez, eu não consegui ver ainda”. Essas identidades estiveram esparsadas em suas experiências literárias. A primeira vez que se viu em uma história aconteceu durante a leitura de “O ódio que você semeia”, de Angie Thomas.

“Eu tinha 28 anos. Foi a primeira vez que eu me vi, de verdade. Que eu vi uma garota negra, que veio de um bairro parecido com o meu, que estudou num colégio particular com bolsa”, relata. “O príncipe e a costureira, HQ de Jen Wang, trouxe a representação não-binária. Mas ainda sobram lacunas de representatividade. “Até hoje, eu não li uma garota negra que gosta de garotas”.

A conversa pontuou a questão de lugar de fala na literatura, que ainda causa polêmica nesse meio. “Eu não sou contra pessoas brancas escreverem sobre protagonistas negros. Mas sou contra quando a pessoa se acha o porta-voz da negritude. Ela não fala por mim, ela não entende a minha vida”. Para Camilla, é preciso que a pessoa branca-cis-hetero não queira se alçar como porta-voz das minorias.  “Acho importante, essas pessoas escreverem personagens de minorias por uma questão de número. Pessoas brancas tem muito mais oportunidade para escrever do que pessoas negras. Se eu for esperar só os negros escreverem, a gente nunca vai se equiparar em quantidade”.

Durante uma hora, a conversa ainda passou por temas como racismo em fandons de literatura, os planos de Camilla para o futuro e suas indicações de leitura de jovens autores brasileiros.

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