Iniciativa do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense vai monitorar dados e criar uma rede com movimentos antirracistas para repensar políticas públicas; para coordenadora, é preciso trazer a dimensão da memória pública das vítimas
Por Elisa Fontes
Somente nos primeiros seis meses deste ano o Brasil registrou casos de violência que envolveram espancamentos, uma viatura transformada em “câmara de gás”, abordagens truculentas e operações policiais em comunidades que terminaram em chacinas. O imigrante congolês Moïse Kabagambe, 24, e os brasileiros Genivaldo de Jesus Santos, 38, e Lucas Henrique Vicente, 27, foram algumas das vítimas da brutalidade tanto por parte de civis quanto por agentes da segurança pública e tinham características em comum: eram homens negros e de origem periférica.
Para tratar da urgência em combater o racismo e o genocídio contra a população negra, o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (CAAF/Unifesp) lançou nesta quinta-feira (23/6) o Observatório da Violência Racial (Ovir). A iniciativa tem como eixos a pesquisa e a ação: além de realizar o monitoramento e o levantamentos de dados sobre a forma como o racismo tem atravessado a sociedade brasileira, o observatório fará a ponte entre o trabalho acadêmico e os movimentos sociais.
O boletim zero, a primeira publicação do OVIR, destaca o problema estrutural da violência racial e critica o tratamento que o Estado brasileiro dá à população negra a partir dos dados divulgados no Atlas da Violência, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Os pesquisadores chamam atenção para o dado de que as pessoas negras têm 2,6 vezes mais chances de serem mortas do que pessoas não negras. Em relação à letalidade policial, 78,9% das pessoas que foram mortas pela polícia em 2020 eram negras.
A professora doutora em História e pesquisadora do CAAF, Diana Mendes Machado da Silva, que faz parte da equipe de coordenadores do projeto, aponta que as atuais políticas de segurança pública realizam um controle social sobre a população negra. “As policiais militares no Brasil se organizaram em torno de, primeiro, proteger a propriedade e não de garantir a segurança pública, dita pública. E em segundo, se organizaram em perseguir a população negra como principal suspeito de ataque à propriedade”.
Segundo ela, o grande diferencial do Ovir está na proposta de pensar a resistência à violência racial. “Isso é super forte no pensamento de autores como Abdias do Nascimento, de pensar a questão do genocídio não só no assassinato de pessoas de pele negra mas quando se pensa também no extermínio de uma cultura, modos de vida, modos de pensar”, explica.
O observatório realizará o mapeamento das instituições ligadas ao movimento negro em São Paulo e posteriormente em outros estados do Brasil, a fim de formar uma rede de troca de informações com cada vertente que existe na luta antirracista. “Entendemos o movimento negro como uma pluralidade de movimentos e de tipos de ação. Então, por exemplo, a gente entende que coletivos feministas fazem parte do movimento negro, as Promotoras Legais Populares, que fazem parte de uma luta contra a violência racial, as Mães de Maio, coletivos de cultura, hip hop e slams”, exemplifica a pesquisadora.
A partir disso, o Ovir publicará pesquisas não só sobre os homicídios e as violações físicas praticadas pelos agentes do Estado como também as violações por falta de acesso aos direitos básicos, procurando orientar políticas públicas que revertam esse cenário. Um dos primeiros levantamentos deve tratar das questões que envolvem a saúde das mulheres negras, conta a Dina. Os boletins divulgados por quadrimestre também contam com artigos de pesquisadores e ativistas e um espaço de memória às pessoas vítimas da violência racial.
“É uma forma de responder à tendência de tornar as pessoas negras apenas números que fazem parte das estatísticas. A gente quer tirar um pouco essa conotação de que faz parte só do universo das estatísticas, da matemática, das páginas policiais e quer trazer um universo de narrativa, de afetividade e de uma dimensão de memória pública dessas pessoas”, afirma Diana.
Durante o evento de lançamento do observatório na Unifesp, que contou com a presença de pesquisadores e ativistas, os Crimes de Maio de 2006 foram lembrados como um dos maiores massacres da história promovido por forças de segurança nas periferias de São Paulo e vitimaram 505 pessoas. Débora Silva, representante do movimento Mães de Maio e pesquisadora do CAAF, falou da importância da iniciativa em levantar a dimensão da violência racial em diversos setores da sociedade e preservar a memória das vítimas.
“O movimento Mães de Maio veio para provocar, para acordar, porque para nós estarmos aqui uma hora dessa é porque é necessário criar um espaço para combater o racismo começando pelas universidades. Primeiro a gente tem que fazer a lição de casa e pontuar que existe racismo dentro da universidade e um racismo perverso. Porque o racismo é estrutural. É daqui que saem os fascistas, esses que sentam nas cadeiras e fazem leis contra nós. É daqui que saem os promotores que matam nossos filhos com uma canetada pedindo o arquivamento [dos inquéritos policiais]. E tudo isso tem que ser observado pelo Ovir”, frisou.
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