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Camila Sosa Villada traz à Flip sua materialidade da vida travesti em literatura

“O Brasil é um país que conheço através de sua música, de seu cinema”, comenta a escritora Camila Sosa Villada enquanto acende um cigarro enrolado em frente ao computador. Então arregala os olhos e arremata. “E suas novelas, suas novelas!”

“Eu lembro que meus avós, quando eu tinha seis, sete anos, viam ‘Pantanal'”, continua a argentina, consciente até de que há um remake passando hoje na televisão. “Eu vi a original, então imagina, como não poderia falar de um realismo mágico latino-americano que me chegava até pelas telenovelas?”

Antes do ressurgimento de Juma, a literatura mágica de Villada já causava comoção no Brasil com o romance “O Parque das Irmãs Magníficas”, obra de inspirações autobiográficas que mistura o relato duro da prostituição de travestis com sofisticados traços de fantasia.

Agora, a autora vai aterrissar em pessoa no país como uma das convidadas da Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece no litoral carioca de 23 a 27 de novembro. É a terceira autora confirmada no evento após a pesquisadora americana Saidiya Hartman e a poeta brasileira Cida Pedrosa.
Mas não será a primeira vez de Villada no Brasil. Ela conta que já conheceu Recife, Londrina e São Paulo, mas sempre como atriz em montagens teatrais. Agora se abrem ao público as cortinas da sua literatura, já que ela vem lançar a coleção de contos “Sou uma Tola por te Querer”.

Curioso como tudo está imbricado na carreira multiartística de Villada. Se ela esteve por aqui para encenar o monólogo “Carnes Tolendas” -que a tornou conhecida na Argentina a ponto de deixar para trás o trabalho como prostituta- e uma segunda peça sobre a vida da cantora Billie Holiday, ambas as histórias dão as caras na nova coletânea.

Não demora para que os leitores percebam que o conto que abre o volume, “Obrigado, Difunta Correa”, é um comovente relato sobre a estreia de Villada no teatro.

E a história que dá nome ao livro narra a convivência fraterna de duas travestis mexicanas com Holiday, ela mesma, em Nova York -para quem não percebeu, o título da coletânea traduz a canção “I’m a Fool to Want You”, que ganhou bela regravação na voz da cantora.

“A obra de Camila Sosa Villada exterioriza dores, delírios, desejos e violências do universo das travestis, transformando-os em símbolos exuberantes de vida e de sobrevivência”, diz Milena Britto, que compõe o trio curador da Flip com Pedro Meira Monteiro e Fernanda Bastos.

Além de “Sou uma Tola por te Querer”, a editora Planeta já comprou também os direitos para publicar “A Namorada de Sandro”, livro de poemas entremeado por alguma prosa poética.

Os textos de Villada costumam girar em torno da rotina sexual de travestis -como o divertido conto “A Noite Não Vai Permitir que Amanheça”, título poético para uma história de orgia descontrolada-, mas também se dispersam com destreza em outros territórios.

“A Merenda”, por exemplo, desenreda uma delicada reflexão racial quando uma garota pergunta para a avó porque o mamilo dela é marrom, quando o de todas as suas amigas é rosado. “Eu me sentia discriminada”, afirma a escritora, “era como se achassem que não era capaz de construir mundos, só de fazer crônicas sobre a minha realidade”.

“Soa um pouco trapaceiro quando dizem que estou escrevendo de novo e de novo sobre o mesmo tema. Talvez seja porque esse tema é muito mais notável que a heterossexualidade que regeu a literatura por tanto tempo, e ninguém parecia notar. Ninguém diz ‘ai, outra vez Hemingway falando de barbudos!'”.

O realismo mágico que transformou “O Parque das Irmãs Magníficas” em pérola -com mulheres virando animais e imagens de santas vertendo lágrimas- aparece menos em “Sou uma Tola por te Querer”.
Por outro lado, o sexo se faz muito presente. Quando ouve uma pergunta sobre os riscos de reforçar o estereótipo que hipersexualiza as mulheres trans, Villada diz não se preocupar.

“Nós vivíamos dentro do sexo, era o que nos dava de comer. Negar que fomos sexualizadas e tínhamos uma relação quase de dependência com isso seria hipócrita. Era uma potência do nosso corpo. Não estou fazendo ativismo, afinal, e sim falando de algo em primeira mão.”

WALTER PORTO
SÃO PAULO, SP

Foto de capa: Catalina Bartolomé/Divulgação

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