Por Paulo Eduardo Dias, para Ponte Jornalismo.
A rapidez na prisão do sargento Adriano Fernandes de Campos por suspeita de participação na morte do adolescente Guilherme Silva Guedes, 15 anos, sequestrado na Vila Clara, zona sul da capital, e achado morto em Diadema (Grande SP), em junho, pode trazer a sensação de que policiais militares são punidos após matar alguém. No entanto, um levantamento feito pela Ponte indica que a prisão de policiais que matam tem se tornado cada vez mais rara no estado.
O presídio Romão Gomes, na zona norte da cidade de São Paulo, que recebe apenas policiais militares, registrou no ano passado a menor entrada de presos por homicídio ao longo da década, conforme dados obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação. Apenas 35 policiais foram levados ao presídio por esse crime em 2019; no mesmo ano, a PM paulista matou 845 pessoas.
Os números mostram que a entrada no presídio de policiais presos por matar vem diminuindo ano a ano, embora o número de homicídios cometidos pela PM paulista tenha aumentado no mesmo período.
Entre 2011 e 2019, 6.125 pessoas perderam a vida nas mãos de policiais militares no estado de São Paulo, segundo as estatísticas trimestrais da Secretaria de Segurança Pública. No mesmo período, 653 PMs foram levados ao Romão Gomes acusados de homicídio. A comparação indica que, para cada 10 mortes executadas oficialmente pela polícia, um 1 PM é preso pelo crime.
O Presídio Militar Romão Gomes tem capacidade para abrigar 310 policiais militares. Entre janeiro e dezembro do ano passado 225 agentes deram entrada no local por diversos crimes, o segundo menor número desde 2011, perdendo apenas para 2014. Além dos homicidas, há presos por concussão, furto, roubo, estupro e tráfico de drogas.
A impunidade e os promotores
Para a socióloga Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de prisões pode estar ligado diretamente à falta de atuação do Ministério Público, que tem a prerrogativa de denunciar o policial para que ele possa ser julgado pela Justiça — é ao MP que cabe o “controle externo da atividade policial”, segundo o artigo 129 da Constituição Federal.
“A polícia aperta o gatilho, mas pensa comigo: a Polícia Civil investiga e faz o inquérito. O Ministério Público decide se arquiva ou denuncia. Caso haja denúncia, temos o júri. Veja que é um funil. E em grande medida a responsabilidade é do MP, que arquiva quase tudo. Porque praticamente todo caso de homicídio é doloso. Se é doloso, é a justiça comum que vai avaliar, não a Justiça Militar”, explica Samira.
A socióloga passou dois anos entrevistando policiais homicidas no Romão Gomes para sua tese de doutorado. A partir desses diálogos, a pesquisadora chegou a conclusão de que, “em geral, o que dá condenação não é ocorrência em serviço, mas feminicídio, justiceiro que mata pela grana e chacina”.
A diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública afirma que são poucas as ações em serviço que acabam em condenação, classificando tais situações como “bem bizarras”. De acordo com ela, quando vai encarar o tribunal do júri, que tem um corpo de jurados formado por pessoas comuns, muitas vezes o PM é absolvido. “Se o morto tinha antecedentes criminais é ainda mais complicado. Dificilmente o policial será condenado”, enfatiza.
Quem também analisou os números a pedido da Ponte foi o tenente-coronel aposentado da Polícia Militar paulista Adilson Paes de Souza, mestre em Direitos Humanos e autor do livro “O Guardião da Cidade – Reflexões sobre Casos de Violência Praticados por Policiais Militares”. Ele também pontua que o reduzido número de presos pode revelar lacunas no trabalho de apuração do fato.
“Talvez a dinâmica das investigações não esteja trazendo elementos que consigam prender o policial. Pode ser que estejam sendo absolvidos por não trazerem provas convincentes para uma condenação. Entendem que ele agiu de forma certa”, pondera.
Assim como Samira, Adilson sinaliza que os promotores públicos têm responsabilidade pela impunidade policial. “Outro ponto é que talvez o Ministério Público não esteja sendo severo e rigoroso nos casos de pessoas que são mortas por policiais militares. Há pesquisas e livros que demonstram isso. Todos esses pontos podem criar um cenário de impunidade”, sustenta.
“Perda de controle sobre a ação violenta da polícia”
Ao analisar os números disponibilizados pela reportagem, o pesquisador do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo) Bruno Paes Manso apontou que, assim como cresceu a quantidade de pessoas mortas pela PM, houve aumento no números de policiais militares mortos. “Você tem essa mudança de padrão de aumento por morte violenta desde 2016. Nos últimos três anos, houve aumento de vitimização de policiais também. No mesmo tempo essa redução de prisões de policiais, como se as instituições de controle meio que deixassem eles próprios resolvendo seus próprios conflitos”. Entre 2011 e 2019, 223 policiais militares foram mortos.
Na visão de Paes Manso, o que pode ter ocorrido é “uma perda de controle sobre a ação violenta da polícia que vitima as pessoas, mas também os policiais, sem que as instituições de controle prestem a devida atenção. Quando houve mais prisão e quando houve uma maior atenção a esse cenário, são anos que a violência cometida por policiais, mas que também vitima os policiais, esteve mais baixa”.
Durante a entrevista, Samira Bueno demonstrou preocupação com o aumento da letalidade policial. “A questão é que a polícia mata mais hoje do que há 20 anos, e os homicídios caíram 80% nesse período. A polícia, em tese, responde a violência do território ou da ação. Só o que justifica o uso da força letal é a garantia da vida do próprio policial ou de terceiros caso ameaçada. Policial não pode atirar para evitar um roubo de veículo. Tem que ter uma ameaça concreta que justifique”, ponderou.
Diante sua experiência, Samira ainda consegue analisar e explicar quem são as principais vítimas da violência policial em São Paulo. “Se a violência está caindo, como se explica esse aumento tão agudo da letalidade? Crime organizado, armamento pesado? Vamos pensar quantas ocorrências envolvem uso de fuzil ou esse tipo de armamento pesado? São poucas. A maioria das vítimas da polícia são moleques, que preenchem os requisitos de suspeição: jovens, pretos e periféricos”, diz.
O que diz o Ministério Público
Procurada, a assessoria de imprensa do Ministério Público enviou respostas por e-mail. “A morte por intervenção policial raramente permite uma prisão em flagrante delito. Dessa forma, a notícia do crime chega ao Ministério Público por meio do Inquérito Policial e já com o suposto autor do fato ilícito solto”, afirma.
Ponte – Como o Ministério Público analisa tais números?
A análise das estatísticas da SSP e do SISMP indica que, de fato, houve aumento do número de mortes por intervenção policial. Não é possível afirmar que essa tendência se manterá ao longo do ano.
Ponte – O MP, como instrumento de denúncia ou arquivamento, entende que faltam provas robustas para pedir a prisão em casos envolvendo PMs?
A morte por intervenção policial raramente permite uma prisão em flagrante delito. Dessa forma, a notícia do crime chega ao Ministério Público por meio do Inquérito Policial e já com o suposto autor do fato ilícito solto. A decretação da prisão preventiva depende do atendimento de um conjunto de fatores: a) prova clara da autoria e materialidade delitiva; b) demonstração de perigo à instrução criminal; c) necessidade de assegurar a ordem pública ou econômica; d) ainda em razão da necessidade de assegurar a instrução criminal; d) além de assegurar a aplicação da lei penal. Preenchidos tais pressupostos, diante da prova do caso concreto, o Ministério Público não tem hesitado em requerer a prisão preventiva do agente criminoso, seja ele policial militar ou não.
Ponte – Quais as dificuldades para pedir prisões de PMs após homicídios?
A maior dificuldade é a inocorrência de prisão em flagrante. A prisão só será decretada pelo Poder Judiciário se houver prova da autoria e o preenchimento dos requisitos acima citados, o que nem sempre acontece. Quando há provas, o Ministério Público não tem se eximido de lutar pela condenação, valendo lembrar que os casos são julgados pelo tribunal júri.
Queremos, contudo, aproveitar a oportunidade para registrar nossa preocupação com esse tema. O Ministério Público brasileiro, em mais de uma oportunidade, manifestou apoio irrestrito ao Projeto de Lei n° 135/2018, do Senado Federal, de autoria da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal (CDH), que busca conferir ao Ministério Público a atribuição para investigar crimes supostamente cometidos por agentes de segurança pública, no exercício das funções.
O que diz o governo
Procurada, a Secretaria de Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) encaminhou nota em que afirmou que “trabalha permanentemente em medidas para reduzir as mortes”.
“Por exemplo, é uma determinação da pasta que todos os casos de MDIP [morte em decorrência de intervenção policial) sejam imediatamente investigados pela Polícia Civil, por meio do DHPP, e pela PM, além de comunicados ao Ministério Público. As instituições também analisam todas as ocorrências para verificar a conduta dos policiais e avaliar a adoção de alternativas de intervenção para evitar o mesmo resultado em episódios futuros”, afirma a nota.
“No primeiro quadrimestre deste ano, 105 policiais civis, militares ou técnico-científicos foram demitidos ou expulsos. Em 2019, foram 226 agentes demitidos ou expulsos. A PM realizará um programa de treinamento envolvendo todos os níveis hierárquicos, visando a reforçar os conhecimentos e técnicas da instituição. O governo do estado também iniciou a instalação de câmeras corporais nos uniformes dos agentes de segurança para dar mais transparência às ações da polícia”, prossegue a nota.
Foto de capa: Protesto contra a morte de Guilhermes, 15 anos, morto por PM, na zona sul de SP, em 16/6 | Foto: Caio Castor/Ponte