Enquanto Brasil volta pro Mapa da Fome, redes de supermercados batem recordes de lucro

Melhor ano de vendas para o setor tem lucro recorde de grandes redes ao mesmo tempo em que arroz e feijão estão sumindo da mesa dos brasileiros; medo de contrair covid e pouca proteção em estabelecimentos cheios preocupam funcionárias

Por Lola Ferreira e Flávia Bozza Martins*

Todo brasileiro que chefia uma casa e vai às compras toma um novo susto a cada vez que chega ao supermercado ou abre o aplicativo: batata, arroz, óleo, carne e outros itens básicos para a alimentação de uma família registraram aumento considerável em 2020. Na análise dos 35 itens mais vendidos nos supermercados brasileiros, houve um aumento de 21% entre 2019 e 2020. Em meio à pandemia de covid-19 e à confirmação do retorno do Brasil ao Mapa da Fome, esse aumento de custo se reflete em maior insegurança alimentar, ao mesmo tempo em que o lucro dos supermercados não implica, necessariamente, em melhores condições de trabalho ou em mais segurança trabalhista para os funcionários destes estabelecimentos. Essa reportagem é um desdobramento das análises para o estudo “Cenários e possibilidades da pandemia desigual em gênero e raça no Brasil”, realizado pela Gênero e Número em parceria com o Instituto Ibirapitanga.

“Com tudo fechado, as pessoas passaram a ir mais ao supermercado”, diz Norma Bonfim, 46 anos, que trabalha há cinco como operadora de caixa em uma grande rede no Rio de Janeiro. Além de alterar o comportamento do consumidor, a crise sanitária obrigou os supermercados a investirem em medidas de proteção aos funcionários que, de acordo com Bonfim, na maioria das vezes se limitou à distribuição de álcool em gel. 

“Algumas redes obrigam os clientes a entrarem de máscara, outras não. Se eu trabalho de máscara e um cliente não está protegido, não adianta, porque é proteção coletiva. Todas as minhas colegas de trabalho pegaram covid-19, e o que vimos é que os mercados não dão nenhum suporte extra. Nem na questão da alimentação, que precisamos investir mais, por precisar de uma alimentação mais saudável e reforçada. A gente fica de atestado e pronto”, conta Bonfim, que acredita que a ação dos supermercados poderia ser diferente, já que “houve uma maré boa”.

Trabalhadoras de supermercados acreditam que suporte durante pandemia não foi suficiente | Foto: Procon/RO
Trabalhadoras de supermercados acreditam que suporte durante pandemia não foi suficiente | Foto: Procon/RO

Mesmo sendo muito cedo para quantificar em nível nacional os problemas como os relatados por Norma Bonfim, dados mostram que as mulheres estão em postos de trabalho mais precarizados e atingidos pela pandemia: elas são maioria entre os trabalhadores de comércios e mercados (58%) e nas funções de apoio administrativo (62%), de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do último trimestre de 2019.

O livro “Donos do Mercado: Como os grandes supermercados exploram trabalhadores, fornecedores e a sociedade”, de Victor Matioli e João Peres, traz relatos e informações sobre essa precarização. Na publicação, os jornalistas expõem a dificuldade da rotina dessas mulheres, como a possibilidade de ir ao banheiro somente duas vezes ao dia e o fato de ocuparem funções consideradas “menos relevantes”, além do receio constante da exposição ao coronavírus em supermercados cheios e com pouca proteção. Matioli e Peres também analisam os relatórios do Grupo Pão de Açúcar, que mostraram que em 2018 o salário mais alto do grupo era 150 vezes maior que o salário mais baixo.

E com a pandemia, os lucros dos supermercados só aumentam, apesar da perda de postos de trabalho e renda instável para os brasileiros. No comparativo do trimestre entre setembro e novembro de 2020 com o mesmo período do ano anterior, todo o comércio (não incluindo bares e restaurantes) perdeu 10,4% dos seus postos de trabalho, o que significa cerca de 1,9 milhão de pessoas trabalhadoras no comércio desempregadas. O Grupo Pão de Açúcar teve lucro de R$ 1,59 bilhão no último trimestre de 2020, um aumento de 58,5% em relação ao mesmo período de 2019. Já o Carrefour registrou lucro de R$ 935 milhões, um aumento de 47% em relação ao último trimestre do ano anterior.

Impacto do auxílio

Além do lucro e da informação do alto fluxo de clientes, citada por Bonfim, há outro exemplo do ano dourado para os supermercados brasileiros. O índice geral de vendas, calculado pela Associação Brasileira de Supermercados (Abras) — como o custo dos 35 itens mais vendidos —  disparou em 2020: os supermercados venderam 9,36% a mais do que em 2019, o maior aumento anual da categoria em 20 anos. Os números já são corrigidos pela inflação. De acordo com a Abras, o cálculo é feito em um universo de mais de 2.800 lojas. Em nota à imprensa, Márcio Milan, vice-presidente da Abras, disse que as medidas de isolamento social influenciaram os brasileiros a “mudar seus hábitos, contribuindo com o aumento do consumo dentro do lar”. 

Líderes do setor e a Abras também acreditam que o auxílio emergencial foi responsável pelo pico de vendas, já que a principal linha de gastos para os beneficiários é realmente a alimentação, de acordo com o Datafolha. Na pesquisa feita pelo instituto em agosto de 2020 sobre o tema, 53% dos respondentes afirmaram que gastaram os R$ 600 do auxílio preferencialmente com alimentação. Depois, para pagar contas e despesas domésticas. Com análise por grupo, o gasto com alimentação é de 61% entre os mais pobres e de 59% entre os com menor escolaridade. A pesquisa mais recente, de dezembro, mostrou que o auxílio era a única fonte de renda para 36% dos que se inscreveram para recebê-lo. 

Supermercados venderam mais durante a pandemia do que na última década

Alta de preços e insegurança financeira não impediram disparo nas vendas do setor

FONTE ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SUPERMERCADOS

Diante das incertezas sobre a continuação do auxílio, cresce o cenário de insegurança alimentar para mulheres pobres, principalmente as negras e indígenas, mesmo com um gasto maior do brasileiro em supermercados. Vender mais não significa que mais gente está comendo, muito menos comendo melhor.

“A insegurança alimentar é um problema de gênero”, avalia Ana Carolina Feldenheimer, professora do departamento de Nutrição da UERJ que atuou como consultora na elaboração de diferentes políticas relacionadas ao tema no governo federal entre 2008 e 2015. “As mulheres negras e mais pobres são as que têm mais dificuldade para garantir a alimentação da sua família e isso é uma cascata: elas têm menos chances de emprego, menos recursos financeiros e, consequentemente, terão mais dificuldade de garantir boa alimentação para a sua casa”, completa.

Num cenário de fragilidade econômica e extrema vulnerabilidade social, como a pandemia, ações para segurar a alta dos preços dos alimentos e fortalecimento de políticas como restaurantes populares deveriam ter sido priorizadas, na avaliação da pesquisadora, mas houve omissão dos governos nesse sentido. Nem mesmo a merenda escolar, assunto que já faz parte da gestão das secretarias, contou com definições rápidas durante a pandemia. 

Durante pandemia, alimentação de crianças na rede pública foi interrompida | Foto: Prefeitura do Rio (2015)
Durante pandemia, alimentação de crianças na rede pública foi interrompida | Foto: Prefeitura do Rio (2015)

Com escolas fechadas, crianças da rede pública precisavam de um plano B para continuar a ter acesso aos alimentos e refeições oferecidas nas unidades de ensino. Mas uma ação que pudesse garantir a alimentação às crianças não foi implementada em âmbito federal, e cada município decidiu como fazê-lo de forma individual.

Alguns municípios conseguiram fazer cestas adequadas, com legumes e frutas, mas muitos compraram alimentos ultraprocessados.

Ana Carolina Feldenheimer, professora do departamento de Nutrição da UERJ 

Outros municípios, em vez de cestas, distribuíram cartões para compras de alimentos. De acordo com o Guia sobre Alimentação Escolar, a medida é ineficaz, pois o valor que um aluno “custa” para o Poder Público é mais baixo (R$ 0,36 por dia letivo), já que as compras são feitas em larga escala. A transferência de um valor próximo a este às crianças, individualmente, não supre a necessidade nem garante a alimentação saudável daquelas que estão em famílias sem outras fontes de renda.

Reflexos

O problema exposto, claro, é visto também por profissionais que atuam diretamente na saúde pública ou comunitária. Clarice Miranda, nutricionista que atende moradores na comunidade do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, avalia que nos últimos seis meses houve aumento no número de atendimentos de pessoas jovens, principalmente mães, em situação de insegurança alimentar. Um caso recente, do início de fevereiro, é o de uma mulher de 21 anos que não consegue se alimentar idealmente porque deixa os alimentos para que a filha, de cerca de 1 ano, consiga fazer todas as refeições. O cardápio geralmente é macarrão. “A gente não escuta mais falarem tanto de  arroz e feijão, que são a base da alimentação brasileira. De proteína, você escuta frango, ovo, mas não carne vermelha.”

A situação dessa casa é classificada pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE) como insegurança alimentar moderada: “redução quantitativa de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos”. Se essa redução quantitativa atingisse a filha da jovem, elas estariam em situação de insegurança alimentar grave. 

A falta de arroz e feijão nos pratos, percebida por Miranda, também foi mapeada pela POF. De acordo com a pesquisa, em 15 anos houve redução de 52% na quantidade de feijão consumida anualmente por membros de famílias brasileiras. Em relação ao arroz, o índice foi de 37%. 

“No nosso trabalho, hoje, estamos de mãos atadas. O máximo que podemos fazer é orientar quanto a possíveis benefícios, se a família se encaixar nos critérios. Também acionamos as redes [como chamam os contatos com instituições ligadas ao tema] para incluir as famílias nas ações em que ONGs entregam cestas básicas, por exemplo. Mas não tem muito além disso. E dentro de cada realidade, tentamos encontrar soluções, mas geralmente o cenário é muito desolador”, explica a nutricionista.

Os números da POF/IBGE, a principal pesquisa sobre orçamentos dos brasileiros, com dados atualizados em 2018, mostram que mais de 84 milhões de pessoas no Brasil vivem em insegurança alimentar, de leve a grave. Destas, 59 milhões são negras ou indígenas. E mais de 24 milhões de famílias vivem em algum nível de insegurança alimentar, sendo que cerca de 66% têm como pessoas de referência, os chamados “chefes de família”, negros ou indígenas.

Entre todas as famílias com algum nível de insegurança alimentar, 32% são comandadas por mulheres negras ou indígenas. No universo de famílias comandadas por mulheres e na situação de insegurança alimentar, as chefiadas por negras ou indígenas são 68%.

Famílias chefiadas por mulheres e negros e indígenas são maioria com insegurança alimentar

Renda também é menor que a média total e diminui conforme insegurança aumenta

FAMÍLIAS EM (IN)SEGURANÇA ALIMENTAR POR GÊNERO E RAÇA

FONTE PESQUISA DE ORÇAMENTOS FAMILIARES (POF/IBGE)

Descentralização de políticas públicas

Em janeiro de 2019, logo no início do mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), foi extinto um órgão fundamental para ajudar a resolver esse problema, com impacto direto na mesa dos brasileiros mais pobres: o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), criado em 1993, por Itamar Franco, revogado durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso e reconstituído no início do Governo Lula. Por meio da Medida Provisória 870, que se converteu na lei 13.844/2019, Bolsonaro esvaziou o órgão ligado diretamente à Presidência da República e que era responsável por formular, executar e monitorar políticas públicas relacionadas à segurança alimentar e nutricional. 

Hoje, o trabalho feito pelo Consea, com o aval do governo federal, não existe mais. Mas organizações da sociedade civil, como o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, tentam continuar o trabalho de monitoramento e planejam uma nova conferência nacional sobre o tema — inicialmente prevista para agosto de 2020. Um evento em moldes similares era mantido pelo conselho extinto.

O Consea não tinha poder mandatório ou de legislação, não criava leis sobre alimentação, mas a falta do monitoramento e de ações coordenadas tem sido prejudicial. Daniela Canella, professora do departamento de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora sobre determinantes alimentares, avalia que o Consea era um dos principais elementos para garantir a segurança alimentar do brasileiro. 

Aquela situação complicada em relação à perda da alimentação escolar poderia ter sido apoiada mais de perto pelo Consea, que congregava pessoas de diferentes áreas e experiências, auxiliando na operacionalização da entrega da alimentação escolar correta nesse contexto.

— Daniela Canella, professora do departamento de Nutrição da UERJ

A pesquisadora também lista dificuldades para manter um nível de soberania e organização alimentar sem esse conselho específico: “Perde-se a referência central. Em cidades grandes, em alguma medida há mais dificuldade operacional, mas tem mais gente trabalhando. Na cidade pequena há mais facilidade de entregar uma cesta de legumes, por exemplo, mas provavelmente com menos gente formulando políticas sobre isso, leva-se mais tempo para construir uma estratégia eficiente”.

Órgãos como o Consea também fazem falta para iniciativas como a da nutricionista Clarice Miranda, que trabalha com as famílias da comunidade do Jacarezinho. “Se ele ainda existisse, faríamos denúncias e teríamos estratégias e ações para resolver situações de famílias nessa insegurança: incluí-las em programas de cesta básica, batalhar por renda mínima. Tudo nesse sentido de movimentação, que não temos mais.”

Movimentação

No contexto da pandemia, grandes redes de supermercados divulgaram ações pontuais de apoio à alimentação dos brasileiros. Mesmo com as denúncias de racismo enfrentadas após o assassinato de José Alberto Freitas, homem negro, em uma de suas lojas, a rede Carrefour divulgou longo relatório que detalha suas ações durante a pandemia. A primeira “frente de ação” foi a doação de alimentos e de máscaras de proteção e prevenção ao coronavírus. 

De acordo com o Carrefour, a ação foi feita em 22 estados brasileiros, número abaixo dos 26 estados em que a rede opera. Foram gastos, ainda de acordo com a empresa, quase R$ 9 milhões para auxílio a 900 mil pessoas. 

Ano marcado por assassinato em loja não impediu aumento do lucro do Carrefour | Foto: Wikimedia Commons
Ano marcado por assassinato em loja não impediu aumento do lucro do Carrefour | Foto: Wikimedia Commons

O Grupo Big, ex-Walmart, também divulgou ações semelhantes. Numa parceria com outras três instituições, afirma, foram distribuídas 250 toneladas de alimentos e cerca de 30 mil itens de higiene pessoal.

Mas fora deste contexto, ações pensadas e aplicadas para combater a insegurança alimentar brasileira são escassas. O Carrefour, por exemplo, tem uma “plataforma de combate ao desperdício”, mas não divulga qualquer informação sobre as ações de auxílio às “demandas dos consumidores por alimentação saudável, acessível e sustentável.” O Grupo Big se preocupa em “estimular uma cadeia de valor socialmente responsável”, mas não tem ações fixas ou reflexões públicas sobre o momento atual da fome no Brasil. 

Por outro lado, movimentos sociais, como dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), promovem ações constantes de distribuição de alimentos. Durante a pandemia, o MST conseguiu distribuir ao menos 3.500 toneladas de alimentos em 24 estados brasileiros, graças à produção familiar, além de criação de novas hortas comunitárias para aumentar a quantidade de alimentos a serem doados.

Debate interno e externo

Enquanto isso, organizações da sociedade civil que pesquisam, debatem e agem sobre o tema denunciam que há um lobby silencioso feito pelos supermercados em detrimento da alimentação mais saudável, fato que impacta no ciclo de escassez de alimentos e insegurança alimentar. Uma dessas organizações é o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que visibiliza e discute cidadania no Brasil. 

Athayde Motta, diretor-executivo do Ibase, explica que a melhor forma de garantir soberania alimentar e reduzir os altos índices de famílias em situações de insegurança é fortalecer a produção local, e que esta não é uma preocupação dos supermercados.

Os supermercados fazem lobby. Não de forma explícita e ativa, mas fazem.

“As grandes redes não compram legumes do produtor local, mas ao mesmo tempo fortalecem a ideia da praticidade, que comprar no ar-condicionado é melhor do que ir na feira, pechinchar e comprar os orgânicos. E sutilmente os supermercados tiram a ideia dos ‘produtos de época’, muito comum nas feiras livres, porque eles suprem tudo o tempo inteiro, e um produtor local não consegue colher morangos o ano inteiro, por exemplo”, explica Motta.

Athayde Motta acredita que soberania alimentar no Brasil passa por fortalecimento dos produtores locais | Foto: Divulgação

A escolha por alimentos ultraprocessados em cestas básicas também contribui para a insegurança alimentar, pois para sair dessa categoria é preciso ter acesso a alimentos de qualidade. No contexto de pandemia, a escolha das autoridades também prejudica a soberania alimentar — enquanto fortalece as grandes redes.

“Quando uma prefeitura compra de um atacadão ou supermercado, além de alimentos de menor qualidade para as crianças [no caso das merendas], gera um impacto para além de 2021, pois descapitaliza os agricultores familiares: eles não vendem sua safra, têm problemas de escoamento e não vão ser recapitalizados para a próxima safra. Cria-se um outro ciclo que cria impacto no preço do alimento fresco”, afirma Ana Carolina Feldenheimer. Assim, portanto, as famílias mais pobres continuam comendo mal, pouco ou nada.

Preocupação dos supermercados

O relatório “Por trás das suas compras”, da Oxfam Brasil, mostra que a preocupação com trabalhadores e produtores rurais e locais também não é uma constante para grandes redes de supermercados. A ONG avaliou indicadores internos de Carrefour Brasil, Grupo Pão de Açúcar e Grupo Big em relação aos Direitos Humanos, cadeias de fornecimento e equidade de gênero. 

Gustavo Ferroni, coordenador de Setor Privado e Direitos Humanos da organização, avalia que um dos principais problemas que a Oxfam encontrou na análise é a falta de linearidade entre prática e discurso: “Os supermercados têm discurso de sustentabilidade forte, mas na prática é diferente. Quando divulgam suas ações nesse sentido, as informações são escassas. Mas sequer sabemos se eles realmente fazem. Não tem como fazer checagem das informações e ações divulgadas”.

Ferroni exemplifica que há uma demanda histórica para saber quem são os fornecedores das grandes redes, para mapear eventuais problemas na cadeia de fornecimento que sejam contrárias à garantia dos direitos humanos e denunciá-los às redes, para cessar transações. Mas os canais de denúncias, na realidade, são nulos. “Do que adianta ter um canal para denunciar um fornecedor problemático se não sabemos sequer para onde vão os alimentos que ele produz?”, questiona, em relação à falta de transparência da lista de fornecedores.

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Equidade de gênero é observada internamente mas supermercados não priorizam produtoras do campo Foto: José Fernando Ogura/ANPr

Uma outra conclusão do relatório é que, em relação à equidade de gênero, os supermercados se preocupam com seus processos internos de fomento à contratação de mulheres para cargos de liderança, mas o mesmo não acontece em relação à vida e ao trabalho das mulheres agricultoras, que estão na cadeia de fornecimento. E não é que a equidade nos altos cargos seja dispensável: o livro “Donos do Mercado” também mostra que, em 2018, havia 15 mulheres na “alta administração” do Grupo Pão de Açúcar, enquanto homens eram 62. Em cargos de “liderança”, que os autores chamam a atenção pela possibilidade de ser apenas líder de setor em uma das lojas, elas eram 32,3%.

Mas o relatório da Oxfam não tem registro de ação das grandes redes para lutar pela equidade de gênero fora do ambiente administrativo, principalmente em entender como é o panorama dentro da cadeia de fornecimento.

“Não tem como uma empresa dizer que não é um tema relevante, tanto na ponta da cadeia quanto na loja. É importante que uma empresa olhe para as mulheres nas cadeias de fornecimento, no sentido de mitigar riscos, mas também no sentido de fortalecer as produções das mulheres. Tem alguns pontos: a falta de investimento no campo, a mulher trabalhando, a diferença de pagamento, a questão de condição de trabalho, banheiro, maternidade. Como uma trabalhadora lactante vai se deslocar 30 quilômetros para trabalhar, como vai amamentar? Como isso é cumprido? Se não olharem, estão contribuindo para que uma situação desigual, injusta e violadora de direitos se mantenha”, avalia Ferroni.

E completa: “Existem compromissos, falam em questões de gênero e uma preocupação específica das mulheres e questões LGBT+, mas quando vai mais longe na cadeia de fornecimento, não há ações”. 

*Lola Ferreira é repórter e Flávia Bozza Martins é analista de dados da Gênero e Número

Mães de Maio realiza pesquisa sobre mortes violentas

Por Carolina Messias 

Movimento está promovendo uma pesquisa sobre o que mudou na vida de familiares de pessoas mortas pela polícia ou outras forças de segurança.

Você teve algum familiar morto pela polícia? Você adoeceu e até hoje sente os efeitos dessa violência? Justamente isso que o Movimento Mães de Maio quer saber através de uma pesquisa de escuta contra a impunidade do Estado.

O objetivo é entender melhor os efeitos dessa violência para conseguir mudar essa realidade. A pesquisa dura em média 7 minutos para ser preenchida. Clique aqui para responder.

Histórico

Maio de 2006 ficou conhecido como o mês mais sangrento da cidade de São Paulo devido ao caos entre ataques do crime organizado a alvos policiais. Foram mortos 59 policiais pelo crime organizado e, como retaliação, homens encapuzados, incluindo policiais, assassinaram 505  pessoas.

Maio, que também é conhecido pelo mês das mães, foi o mês que mudou completamente a vida das mães das vítimas dos jovens mortos durante esse período.

Em Santos, no litoral paulista, vivia Débora da Silva, mãe de um casal de jovens. Ela estava escutando no rádio um programa policial quando escutou o nome de seu filho Edson Rogério Silva dos Santos, de 29 anos, como um dos corpos que precisava ser reconhecido no IML da cidade.

Hoje, quinze anos após o massacre, Débora é a líder do movimento Mães de Maio, grupo de mulheres de diferentes cidades que se uniram para partilhar suas dores e se constituiu como um dos principais movimentos sociais do Brasil da atualidade.

As Mães de Maio iniciaram suas atividades denunciando os crimes provocados pelo Estado diante da morte de seus filhos e da ausência de investigação. Também defendem a desmilitarização da polícia e o fim do sistema capitalista.

“No meu entender como mãe, nada mais justo no país genocida da nossa população, nosso povo, que é esquecido das políticas sociais, seja lembrado”

“Sua raça é resistente à dor”: mulheres relatam racismo em atendimentos médicos

Ofensas explícitas, diagnósticos imprecisos e procedimentos desnecessários fazem pacientes negras e indígenas evitarem consultas e tratamentos

Por Marília Moreira

“Agora eu uso a desculpa da pandemia, mas na verdade o buraco é bem mais embaixo”. É desse modo que a estudante universitária Jé Hámãgãy, 22 anos, justifica o fato de estar evitando ir a médicos desde que o seu filho nasceu, há pouco mais de seis meses. 

Uma “desculpa”, como ela mesma diz, já que foi durante a pandemia que ela fez todas as consultas e exames de pré-natal, em hospitais públicos de Belo Horizonte e de Lagoa Santa, na região metropolitana de BH. Mas foi justamente nessas ocasiões, que Jé vivenciou uma série de situações racistas, que reviveram novos e velhos traumas de toda uma vida em atendimentos médicos. 

“São vários episódios, mas durante a gravidez foi pior. A médica disse que era muito cedo para eu estar grávida, não fez nenhum exame para comprovar se eu estava ou não gestante, e me fez pagar uma endoscopia urgente para o enjoo e desconforto no estômago. Não fui anestesiada e senti muita dor. Depois descobri que mulheres grávidas não podem fazer esse procedimento”, conta Jé. Ela é indígena e acredita que a postura da médica foi totalmente motivada pelo preconceito. 

Histórias como a dela alertam para como o racismo, que perpassa todas as relações sociais no Brasil, assume formas específicas dentro de consultórios, clínicas e hospitais. Para discutir o assunto e saber como isso acontece, AzMina coletou mais de cem relatos de mulheres de todo o país sobre suas experiências em atendimentos médicos.

Mais de 82% das respostas foram de mulheres não-brancas: 60,6% pretas, 19,2% pardas e 3% indígenas. Destas, quase 68% afirmou já ter sofrido racismo durante atendimento médico e pouco mais de 16% disse que “talvez” tenha sofrido. As especialidades com maiores ocorrências, relatadas no formulário foram ginecologia (43 casos), clínica (40), dermatologia (19) e obstetrícia (10).

racismo saúde

Os dados que coletamos não têm validade estatística, mas os relatos que recolhemos dão uma noção da complexidade do tema. A naturalização e a multiplicidade das situações geram dificuldade em conceituar a violência, muitas vezes percebida pela paciente algum tempo depois ao ouvir outras histórias e, sobretudo, ao comparar sua experiência com a de mulheres brancas. Nas respostas que coletamos, 26% das mulheres afirmam ter percebido que foram vítimas de racismo na assistência à saúde  logo depois ou algum tempo depois do atendimento.

PROVA DE OBSTÁCULOS

Explícitas ou veladas, as barreiras começam antes mesmo da conversa com o médico. Foi o caso da culinarista Marinalda Soares, 50 anos, cujas piores experiências aconteceram ainda na recepção da Unidade de Saúde da Família do bairro onde mora, em Feira de Santana, na Bahia. “Há anos venho reclamando do tratamento desproporcional que a atendente dá aos pacientes, ela privilegia alguns e sempre são as pessoas de pele clara”, denuncia Marinalda. 

Certa vez, nesse mesmo posto, ela ouviu do médico que ele precisava de uma pretinha como ela para cuidar dele e fazer comida. “Eu rebati imediatamente, perguntando: ‘É o quê, doutor?’, mas ele desconversou”, lembra a culinarista, escancarando o assédio e também o racismo da situação.

No caso de Jé, citada no início da reportagem, ela ouviu de funcionários, ainda no corredor do hospital, que “índia não fecha as pernas e, por isso, engravida cedo”; na hora do preenchimento da sua ficha cadastral, marcaram sua cor como “parda”. “Puseram lá que eu era parda e ponto. Não fui questionada em nenhum momento sobre como me declaro. Essa foi a primeira vez que de fato eu bati pé. Fiz questão que alterassem, colocando ‘indígena’ tanto na minha ficha, quanto na do meu filho”, recorda.

A recorrência de comportamentos como esses  foi o que motivou a assistente social Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, uma das 150 organizações que integram a Coalizão Negra por Direitos, a pressionar o Ministério da Saúde para incluir os indicadores de raça/cor nos boletins sobre a pandemia. 

“A gente precisa ser reconhecida até para a formulação de políticas públicas. Se não constamos nos registros, não existimos. Sou indígena, meu filho também, e eu não vou aceitar ser parda” – Jé Hámãgãy, 22 anos, estudante universitária

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“Há uma tendência em dizer que a população não gosta de ser inquirida sobre raça/cor, que se sente ofendida, que esse dado não serve para muita coisa. Se não for obrigatório ser preenchido, as pessoas pulam ou definem elas mesmas a raça/cor das outras”, alerta Lúcia.

CONSEQUÊNCIAS PARA TODA A VIDA 

Diagnósticos imprecisos, tratamentos equivocados e gastos com medicamentos desnecessários são algumas das consequências mais imediatas de um atendimento racista. Nas respostas que coletamos via formulário, são recorrentes histórias envolvendo as três questões.

Em um caso de uma leitora que não quis se identificar, a médica receitou um remédio para piolho, quando na verdade o problema da paciente era uma dermatite. “Ela disse que eu estava com piolho, mas que não dava para ver porque meu cabelo é cacheado. Disse que era para eu usar o remédio por duas horas, mas eu li na bula que não podia passar de 10 minutos.  Foi aí que eu vi que tinha algo muito errado. Fui em outra médica e ela identificou a dermatite. Ou seja: a outra médica ‘confundiu’ caspa com lêndea e ainda disse pra eu deixar um inseticida na cabeça por duas horas! Ainda bem que não deixei”.

O receio de passar por novas violências também faz com que elas deixem de procurar assistência médica, “Estava grávida de gêmeas idênticas, mas a obstetra não sabia, pois não solicitou ultrassonografia. Tive parto prematuro e perdi uma menina. Gestante de alto risco com pré-natal de baixa qualidade por ser negra, tive sorte de não morrer, pois sou hipertensa. Na época, 1982, eu desconhecia a existência do racismo estrutural e institucional. Perdi mais 3 filhos e fui histerectomizada sem necessidade”, diz uma mulher negra, vítima de racismo obstétrico, que também não quis ser identificada.

É comum que as mulheres que sofrem racismo sintam vergonha e não queiram se identificar ou denunciar formalmente tais situações, inclusive por medo de não conseguir provar. “Quando essas denúncias chegam ao sistema de saúde, aos órgãos competentes, elas são mal compreendidas. As mais graves se tornam problema dos profissionais envolvidos, e as mais leves são entendidas enquanto um problema da vítima. Por muito tempo, inclusive, havia uma plaquinha de desacato à autoridade em hospitais e postos de saúde, como se a pessoa  que exigisse seus direitos, estivesse desacatando os profissionais. Tudo isso tem a ver com a dinâmica entre as instituições, o público e as relações de poder”, explica Lúcia Xavier.

“Na hora você se sente impotente, o médico está naquela posição de que sabe tudo sobre o corpo humano. Então se ele está subestimando a minha dor,  logo penso que não deve ser mesmo coisa séria. Isso é muito perigoso e muito angustiante também. Como mulher preta, noto na minha história e na de mulheres da minha família uma dificuldade em se cuidar, em prevenir. Já é difícil, e se quando me dou ao luxo de cuidar de um problema que não é agudo, o médico subestima minha queixa, aí fica mais difícil ainda”, diz a advogada Letícia Pereira.

Tudo isso, faz com que a mulher sofra de modo mais intenso com as consequências psicológicas do racismo, e a consulta de rotina vire sinônimo de medo e ansiedade.

“A violência obstétrica que sofri foi um gatilho para muitos transtornos de ansiedade que tenho até hoje. Foi um sofrimento mental muito grande ficar a mercê de médicos que se recusaram a fazer meu parto cesárea alegando que eu tinha quadris largos e que mulheres negras nasceram para ter parto normal (sim, eu ouvi isso!). Eu já estava na 41ª semana de gestação, e um mês antes tinha ficado internada com pré-eclâmpsia por 15 dias. Uma sensação de impotência e um medo enorme de sofrer isso de novo”, recorda outra mulher.

NÃO É MAU ATENDIMENTO, É RACISMO

“As situações que vivi sempre foram veladas, nada muito direto. Mas depois de um tempo vem a sensação de que houve uma falta de cuidado, falta de zelo, que não aconteceria com uma paciente branca”, conta a advogada Letícia Pereira, 23 anos, ao citar como exemplos a média de duração do atendimento, a ausência de toque e a qualidade da inspeção visual durante um exame dermatológico.

A jornalista Layane Coelho também sentiu na pele o peso do preconceito durante uma consulta com uma dermatologista. “Eu estava com micose na unha porque tenho alergia a sabão, aí durante o atendimento a médica disse ‘você tem que pedir sua patroa para comprar luva’. Na época, eu era estudante de jornalismo e em nenhum momento falei que trabalhava como faxineira ou empregada doméstica”. 

Falei pra ela que a única louça que lavo é a minha, mas ela insistiu e repetiu ‘você tem que pedir sua patroa para comprar uma luva’ – Layane Coelho, jornalista

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Nos atendimentos, são recorrentes agressões verbais, “elogios” ofensivos, assédio sexual, violência obstétrica, recusa de anestesia, falta de escuta à queixa, diagnóstico equivocado e/ou tardio, além de falas eugenistas, que pressupõem a existência de que raça determina questões de saúde –  a exemplo de “você é mais resistente a dor”, “negro tem sangue ruim” e “esse é um mal da raça”.

“O racismo na saúde pode incluir tanto a falta de acesso ou a má qualidade dos serviços, estendendo-se às próprias relações de poder entre os usuários e os profissionais dentro das instituições, até o dano físico ou psicológico decorrente do atendimento”, explica a médica e mestre em Saúde da Família Denize Ornelas. 

“A identificação destas situações não é uma tarefa simples, e profissionais e pacientes só serão capazes de percebê-las se estiverem atentos para a existência e importância das relações étnico-raciais”, complementa.

SUA CONSULTA TEM COR?

Há seis anos, o coletivo NegreX reúne médicas e médicos negros e estudantes de medicina para combater o racismo na saúde, tanto no ambiente acadêmico como na assistência direta à população. O grupo busca ampliar o tema por meio de intervenções no currículo médico e organização de eventos. 

“A premissa que rege a fundação do nosso coletivo é a de que o racismo é um problema estrutural que também perpassa nossas formações. Na medicina, isso acontece de forma violenta porque a gente está em contato direto com o outro, com o paciente”, explica a estudante de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do coletivo NegreX  Sabrina Costa, 20 anos.

Na palestra formativa “Sua Consulta Tem Cor?”, o coletivo apresenta três casos clínicos diferentes e provoca uma discussão sobre a atuação médica em cada um deles. A palestra é feita tanto com alunos do primeiro semestre, quanto do internato, na fase final do curso, de modo a estimular uma atuação profissional atenta à questão racial.

“Quando começamos a fazer a palestra, em 2016, as discussões rendiam pouco. Por mais que a gente motivasse o debate, aqueles eram temas que nunca tinham sido discutidos na universidade daquele modo. Hoje, com o sucesso da política de cotas e uma diversidade no corpo discente dos cursos de medicina, esses debates rendem muito mais, com os próprios alunos contando suas experiências enquanto pacientes, coisa que quase não existia há quatro anos”, compara Sabrina.

No currículo formal, o avanço ainda é tímido. O próprio conceito de raça como um determinante socialmente construído é contestado por alguns professores, já que biologicamente “não existe raça”. 

“Eu me autodeclarei preta e o médico contestou dizendo que eu deveria entender que eu era igual a todo mundo. Só que depois, no exame ginecológico, ele perguntou meio que já afirmando se eu já tinha tido filhos, mesmo eu tendo dito antes que não”, recorda uma  mulher que respondeu ao questionário d’AzMina, mas não quis se identificar.

Para a médica Denize Ornelas, situações como essa podem ser evitadas com o letramento racial dos profissionais que ainda hoje acreditam que não falar em raça é uma forma de tratar todo mundo. “Respeitar a autodeclaração e dar a devida importância ao fator raça no atendimento é se permitir perceber que a queixa e o quadro clínico do paciente podem estar associados ao racismo”, defende.

A assistente social Lúcia Xavier é mais enfática ao descrever o problema e exigir soluções. “Todo mundo acha que esse é um problema de formação dos agentes de saúde, que não estão adequados para esse atendimento. Mas isso não é verdade. Ninguém entra no sistema de saúde sem experiência e formação. A humanização é um princípio do SUS. Não acredito que o foco para combater as situações racistas do atendimento seja a formação que, claro, deve ser incentivada de forma contínua. Isso é fruto de uma questão ideológica, da crença de que alguns merecem um atendimento de menos qualidade que outros, e isso demanda que as pessoas denunciem e que os profissionais e instituições sejam responsabilizados jurídica e formalmente”, comenta.

A MEDICINA AINDA É BRANCA

Em 2020, o Brasil atingiu o marco histórico de meio milhão de médicos. As características demográficas da classe, no entanto, ainda seguem o padrão hegemônico: branco e rico. 

“Essa realidade mostra o quanto é importante o profissional de saúde entender que para uma pessoa negra ou indígena, ou mesmo para uma pessoa mais pobre, essa relação pode ser intimidadora. O paciente já chega acanhado, receoso. É preciso deixar essa pessoa à vontade para tematizar as questões que têm a ver com a vivência e a experiência dela”, ressalta Ornelas.

De acordo com o estudo Demografia Médica, da Universidade de São Paulo (USP), lançado em dezembro, dentre os concluintes de Medicina em 2019, 67,1% se autodeclararam da cor ou raça branca; 24,3% se declararam pardos, enquanto apenas 3,4% se autodeclararam da cor ou raça preta. Os demais se declararam de cor ou raça amarela (2,5%) e indígena (0,3%), além de 2,4% que não quiseram declarar. Entre os períodos estudados (2013, 2016  e 2019), houve um aumento pequeno e gradual do percentual de alunos autodeclarados pretos e pardos.

Embora não haja nenhum dado consolidado indicando quantos profissionais de saúde pretos e indígenas realmente atuam no mercado de trabalho, considerando os que conseguem finalizar o curso,  são poucos. Foi o que o dentista Arthur Lima percebeu quando se formou na faculdade de odontologia, em 2015. “Uma colega me perguntou se conhecia um outro dentista negro. Procurei, procurei e não achei. A partir disso, quis criar algo que pudesse facilitar esse acesso”, diz ele. 

Sócio-fundador da AfroSaúde, uma plataforma que conecta público a profissionais de saúde negros, Arthur foi eleito no ano passado uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo por conta da ideia. Para ele, o grande objetivo é que a população negra se sinta mais confortável nas consultas e no atendimento.

O projeto que, inicialmente, só abarcava a cidade de Salvador logo tomou proporção nacional. Hoje o aplicativo conta com mais de 500 profissionais inscritos, das mais diversas especialidades –  as duas em que há maior dificuldade de encontrar profissionais negros são a dermatologia e a ginecologia.

Em nota, o Conselho Federal de Medicina ratifica que é vedado ao médico  qualquer tipo de expressão de preconceito contra o paciente ou familiar e ressalta que o Código de Ética Médica cita em vários trechos a necessidade de se respeitar os pacientes segundo suas características.  

Ainda segundo o CFM, não há, na instância, casos de médicos sendo denunciados por racismo.  “No entanto, lembramos que o Conselho Federal de Medicina é uma instância recursal, ou seja, nele tramitam apenas processos que já foram julgados nos conselhos regionais e em que, após a sentença inicial, uma das partes sentiu necessidade de pedir uma revisão do que foi decidido”, diz a nota. Atualmente, o conselho não conduz estudos ou levantamentos sobre este tipo de situação.

VOCÊ É PROFISSIONAL DE SAÚDE?
10 DICAS PARA UMA CONSULTA SEM RACISMO 

Não é vitimismo, nem “mimimi”

As populações negra e indígena vivenciam realidades que exigem um atendimento de saúde específico.

Não comente  aparência física 

Nem para criticar, nem para elogiar. Comentários, frases e palavras revestidas de aparente normalidade carregam e fortalecem o preconceito e o racismo dissimulado.

Respeite a dor da sua paciente

Há uma crença de que pessoas negras são mais resistentes à dor. Isso é racismo! Não negue anestesia, analgésicos ou quaisquer medicações que possam aliviar os sintomas da sua paciente.

Abra mão dos estereótipos

Mulheres negras são hiperssexualizadas e isso faz com se intua que são heterossexuais, com vida sexual ativa e com mais chances de ter ISTs e gravidez indesejada. Deixe de lado o preconceito e ouça o que a sua paciente tem a dizer.

Não existe “mal da raça”

Hipertensão, diabetes, anemia falciforme são frequentes na população negra, mas se você associa a ocorrência delas a um “mal da raça” ou a “sangue ruim”, você está sendo racista! Esses falsos diagnósticos já foram usados por médicos eugenistas para defender uma superioridade racial e legitimar a segregação.

Facilite o acesso aos medicamentos

Ao receitar um medicamento, informe sempre o princípio ativo, de modo que a paciente possa buscar o laboratório que mais corresponda à sua realidade financeira. Nunca pressuponha que ela pode ou não pagar pelo tratamento.

Prescreva exames

Não é porque as populações negra e indígena têm, estruturalmente, menos acesso a exames, que o médico não deve prescrevê-los. 

Fale sobre raça

Pergunte sobre como a sua paciente se autodeclara e se aproprie do vocabulário para tratar de raça durante sua consulta Assim você estará realmente atenta às questões proporcionadas ou agravadas pelo racismo.

Invista em sua formação 

Os cursos superiores ainda estão bastante atrasados nessa discussão. Atuar na assistência à saúde de negros e indígenas exige formação e capacitação contínuas.

Lembre-se: isso é só o básico 

Respeito, humanização, acolhimento são somente o básico para um atendimento comprometido com as pessoas e com o fim do racismo.

22 curtas LGBT brasileiros para todos os gostos

Um dos nossos especiais de conteúdo mais queridos é o #CurtadaSemana que rolou ao longo de 2020, onde semanalmente a equipe da Casa 1 indicava um curta-metragem brasileiro de temática LGBT+.

Junto das indicações vinha sempre uma ilustração linda de morrer da Paola Rodrigues, diretora de arte da Casa 1.

Para não deixar esse conteúdo se perder nesse mundão das redes sociais, reunimos aqui todos os título.

Prepara a pipoca, e boa sessão!

“Terra Sem Pecado”, dirigido por Marcelo Costa, baseado na pesquisa “Homossexualidade indígena e LGBTQfobia no Brasil: duas faces da mesma moeda.”

Assista gratuitamente na plataforma LGBTFlix do #VoteLGBT, aqui: https://bit.ly/2HVo7iS

Rapaz em Amarelo é um curta-metragem realizado como TCC de estudantes de Imagem e Som (UFSCar) e que acompanha uma trama simples onde Rodolfo sente os limites entre sua vida privada e profissional tornarem-se cada vez mais tênues quando Alberto é contratado pelo pequeno escritório Lima Advogados Associados.
A direção de arte é babadeira, assim como as belas cenas de sexo e afeto.
Você pode ver aqui: https://www.votelgbt.org/galeria-lgbtflix/rapaz-em-amarelo

“Guaxuma”, de Nora Normande narra a amizade e o amor de infância entre Nara e Tayra, criadas na região litorânea de Alagoas. O filme concorreu como melhor curta de animação no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro e temos certeza que você vai se apaixonar como a gente!

Você pode assistir grátis no #LGBTFlix do @votelgbt : https://bit.ly/3nA1XTX

Em “Depois daquela festa” acompanhamos Leo tentando encontrar um jeito de dizer para seu pai que já sabe de seu relacionamento com outro homem. Mudando um pouco os pontos de vista que costumamos ver nesse tipo de narrativa, o curta nos traz a compreensão, proximidade e carinho de um filho para com o pai que não sabe como dar a notícia.
Você pode ver assistir o curta gratuitamente pelo link: https://bit.ly/2GCZg2G

 “Perifericu”, traz a narrativa de duas jovens, Luz e Denise, enfrentando adversidades de ser LGBT no extremo sul da capital paulistana e a batalha delas para conquistar os sonhos e lidar com as incertezas da vida. O curta tem a direção de Nay Mendl, Rosa Caldeira, Stheffany Fernanda e Vita Pereira. Quando indicamos ele estava em cartaz em uma mostra. Acompanhe o perfil no Instagram do curta: https://www.instagram.com/perifericu/

“Estamos Todos Aqui”, do Chico Santos e Rafael Mellim, que traz a maravilhosa Rosa Luz numa história sobre luta e moradia, ao mesmo tempo em que acontece a expansão do maior porto da América Latina que atinge os moradores da Favela da Prainha. O filme é realmente imperdível. Dá para assistir de graça aqui ó: https://bit.ly/3bPJlJV

“Território de Mim” é dirigido por um conjunto de diretores: Aline Cortes, Camila Perón, Daniela Moura, Elisangela Cordeiro, Lorena Oliveira, Raul Dias e Yggor Araújo e traz histórias de pessoas LGBT que sofreram violência e que tiveram que reaprender o significado de família, amor e respeito. E não só isso: buscam também lutar para que tenham o direito de viver plenamente. O curta é bem lindo de assistir! Assista gratuitamente aqui: https://bit.ly/2ZpxEoD 

“Tamagochi”, conta a história de Laura, que decide se desligar da internet e dar uma atenção ao mundo que está ao seu redor. Logo conhece Agatha e as coisas entre as duas ficam diferentes como se tudo fosse programado para acontecer! O curta tem a direção de Fernanda Reis! Assista gratuitamente aqui: https://bit.ly/2QxUwxl 

“Wonderfull: meu eu em mim”, documentário realizado em 2016 que traz as vivências de Natasha Wonderfull, mulher trans residente em Maceió e que trabalha simultaneamente com as artes do palco e o atendimento de saúde no programa Consultório na Rua. Para ver, acesse aqui: https://bit.ly/3hnJ0Ar 

“Felícia”, protagonizado por uma advogada bem sucedida, Felícia, casada e que leva uma vida pacata, focada no trabalho. Quando conhece Marina, uma jovem escritora, se interessa pela forma como ela leva a vida. A partir disto, embarcam em uma série de aventuras com a moça. Assista gratuitamente no Youtube.

O Orfão da diretora Carolina Markowicz traz Jonathas, um rapaz sem pais que é adotado por uma família, mas logo logo “devolvido” ao orfanato sob alegação de que ele não é “normal”. Baseado em um fato real.

Quando indicamos o curta ele estava em algumas plataformas mas foram retirados. Acompanhe o perfil da diretora no Instagram para saber sobre novas exibições.

“Quem tem medo de Cris Negão?”, do diretor alagoano René Guerra e composto por um elenco com ninguém menos que Phedra D. Córdoba, Gretta Starr, Thalia Bombinha, Roberta Gretchen, Marlene Loçasso e Divina Núbia!

O curta traz a história de Cristiane Jordan, ou Cris Negão como era chamada, travesti cafetina icônica do centro de São Paulo.

Tá disponível gratuitamente na plataforma LGBTFLIX: https://bit.ly/3hGXhrI

Tendo como ponto de partida a balada “ABC Bailão”, conhecida pelo público gay mais velho, o curta é um retrato de uma parcela pouco explorada da comunidade: os idosos. Delicado e sensível, “Bailão” é daqueles filmes imperdíveis que deixa o coração aquecido.

A direção é de Marcelo Caetano, também diretor do excelente longa “Corpo Elétrico”, de 2017.

Você pode assistir de graça no LgbtFlix do Vote LGBT https://bit.ly/3hbF7Ok

Apresentando a vivência de jovens negros LGBT em Brasília, o documentário “Afronte” escancara a importância da interseccionalidade na formação da identidade de todos e todas nós.

Feito com cerca do R$ 8 mil arrecadados em uma campanha de financiamento coletivo, o filme dirigido por Bruno Victor e Marcus Azevedo ganhou prêmios no 50º Festival de Brasília e no 25º Festival Mix Brasil.

Com a ideia de virar uma série, “Afronte” foi barrado por Bolsonaro de captar verbas pela ANCINE, além de citado nominalmente em live pelo presidente, se tornando alvo de ataques.

Assista de graça, aqui: https://bit.ly/2Cuodv8 

“Preto no Branco” é um curta do diretor Valter Rege que passou pelo Toronto Black Film Festival 2018 sem o apoio da mídia e produtoras, graças e uma vaquinha online. O curta é fruto do edital “ Curta Afirmativo para jovens produtores negros” e tem no elenco Marcos Oliveira, Maria Bopp, Carolina Holanda, Taiguara Nazareth e Guilherme Lopes.

Na trama, Roberto Carlos, jovem negro, encerra o expediente e corre para não perder o ônibus até ser abordado violentamente por dois policiais. Com muitas camadas, o curta é uma aula sobre o racismo no país.

Vale destacar, que apesar do filme não trazer a temática LGBT, seu criador e diretor é um homem negro periférico gay que aborda as questões em seu canal do Youtube.

Assista de graça aqui: https://www.youtube.com/watch?v=rW5DwuRQVuY

“Vestido de Laerte” é uma ficção de 2012 e que traz a cartunista Laerte Coutinho percorrendo um longo caminho pela cidade de São Paulo em busca de um certificado. O curta também se baseia no fatídico episódio em que Laerte foi proibida de usar o banheiro feminino de um restaurante, no mesmo ano.

Assista gratuitamente pela plataforma LGBTflix: https://bit.ly/310SV9C

Com longa carreira de festivais, o curta documental traz a história de Megg Rayara Gomes de Oliveira, ativista de direitos LGBT e do movimento negro e dá uma aula sobre rompimento de barreiras e a importância da educação no país.

Destaque para a cena em que conta como escolheu o nome que te acompanha hoje. Ah, e se assim como nós, quiser saber mais sobre o trabalho de Megg pode ler sua tese de doutorado “(R)existências de Gays Afeminados, Viados e Bichas Pretas na Educação” aqui: https://bit.ly/3hozJs6

Assista o curta de graça, que tem direção de Larissa Nepomuceno e Eduardo Sanches aqui: https://bit.ly/2YxPS5P

Com direção e roteiro de Paulo Leider, o curta conta a história de Willian (o inspirado Vitinho Rodrigues) que trabalha como vendedor de anéis num pequeno canal de televendas e se vê diante de um eminente perigo. Não dá pra contar mais se não acaba a surpresa.

Divertidamente kitsch, obra da fotografia de Letícia Aya e arte de Isabela Segalla e Bernardo Salas, o filme é uma ótima pedida para esse fim de noite.

Você pode assistir de graça aqui: https://bit.ly/30ka8KW

E o #CurtadaSemana é sobre nada mais e nada menos do que a performance Pornoshow Golden Shower, realizada no carnaval de São Paulo em 2019, por Jeffe Grochovs e Paulx Castello.

Dá pra assistir de graça no Instagram: https://www.instagram.com/p/B6lrvBhHzsG/

Dirigido e roteirizado pela Julia Leite, “Ainda Não” é um daqueles filmes que não se pode falar muito para não estragar. Sensível e sincero, tem no elenco a espetacular Gilda Nomacce como uma mãe visitando a filha, interpretada por Clara Villares Gallo, que está prestes a fazer aniversário

Da pra ver de graça no LGBTflix: https://bit.ly/2WFQW8c

E o #CurtadaSemana é um verdadeiro clássico. “Couture” de Dácio Pinheiro apresenta Bianca Exótica sonhando ser uma Top Model. Gravado nos bastidores do desfile de Marcelo Quadros no SPFW de 2003, se tornou base para os mais icônicos gifs da internet brasileira.

Super curtinho mas engraçadíssimo: https://vimeo.com/12408714

Ah, e nessa matéria do Não é gay se: o diretor conta um pouquinho da história do curta e seus próximos projetos. https://bit.ly/2A63nkD

E para estrear a série #CurtadaSemana não tinha como escolher outra obra senão um dos filmes do Fábio Leal que fez vários posts sobre a temática para o nosso blog e fez as lives com entrevistas no Instagram da Casa 1 no comecinho da pandemia.

Com passagem por mais de 30 festivais e prêmios de melhor ator e melhor roteiro no 51º “Festival de Brasília” e melhor curta, melhor direção e melhor roteiro no 26º “Mix Brasil”, entre outros, o curta “Reforma” acompanha Francisco (Fabio Leal) – também diretor, lidando com a insatisfação com seu corpo.

Você pode assistir completo neste link https://vimeo.com/350207935

A luta da xavante de 93 anos contra a fome

Por Marcio Camilo

Para não passar fome, a cacica da aldeia Paranoá, Heroína Rewanhiré, decidiu ir à cidade de Barra do Garças, no leste de Mato Grosso, pedir doações. Aos 93 anos, a anciã se esforçava para levar comida às sete famílias Xavantes de seu território, que desde o início da pandemia sofrem com o agravamento de um problema crônico: a falta de alimentos. Em em 29 de dezembro passado, ela conseguiu seis cestas básicas na sede da Funai no município. Mas naquele dia Heroína estava sem dinheiro para retornar. Assim como a Funai, que não tinha verbas para abastecer quatro camionetes paradas no pátio sem combustível. E mesmo se tivesse não havia funcionários à disposição para dirigir os veículos. A cacica teve, então, de esperar mais duas semanas até conseguir uma carona para levá-la de volta ao seu povo.

O repórter fotográfico José Medeiros, enviado especial da Amazônia Real à Barra do Garças com toda o protocolo de segurança exigida pela pandemia do novo coronavírus e autorizado pelo povo Xavante, acompanhou a viagem de Heroína Rewanhiré em busca de comida. Ela é irmã de Mário Juruna – uma liderança histórica dos Xavante que morreu em 2002, sendo o primeiro indígena brasileiro a se tornar deputado federal. Sempre que vai à cidade, a cacica tem de ficar na casa de uma filha. O local é afastado do centro, onde fica a coordenação regional da Fundação Nacional do Índio (Funai). Isso a obrigava a caminhar por pelo menos meia hora até chegar ao órgão. “Estou doente, cansada e com diarreia. Difícil para mim (sic) ter que ir todo dia na Funai”, desabafou.

Cacica Heroína Rewanhiré (Foto José Medeiros/Amazônia Real)

Informados pela reportagem da situação dramática da aldeia de Heroína Rewanhiré, integrantes da campanha SOS Xavante doaram outras cinco cestas básicas, com a ajuda do guia turístico Maurinho Xavante. Turistas que visitavam a Serra do Roncador e o coordenador do Movimento de Luta Pela Terra Nacional (MLT), Batista da Silva Pereira, também se sensibilizaram. Pereira doou 400 quilos de mandioca, além de ramas do alimento cultivadas no assentamento Wilmar Peres, na região de Barra do Garças. Já os turistas deram uma ajuda financeira para a compra de mais alimentos. 

A jornalista Ana Paula Xavante, uma das coordenadoras do SOS Xavante, explica que a demanda da etnia pelo alimento é uma necessidade real. Desde o início da pandemia do novo coronavírus, a entidade formou uma rede de apoio para doar alimentos a diferentes comunidades indígenas. “Temos aldeias que passam fome”, declarou. “Lutar por alimento é uma questão antiga e que se agravou com a pandemia.” A campanha SOS Xavante já doou, desde o início da crise sanitária, mais de 3 mil cestas de alimentos. 

“São as crianças que mais sofrem”

Indígenas Xavante no Mato Grosso passam por dificuldades e recebem doações
(Foto: José Medeiros/Amazônia Real)

Dos 80 indígenas que vivem na aldeia Paranoá, cerca de 20 são crianças e adolescentes. Sem incentivo para a produção na própria terra e diante de uma política pública que não garante a segurança alimentar, os indígenas se tornaram dependentes de doações de cestas básicas. E mesmo quando chegam elas não conseguem atingir todas as aldeias. Às vezes, a fome é tanta que não chegam a durar uma semana. Entre morrer de fome ou contaminado pela Covid-19, os povos têm se  arriscado a ir para a cidade. O desespero se reflete nos olhos dos pequenos.

“Pois são as crianças que mais sofrem com a fome”, afirmou o professor Bonifácio Ubnatsewawe Tsirobowe. Ele conta que o arroz, feijão, óleo e farinha escassearam na comunidade a partir de junho e a situação persiste até o momento, ainda num cenário de muita preocupação e incertezas diante de uma provável segunda onda de Covid-19, e da falta de planejamento do governo federal para vacinar as populações indígenas.

A comunidade onde vive Bonifácio fica próxima à Serra do Roncador, um dos mais importantes pontos turísticos de Mato Grosso. O local se situa em uma faixa de vegetação composta pela floresta amazônica e pelo cerrado. Paranoá é uma das 58 aldeias da TI São Marcos, ficando isolada das demais. Ela faz divisa com uma série de fazendas de criação de gado e de eucalipto.

Essa localização desfavorece a comunidade, que não possui sinal de internet. Os moradores precisam se deslocar, no mínimo, 10 quilômetros até a porteira de fazenda mais próxima para captar algum sinal e se comunicar com a cidade, seja na busca por alimentos ou para emergência de saúde. A pandemia só escancarou a grande falha que há na rede proteção aos povos originários, que deveria ser garantida pela Funai. É por essa razão que a cacica Heroína, antes do regresso à sua aldeia, declarou à reportagem que a Funai “ajuda muito pouco e sempre enrolou muito para ajudar”. 

 Na aldeia Paranoá, são poucos os que recebem salário. Por lá há dois professores e três agentes de saúde indígena. Outros contam com algum tipo de auxílio do governo federal ou são aposentados. Uma vez por mês, algumas dessas pessoas juntam seus ganhos e com muita dificuldade de locomoção vão até a cidade comprar os alimentos.

A exploração dos povos Xavantes

Garotos Xavante na aldeia em Paranoá (Foto José Medeiros/Amazônia Real)

“Tudo piorou e só aumentou de preço desde a chegada da pandemia”, afirmou o professor Bonifácio. De sua aldeia até Barra do Garças, são cerca de 200 quilômetros, onde fica a Coordenação Regional (CR) Xavante da Funai em Mato Grosso. Para se deslocarem até lá, os moradores de Paranoá dependem dos freteiros, um serviço de transporte que já era caro para os indígenas e que aumentou ainda mais de valor nos últimos meses: “O frete para ir à cidade está caro e os alimentos também. Nosso dinheiro não dá. O que a gente compra de comida não dá para passar o mês, é 20 dias no máximo”, preocupava-se Bonifácio.

Uma viagem de ida e volta da aldeia Paranoá até Barra do Garças, em alguns casos, chega a custar mil reais. Isso ocorre quando um indígena precisa levar uma pessoa junto para ajudar a transportar os alimentos, por exemplo. Cada “carona”, como chamam os freteiros, é sobretaxada em 150 reais. “Isso é uma brincadeira, uma falta de respeito que eles fazem com a gente”, criticou Bonifácio, que ganha um salário mínimo, (R$ 1.100) para lecionar como professor de ensino fundamental em sua aldeia.

Enquanto isso, os que ficam na comunidade tentam se virar como podem. Sanção Xavante procura repassar a tradição antiga de caça ao seu filho Wanderlei Xavante. Foi assim que durante a volta de uma fazenda, onde os dois também foram pedir doações, que eles conseguiram caçar uma seriema. Não foi tarefa fácil para o jovem Wanderlei, mas com a orientação do pai, ele conseguiu cercar e capturar a presa. Naquele dia, a seriema e um bocado de arroz seriam a refeição da família de Sanção, que conta com dois adultos, quatro crianças e dois adolescentes.   

Morte por suspeita de Covid-19

Mulher Xavante trabalhando no artesanato, no Mato Grosso
(Foto José Medeiros/Amazônia Real)

Na pandemia, a falta de comunicação se tornou um problema ainda mais grave em Paranoá. Em junho de 2020, o indígena João Bosco Tomotsudzarebe, de 41 anos, morreu com suspeita de Covid-19 sem que a comunidade conseguisse retirá-lo a tempo da aldeia. Foi impossível fazer um contato rápido com o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Xavante. Quando João Bosco piorou, ao sentir uma grande dificuldade de respirar, Bonifácio e outros indígenas decidiram caminhar até a porteira da fazenda. Assim teriam acesso à internet e poderiam entrar em contato com o Dsei. O contato foi estabelecido, mas quando retornaram, Bosco já tinha morrido. Ao todo foram seis horas de caminhada em vão. “Restou apenas o carro da funerária para levar o corpo”, contou Bonifácio.

Com uma população de 22.256 em Mato Grosso, os Xavante, autodenominados A´uwe (“gente”), da família linguística Jê, é a etnia mais afetada pelo novo coronavírus no Brasil. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 68 xavantes já morreram de Covid-19, de acordo com atualização de casos divulgados em 22 de janeiro. Já a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) contabiliza 49 mortes e 908 casos de Covid-19. 

Mato Grosso é o segundo estado brasileiro com mais mortes indígenas por causa da pandemia: 152 até 22 de janeiro. Ele fica atrás apenas do Amazonas, com 35  óbitos. A Apib contabiliza mais de 49.140 casos confirmados da doença entre 162 povos indígenas e  970 mortes.

“Queremos comer o que a gente planta”

O professor Xavante ressalta que os moradores da aldeia Paranoá querem “oportunidade, insumos agrícolas, estrutura para fazer o roçado, sementes para o plantio e curso de capacitação para fazer o manejo da terra”. “Queremos comer o que a gente planta”, resume Bonifácio Ubnatsewawe Tsirobowe.

Félix Tsiwetsudu Tseredze, vice-presidente da Associação Xavante Warã, ressaltou que os Xavante só vão conseguir uma segurança alimentar concreta quando receberem apoio do governo e serem capacitados em gestão territorial. Félix é primo de primeiro grau da cacica Heroína e mora na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, que também fica na TI São Marcos. É um dos poucos Xavante com ensino superior, sendo formado em Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental pela Universidade de Brasília (UNB). Foram os estudos e os aprendizados do pai, o grande líder histórico dos Xavante, Apoena Tseredze Aptsire, que lhe deram conhecimento sobre segurança alimentar, para que ele e sua família não dependessem apenas das doações dos órgãos indigenistas. 

Atualmente, Félix desenvolve em sua comunidade um projeto de criação de galinhas, que foi aprovado pela Funai, que custeará o projeto com insumos e recursos para a construção da estrutura que abrigará os animais. Para ele, esse tipo de conhecimento faz falta para a comunidade de Heroína e outros grupos Xavante que moram em nove terras indígenas ao leste de Mato Grosso. “É a formação em gestão, em manejo com a terra, na elaboração de projetos que vai garantir a sustentabilidade das famílias. É preciso que a Funai, que o governo apoie os indígenas com políticas públicas nesse sentido. Para que a  gente não dependa só de doações. Elas, claro, são importantes, mas não resolvem o problema. Depois que as doações acabam, o problema continua”, explicou.

Por estarem muito distantes das demais aldeias de São Marcos, as famílias de Paranoá sofrem ainda mais em relação ao acesso dos alimentos. Outro problema grave, conforme a liderança, é o impacto social causado pelos não indígenas na cultura, costumes e filosofia de vida dos Xavante, que tradicionalmente é um povo que produz o seu próprio alimento.

“Por conta da influência do homem branco, desses alimentos processados, muitos Xavante largaram a roça, a agricultura, o costume de produzir seu próprio alimento. Nós temos terras para produzir, mas essa influência do não indígena tem tirado a nossa coletividade, que é a característica mais forte do nosso povo. E, a partir disso, vamos para a cidade em busca dos alimentos processados”, observou Félix.

A Funai admite estar sem recursos

O agente de saúde Civio Tseredzurap (Foto José Medeiros/Amazônia Real)

O coordenador regional da Funai em Barra do Garças, Álvaro Luís de Carvalho Peres, disse à reportagem que 12 cestas básicas foram compradas para serem destinadas à Paranoá, inclusive as 6 entregues à família de Heroína. Peres reconheceu que a Funai está sem recursos financeiros para levar as demais cestas à comunidade, e os servidores estavam de férias no mês de janeiro.

“Tenho carro aqui no pátio para fazer o transporte e entregar as cestas nas aldeias, mas sempre no final do ano o governo federal recolhe os recursos e no momento sem servidores eu não tenho como entregar nas aldeias. Mas se tivesse os servidores aqui, eu não teria como deslocar os mesmos por falta de diária que será repassada pelo governo assim que iniciar a gestão econômica do ano de 2021”, argumenta.

Diante da falta de logística para entregar as cestas, Peres pede que os próprios indígenas se dirijam à Barra do Garças. “Através de meu telefone atendo os caciques e digo que se eles tiverem como vir à cidade eu autorizo o fornecimento das cestas que a aldeia tem direito. Caso não possam vir, digo que esperem nas aldeias que tão logo eu tenha recursos financeiros e humanos eu vou transportar as cestas até as respectivas aldeias”, garante.

Álvaro afirma que Funai procura estimular que os indígenas plantem em suas terras. “O que a Funai pode fazer, está fazendo. E queremos estender para todo o povo Xavante o etnodesenvolvimento. Dessa forma, eles vão parar de viver de assistencialismo”, disse ao comentar que programas com esse viés já estão em curso na Terra Indígena Sangradouro, também dos Xavantes. 

Em janeiro, o coordenador regional da Funai afirmava que o órgão entregaria 900 cestas básicas para as 52 aldeias de São Marcos.

Com militantes antiaborto e militar católico, Damares prepara revisão de Política Nacional de Direitos Humanos

Por Rafael Oliveira e Rute Pina

Com sociedade civil excluída e falta de transparência, policial rodoviário federal, religiosos e servidores sem relação com o tema estão entre os titulares do GT


Um militar aliado de alunos de Olavo de Carvalho; um advogado católico crítico das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre células-tronco, homofobia e aborto em casos de anencefalia; uma ex-assessora parlamentar contrária ao aborto mesmo em casos de estupro. São esses alguns dos nomeados por Damares Alves, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), para um grupo de trabalho que vai rever a Política Nacional de Direitos Humanos ao longo dos próximos meses.

Publicada em 10 de fevereiro, a Portaria nº 457 definiu que o grupo de trabalho irá “analisar aspectos atinentes à formulação, desenho, governança, monitoramento e avaliação da Política Nacional de Direitos Humanos, com vistas a oferecer recomendações para seu aprimoramento e de seus programas”. Damares definiu que o GT se reunirá semanalmente, com prazo de duração até 1º de novembro.

A atual Política Nacional de Direitos Humanos foi instituída pelo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), discutido e aprovado durante o segundo governo Lula, em 2009. Entre os eixos orientadores do PNDH-3 estão a universalização de direitos “em um contexto de desigualdades”, o direito à memória e à verdade e a “interação democrática entre Estado e sociedade civil”, com “garantia da participação e do controle social das políticas públicas em Direitos Humanos”.

O ato da ministra que formou o grupo de trabalho definiu, ainda que o colegiado possa convidar, “representantes de entidades públicas e privadas com atuação na temática de direitos humanos”, mas que estes não terão direito a voto. O texto causou perplexidade nas organizações que atuam na defesa dos direitos humanos. Na quinta-feira (18), mais de 570 entidades assinaram um documento em repúdio à publicação e pedindo a anulação do grupo de trabalho criado por Damares.

A organização Human Rights Watch afirma que a medida do MMFDH fere o princípio da participação social e da transparência. De acordo com Maria Laura Canineu, diretora da entidade no Brasil, o texto da portaria não está alinhado com normativas do direito internacional, do qual o país é signatário.

“O governo é obrigado a fornecer ao público acesso amplo à informação e, além disso, consultar comunidades interessadas quando formula políticas públicas que vão afetá-las. Então, qualquer política que possa ter impacto sobre direitos, por exemplo, de populações indígenas, deve ser feita em consulta com essas populações e outras minorias”, afirma.

Além disso, a portaria veda “a divulgação de discussões em curso pelos membros do grupo de trabalho antes do encerramento de suas atividades”. Na prática, o dispositivo impede que a sociedade civil e a imprensa tenham acesso ao conteúdo discutido por intermédio de instrumentos como a Lei de Acesso à Informação (LAI).

A Portaria nº 458, publicada no mesmo dia, definiu os 14 titulares do grupo de trabalho, além de 28 suplentes. Todos os indicados são assessores ou servidores do MMFDH, entre representantes de secretarias e outros setores da pasta, como a Diretoria de Planejamento e Gestão Estratégica e a de Projetos, Parcerias e Integração Institucional.

Militar católico
O escolhido para coordenar o grupo de trabalho é o secretário adjunto da Secretaria Nacional de Proteção Global do MMFDH, Eduardo Miranda Freire de Melo. Oficial superior da Marinha, Melo está no cargo desde dezembro de 2020, mas sua atuação no governo de Jair Bolsonaro (sem partido) começou ainda no período de transição, em 2018. O militar participou das discussões acerca do Ministério da Educação (MEC), iniciando o mandato de Bolsonaro como secretário executivo adjunto da pasta.

Menos de três meses após o início do governo, porém, Melo foi exonerado do cargo no ministério, que vivia uma batalha entre o grupo de militares e o de apoiadores do ideólogo Olavo de Carvalho. Apesar da formação militar, a exoneração do oficial da Marinha foi apontada como parte de um “expurgo” de olavistas do MEC. Nas duas principais crises do ministério, na transição entre Ricardo Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub e, depois, entre Weintraub e Milton Ribeiro, o nome de Melo foi defendido por alunos de Olavo de Carvalho para o cargo de ministro. 

Após a saída da pasta, ele passou a ser diretor-geral adjunto da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), uma organização social (OS) que esteve ligada ao governo federal até dezembro de 2019. A Acerp é a responsável pela TV Escola e, até meados de 2020, geria a Cinemateca.

Sua experiência prévia aos cargos públicos é principalmente na área da educação: entre 2002 e 2009, foi diretor nacional da Mission Network, uma rede internacional católica que promove programas de formação e voluntariado, e da Catholic Youth World Network, voltada para jovens católicos. Em seguida, entre 2010 e 2013, esteve à frente do Everest International School, em Curitiba. As três organizações são ligadas ao movimento de apostolado Regnum Christi, associado à congregação católica Legionários de Cristo. 

O militar é ainda coordenador do curso de extensão “Pensamento conservador: fundamentos e prática”, oferecido pela Faculdade Inspirar, em Brasília. Entre os docentes do curso estão bolsonaristas e olavistas destacados, como o assessor para assuntos internacionais de Bolsonaro, Filipe Martins, o youtuber Bernardo Küster e a deputada federal Chris Tonietto (PSL-RJ). Além de conceitos e da história do conservadorismo, a ementa do curso inclui temas como “Mídias sociais e conservadorismo” e “O pensamento conservador frente ao globalismo”.

O currículo de Melo aponta que ele foi diretor-presidente do Instituto de Biopolítica Zenith e membro do Observatório Interamericano de Biopolítica, “onde atuou na Defesa da Vida e da Família”.

Valter Campanato/Agência Brasil. O presidente Jair Bolsonaro e a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves


Pauta antiaborto
Também católico, o advogado Rodrigo Rodrigues Pedroso será o representante titular do gabinete ministerial no grupo de trabalho. Assessor especial da ministra desde janeiro de 2019, ele é membro da União dos Juristas Católicos de São Paulo (Ujucasp). Antes do cargo comissionado no MMFDH, Pedroso atuou na Procuradoria Judicial Trabalhista e fez parte do corpo jurídico da Universidade de São Paulo (USP).

Em mais de uma ocasião, o advogado defendeu posicionamentos contrários ao aborto. Em um debate acerca da decisão do STF sobre o uso de células-tronco em pesquisas, em 2008, ele apontou que a autorização era “um pretexto para a liberalização do aborto”. Anos depois, em 2016, Pedroso foi o responsável pela formulação da minuta de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com o objetivo de reduzir o poder do STF, propondo que o Congresso possa invalidar decisões do Supremo quanto à inconstitucionalidade de leis. A proposta do advogado, motivada pelas decisões do STF sobre células-tronco, união homoafetiva e aborto em casos de anencefalia, estabelece que é “vedado ao Supremo Tribunal Federal atuar como legislador positivo”. 

Também contrária ao aborto, mesmo nas situações previstas em lei, a advogada Teresinha de Almeida Ramos Neves é a representante da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres no grupo de trabalho. Ex-assessora parlamentar do deputado federal Gilberto Nascimento (PSC-SP) e dos vereadores paulistanos Pastor Edemilson Chaves (PTB), Gabriel Chalita (PDT) e Eduardo Tuma (PSDB), ela está na secretaria desde maio de 2020. Atualmente, ocupa o cargo de diretora do Departamento de Promoção da Dignidade da Mulher.

Candidata a vereadora em São Paulo pelo PSC em 2012, ela já comparou o aborto, mesmo em casos de estupro, a infanticídio: “Imaginem se todos que, a princípio, não têm condições financeiras para criar seus filhos optassem por matá-los, como se fazia antigamente… Ainda que o feto seja especial, resultado de estupro, a vida sobrepõe! Há vida desde a concepção, portanto, aborto é infanticídio!”. Em seu blog pessoal, Teresinha apontou o combate à homofobia como “perseguição religiosa” e questionou se “o Homossexualismo [sic] tem relação com abuso sexual ou rejeições na área sentimental”.

Entre os críticos da descriminalização do aborto, há pelo menos mais dois titulares do grupo de trabalho: Viviane Petinelli e Silva, representante do gabinete da secretaria-executiva, e Marcelo Couto Dias, da Secretaria Nacional da Família.

Número dois da secretaria-executiva desde julho de 2019, Viviane já defendeu, em uma audiência pública no STF, que a descriminalização do aborto até a 12ª semana pode afetar a dinâmica populacional e reduzir a arrecadação da Previdência. Na ocasião, representando o Instituto de Políticas Governamentais (IPG), ela afirmou que a descriminalização seria onerosa para os cofres públicos. 

Doutora em ciência política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Viviane foi secretária nacional adjunta dos Direitos da Criança e do Adolescente do MMFDH entre janeiro e julho de 2019. Além disso, atuou como coordenadora de conteúdo da Rede Estadual de Ação pela Família, organização que atua “em defesa da vida e da família”.

Já Marcelo Couto Dias, diretor do Departamento de Formação, Desenvolvimento e Fortalecimento da Família, tem uma série de posts com posicionamento contrário ao aborto em sua página pessoal no Facebook. No ministério desde janeiro de 2019, ele passou por diferentes cargos na pasta, ocupando a posição atual desde fevereiro de 2020. Doutor em família na sociedade contemporânea pela Universidade Católica do Salvador (UCSal), é pesquisador na área de família e professor no Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimônio e da Família.

Falta de experiência na área
Além de quadros contrários ao aborto, chama atenção a escolha de servidores sem relação prévia com a área de direitos humanos. Um deles é Wendel Benevides Matos, representante da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos no grupo de trabalho. Agente de carreira da Polícia Rodoviária Federal (PRF), com passagem pela Corregedoria do órgão, ele não tem experiência anterior com o tema. Coordenador-geral da Ouvidoria desde fevereiro de 2019, Matos foi um dos assessores enviados por Damares a São Mateus (ES) para tentar impedir o aborto da menina de 10 anos, segundo a Folha de S.Paulo. O superior dele, Fernando Cesar Pereira Ferreira, que ocupa o cargo de ouvidor nacional, também é servidor de carreira da PRF.

Outra das nomeadas para discutir a Política Nacional de Direitos Humanos, a representante da Secretaria Nacional da Juventude, Sarah de Rezende Antônio, também não tem no currículo ligação com o tema. Formada em direito, com especialização em direito empresarial, desde setembro de 2020 é coordenadora-geral de Desenvolvimento do Departamento de Políticas Temáticas dos Direitos da Juventude. Antes, passou pela Assessoria Especial de Controle Interno do ministério de Damares.

Dois dos representantes do gabinete da secretaria-executiva, de perfil técnico, também não têm experiência anterior na área. Gustavo Teixeira Amorim Gonçalves, coordenador-geral de Planejamento e Gestão Estratégica desde maio de 2019, tem foco na área de planejamento, com passagens pelos antigos ministérios do Planejamento e do Esporte. Já Pedro Paulo Teófilo Magalhães de Hollanda, que desde dezembro de 2019 é diretor de Projetos, Parcerias e Integração Institucional, tem doutorado em administração pela Universidade de Brasília (UnB). Ele foi secretário adjunto da Secretaria Nacional da Família e teve passagens pelos ministérios do Planejamento (2017-2018) e da Fazenda (2014-2015).

Há ainda mais cinco servidores do ministério nomeados como titulares do grupo de trabalho: Milton Nunes Toledo Junior, Luciana Dantas da Costa Oliveira, Rodrigo Abreu de Freitas Machado, Renato da Silva Gomes e Esequiel Roque do Espírito Santo.

Toledo Junior é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais desde janeiro de 2019. Mestre em direito, com foco em direito internacional, foi advogado da União e atuou na Controladoria-Geral da União (CGU) e no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).

Luciana é diretora de Promoção e Fortalecimento da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente desde novembro de 2019. Antes, passou quatro meses como secretária adjunta do mesmo setor. Formada em direito e em serviço social, ela atuou quase três décadas como assistente social do Sesi do Rio Grande do Norte, além de ter atuado como advogada.

Freitas Machado é diretor do Departamento de Políticas Temáticas da Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência desde julho de 2020. Formado em arquitetura e urbanismo, ele ocupa cargos na secretaria desde 2013, tendo passado também pelos governos Dilma e Temer.

Representante da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa, Silva Gomes ocupa cargo no Departamento de Políticas Temáticas da Secretaria desde julho de 2019. Graduado em enfermagem, com especialização e mestrado na área de gestão de saúde e em tópicos da administração pública, ele é servidor de carreira do governo federal. Foi analista técnico de políticas sociais do Ministério da Saúde entre 2013 e 2018 e desde 2018 passou por vários cargos na secretaria do MMFDH voltada para a população idosa. 

O titular do grupo de trabalho com perfil mais relacionado à área de direitos humanos vem da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Número dois do setor desde janeiro de 2019, o advogado Esequiel Roque do Espírito Santo foi presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB de Rondônia e do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do mesmo estado. Ele foi membro de conselhos de direitos da criança e do adolescente em Rondônia. Formado e especializado em direito, com foco nos direitos de crianças indígenas, Espírito Santo foi secretário nacional interino durante três meses, após a exoneração de Sandra Terena, esposa do blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio.

Falta de pluralidade
Entre as entidades que se posicionaram contra a medida do governo, o Movimento Negro Unificado (MNU) também assinou o documento que pede a anulação da portaria. 

Até o ano passado, o coletivo integrava o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). Coordenadora do MNU, Iêda Leal tem receio de que a exclusão da sociedade civil e um grupo de trabalho inexperiente resultem em medidas sem embasamento técnico. Para ela, a nomeação de militantes antiaborto a militares olavistas expõe a falta de pluralidade da escolha, com integrantes que “rezam a cartilha” do ministério.

Arquivo pessoal. “A sociedade civil não cabe em lugar nenhum neste governo”, avalia Iêda Leal


“Quando a gente trabalha com direitos humanos e faz determinações para melhoria de vidas, de pertencimento racial e sexual, a gente tem que tomar cuidado porque não é a vida particular, não estamos legislando para dentro de casa. As pessoas têm que ter comprometimento com o outro”, critica.

Para ela, a medida mostra incompreensão do governo da importância do controle social. “A sociedade civil não cabe em lugar nenhum neste governo”, afirma.

Já Monica Alkmim, coordenadora do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) e e integrante da mesa diretora do CNDH, diz que a convocação de um grupo de trabalho para reestruturar o programa atropela as competências do conselho. 

Integrado por entidades não governamentais e órgãos do governo, o colegiado já tem entre suas atividades o acompanhamento e monitoramento das políticas públicas sobre direitos humanos. “O próprio ministério faz parte do conselho. Qual a necessidade da criação desse grupo de trabalho, se nós já temos um espaço institucional cuja função deveria ser exercida?”, questiona.

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Para a integrante do CNDH, o ministério não se baseou em escolha técnica nem política para a nomeação de seus membros. “Esse grupo de trabalho não foi formado com base em um diagnóstico, em saberes técnicos e normativos nem foi formado com base em uma produção de políticas preexistentes”, analisa. “É uma escolha de amigos dos amigos. Quem segue o discurso que é imposto pela atual gestão é convidado para participação neste e em outros grupos de trabalho.”

O jornal Folha de S.Paulo apurou que o ministério propõe aprimoramento do PNDH com o argumento de que o texto atual tem “metas inatingíveis e pouco focadas em ações efetivas e de impacto social”.

No entanto, Monica Alkmim avalia que o momento não favorece uma revisão do programa. A coordenadora do MNDH lembra outras medidas do governo que minaram a participação da sociedade civil na gestão governamental, como o decreto presidencial 9.759, de abril de 2019, que limitou o espaço dos conselhos participativos. “Esses sinais nos deixam claro que não é uma preocupação com o PNDH, mas com a participação social”, argumenta.

O texto atual do PNDH foi constituído depois de 137 encontros prévios à conferência em que foi redigido. Na época, a Secretaria de Direitos Humanos estimou que aproximadamente 14 mil pessoas se envolveram na elaboração do programa, por meio dessas iniciativas territoriais. “Esse processo de participação democrática não pode ser extinto em uma canetada. Não pode ser extinto em um grupo de trabalho dentro de um gabinete”, defende.

Outro lado
A Pública questionou o MMFDH sobre a composição do grupo de trabalho, seus objetivos e as críticas de falta de transparência e de participação da sociedade civil feitas por organizações de direitos humanos. A assessoria de comunicação da pasta respondeu com o link de duas notas já publicadas sobre o assunto, que não esclarecem a totalidade dos questionamentos enviados pela reportagem. As notas podem ser lidas aqui e aqui. Leia a íntegra das perguntas enviadas.

Foto de capa: Marcello Casal Jr/Agência Brasil com aplicação de filtro vermelho.

Ao filmar abuso policial, veterinaria trans sofre transfobia da PM e é processada

por Caê Vasconcelos.

Veterinária foi levada para delegacia após flagrar abusos no centro de SP em fevereiro de 2020 e está sendo processada por desobediência e favorecimento pessoal. PMs a chamaram pelo nome antigo e não respeitaram sua identidade de gênero

A tarde de 5 de fevereiro de 2020 não terminou do jeito que a médica veterinária Sol dos Santos Rocha, 27 anos, imaginava. Ela estava no trabalho, na República, bairro central da cidade de São Paulo, quando ouviu gritos de socorro. Quando saiu, viu dois policiais militares realizando uma abordagem violenta.

Ela e outras pessoas começaram a gritar que aquilo não era uma abordagem e sim uma agressão, já que os PMs usavam chaves de braço, jogavam o homem de 37 anos, ao solo para tentar imobiliza-lo. Até sentar em cima dele os PMs sentaram. Mais viaturas chegaram e ao todo eram 12 policiais militares para prender um suspeito de furto. As pessoas começara, então, a filmar a ação. Sol foi apenas uma dessas pessoas.

“Um dos policiais apontou para mim e falou: eu quero você, quero os seus documentos. Questionei o motivo e ele disse que eu estava fazendo prova e eu devia ir para a delegacia. Falei que tinha mais gente gravando e ele disse que queria os meus documentos”, conta Sol em entrevista à Ponte.

“Falei que minha bolsa tava dentro do meu trabalho, aí ele me puxou pelo braço, me arrastou até o outro lado, passando por essa meia lua que os policiais tinham formado e me colocando do lado desse cara que tava sendo abordado”, continua.

Travesti negra, de origem periférica, Sol conta que o medo da polícia é constante. Parte desse legado de medo vem da Operação Tarântula, “a caça às travestis” no Brasil durante os anos 1970 e 1980, como ficou conhecida a ação orquestrada pela Polícia Civil. “O que a gente mais quer é evitar polícia, é evitar delegacia”, lamenta Sol.

Depois de ser arrastada pelo policial militar, Sol começou a ser alvo de transfobia. “O PM começou a me abordar de uma forma violenta, me dando chave de braço, me xingando, usando diversos termos transfóbicos, me chamando no masculino”.

“Foi totalmente constrangedor porque eu fui a única pessoa abordada das pessoas que estavam filmando. Ele disse que eu estava sendo presa por facilitar a fuga desse moço, sendo que eu nem conhecia ele. Aí me colocaram dentro do camburão e seguiram para a delegacia”.

Durante os minutos que Sol gravou a situação, é possível ouvir um dos PMs chamando ela pelo nome de nascimento e sempre a tratando no masculino. Os demais policiais diziam a ela que ela deveria “colaborar” e que “chamar de agressão” era exagero. A todo momento, Sol apontava que o PM estava sendo transfóbico, sem sucesso.

“Fomos para um DP. Quando chegamos, outros policiais perguntaram para o PM se ‘isso não pode dar algum problema’ e ele respondeu ‘não, isso não vai dar em nada, é uma travesti de rua’. Querendo dizer que eu era insignificante. Foi assustador”, denuncia Sol. “Eu fui sozinha, só com os PMs, e eu tinha plena consciência que eu ia morrer naquele dia”.

Nessa primeira delegacia, não houve atendimento e os PMs seguiram para o 78º DP (Jardins). No caminho, Sol relata que os policiais cometeram outro abuso. “O motorista estava correndo e o outro policial perguntou se não estava muito rápido e o motorista disse ‘é isso que eu quero, que ele se machuque todo’, se referindo a mim”.

“Foi constrangedor ser detida por denunciar uma violência policial. Isso gera traumas por dias, de eu não conseguir sair de casa, de não conseguir passar perto de delegacia, ter ainda mais medo de ser abordada”, aponta.

Os PMs obrigaram Sol a ir para a delegacia como testemunha, mas avisaram que ela também responderia pelo caso. O crime? Desobediência e favorecimento pessoal. O crime de desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal, é o ato de não acatar ordem legal de funcionário público, com pena prevista de 15 dias até seis meses de detenção e multa. Favorecimento pessoal, segundo o artigo 348 do Código Penal, consiste em “auxiliar a subtrair-se à ação de autoridade pública autor de crime a que é cominada pena de reclusão”, ou seja, ajudar um criminoso a fugir da polícia. A pena para esse tipo de crime é de detenção de um a seis meses e multa.

No 78º DP (Jardins), os PMs Gleydson Paiva de Sousa, 26 anos, e Jefferson Andrade Silva, 31 anos, da Força Tática do 11º Batalhão Metropolitano da PM paulista, relataram, ao delegado Maurício de Thomazi Guedes, que Sol começou a gritar para soltar o suspeito causando aglomeração e “grande dificuldade à realização dos procedimentos” de modo que “não sabiam se essa parte estaria junto com o detido”.

Os policiais também afirmaram que Sol se recusou a se identificar e se recusou a ser revistada por um policial homem. Sol, na visão dos policiais, teve “atitude de deboche e desprezo”. Os PMs também informaram que não viram se Sol ou outra pessoa filmava a ação.

A promotora Marina França Faria Pestana, do Ministério Público de São Paulo, seguiu a narrativa dos PMs e informou que Sol além de “incitar a população contra a ação dos policiais militares” e dificultar a ação, deixou de se identificar quando solicitado.

O advogado Marcelo Feller entrou no caso em 11 de dezembro de 2020, quando anexou aos autos os vídeos da ação. “Certamente o Ministério Público não só reavaliará a presença de justa causa para oferecimento de transação penal e arquivará o presente Termo Circunstanciado em desfavor da Peticionária, como também denunciará os policiais por denunciação caluniosa e por abuso de autoridade”, apontou o criminalista.

Feller também apontou que Sol “sofreu evidente abuso de autoridade ao ser obrigada a ir na delegacia, bem como foi caluniosamente denunciada pelos policiais que, para se protegerem de eventual imputação que Sol fizesse contra eles, optaram por mentir e inventarem práticas de crimes”.

“Sol está sendo investigada por simplesmente ter se inconformado com as
ilegalidades da atuação policial. Está sendo investigada por exigir que agentes públicos ajam com legalidade. E, principalmente, está sendo processada por ser uma mulher trans em uma sociedade extremamente preconceituosa como a nossa”, continuou o advogado no processo. “Se nas ruas os policiais podem tudo, devem ser punidos quando são flagrados, em vídeo, mentindo, abusando de sua autoridade e denunciando caluniosamente pessoas que tentam fiscalizar o seu ofício”.

Em 15 de dezembro de 2020 a promotora Regiane Vinche Zampar Guimarães Pereira disse que “não é o momento oportuno para debates sobre o mérito da causa”, já que “os elementos de prova amealhados em solo policial são suficientes para comprovação da autoria e materialidade dos delitos imputados à autora, sendo certo que nova discussão sobre o mérito dependerá de instrução processual”.

Um ano depois, Sol conta que ainda tem medo: “vou ter para sempre”. “No país em que a gente vive, eu vou ter receio de policiais por todo o sempre. Eu não imaginei que isso iria gerar um processo, eu me sinto indignada, injustiçada”.

“Não estava fazendo nada ilegal, estava gravando uma abordagem policial violenta. Não era um crime para esse processo seguir. Isso faz eu temer muito. Eu moro perto de uma delegacia, trabalho no mesmo lugar, isso ainda me assusta. Mas eu tenho a cabeça firme de que o que eu fiz não foi algo errado. Estou fazendo muita terapia para lidar com isso”, finaliza.

Outro lado

A reportagem procurou as assessorias da Secretaria da Segurança Pública e da Polícia Militar, questionando a atitude dos PMs, principalmente em relação à transfobia apontada por Sol, e solicitando entrevista com os policiais envolvidos na ação. Em nota, a SSP informou que “o caso citado pela reportagem foi registrado pelo 78º DP e encaminhado ao Juizado Especial Criminal (Jecrim). Toda denúncia contra policiais pode ser registrada nas corregedorias das respectivas instituições, que estão à disposição para apurar qualquer denúncia contra seus agentes”.

Também questionamos o Ministério Público sobre a atuação da promotoras, além de solicitar entrevista com elas. Até o momento, não recebemos retorno.

ATUALIZAÇÃO: Esta reportagem foi modificada às 14h30 do dia 19/2/2021 para incluir nota enviada pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.

Especial multimídia “Cova Medida” traça panorama de conflito de terras no Brasil

“Não é cova grande, é cova medida. É a terra que querias ver dividida”. Desse trecho do livro “Morte e Vida Severina” escrito por João Cabral de Melo Neto, publicado em 1955 que a Repórter Brasil, organização de jornalismo e pesquisa para mais recente especial. 

Intitulado “Cova Medida”, o especial traz as histórias de trabalhadores sem-terra, indígenas e ambientalistas silenciados pela violência e pela imunidade no Brasil em 2019, por meio de reportagens , ilustrações, áudios e programas de podcast. 

Não se trata, no entanto, de um podcast de investigação criminal aos moldes dos que têm povoado as plataformas de áudio e se debruçam em um crime específico, ou acompanham serial killers. Em “Cova Medida”, o objetivo não é destrinchar questões de autópsia ou então enveredar pelo suspense, mistério ou terror, o ponto principal é apresentar um panorama das estruturas de poder e dinâmicas políticas que matam por dinheiro, o que não faz do conteúdo menos assustador. 

Os três episódios do podcast já publicados tem em média 20 minutos, mais do que suficientes para informar com profundidade e gerar reflexões e podem ser ouvidos aqui

Sobre a Repórter Brasil  

“A Repórter Brasil foi fundada em 2001 por jornalistas, cientistas sociais e educadores com o objetivo de fomentar a reflexão e ação sobre a violação aos direitos fundamentais dos povos e trabalhadores no Brasil. Devido ao seu trabalho, tornou-se uma das mais importantes fontes de informação sobre trabalho escravo no país”, explica o site da organização.

O que podemos aprender com a legalização do aborto na Argentina

Por Marcelle Souza para AzMina

A onda verde não vai chegar ao Brasil sozinha. A luta das argentinas mostra que é preciso muita ação e mobilização para fazer a legalização do aborto acontecer. Sorte que podemos aprender com a conquista de nossas vizinhas!

Era madrugada do dia 30 de dezembro quando, para a socióloga Dora Barrancos e para milhares de hermanas ativistas, a Argentina passou a ser um país mais igualitário e justo. Enquanto o Senado votava e aprovava a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação, elas se abraçavam comovidas na porta do Congresso ao rememorar o enorme número de vidas que a criminalização do procedimento vitimou ao longo dos tempos. “Com a sanção da lei todas as emoções transbordaram”, conta Dora. 

Em 2018, nós, brasileiras, fizemos uma vigília parecida, em frente ao STF (Supremo Tribunal Federal), onde era realizada uma audiência para discutir a ADPF 442, que pede a descriminalização o aborto no país. Mas o desfecho não foi o mesmo e a vigília brasileira não terminou em celebração. Não só a votação da ADPF 442 está parada até hoje, como os movimentos políticos têm sido todos no sentido de restringir ainda mais o direito por aqui.

Mas a esperança ainda existe: um dia, o cenário na Argentina também foi ruim. E para entender o que podemos aprender com elas para que um dia o cenário mude aqui também, fomos conversar com algumas das responsáveis pela mudança, quatro ativistas e pesquisadoras que acompanharam de perto a conquista. E vale saber: as informações aqui descritas também são fruto de quase quatro anos de pesquisa de doutorado desta jornalista no Programa de Pós-Graduação Interunidades Integração da América Latina na USP (Universidade de São Paulo), que será defendida em 2021. 

“Não tenho dúvidas de que a lei de aborto na Argentina se constitui como um dado exemplar, estimulante, bastante decisivo para a América Latina. Ela fortalece substancialmente os movimentos feministas da região a persistirem nas suas lutas”, diz a Dora Barrancos.

O CONTEXTO HISTÓRICO

Antes de contar o segredo do sucesso, é preciso dizer que essa é uma luta antiga das mulheres na Argentina. “Esse momento é fruto da persistência das feministas, que mantiveram o tema na agenda política ao longo dos anos, mas também é efeito da grande mobilização nas ruas”, diz a advogada Gabriela Rondon, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, que trabalha pela descriminalização do aborto no Brasil.

Um marco importante nessa história foi o fim da Ditadura Militar na Argentina, nos anos 1980, quando as mulheres tentaram incluir nas novas leis do regime democrático a interrupção voluntária da gestação como um direito. Nessa época, a luta ainda se concentrava na militância, especialmente por meio da incidência de organizações como a ATEM (Associação de Trabalho e Estudo da Mulher), fundada em 1982 por pesquisadoras e ativistas, que promove pesquisas e mobilização em temas relacionados à violência contra a mulher e publica a revista Brujas, que trata o acesso ao aborto como tema de direitos humanos.

A principal estratégia de ação eram as marchas nas ruas. É de 1984, por exemplo, a imagem da feminista María Elena Oddone subindo as escadas do Congresso com uma placa “Não à maternidade, sim ao prazer”, na primeira marcha do Dia Internacional da Mulher na democracia. 

Os atos, no entanto, não foram suficientes, e a forte influência da Igreja Católica fez com que a discussão não avançasse. E por anos, essa influência perdurou: durante a visita do Papa João Paulo 2º, em 1998, o então presidente Carlos Menem promulgou uma lei estabelecendo o 25 de março como o “Dia da Criança por Nascer”. 

Para as argentinas, no entanto, a luta não estava esquecida, e a legalização do aborto permaneceu como uma dívida da democracia com as mulheres. “Pensar na legalização como uma dívida histórica toca em um ponto afetivo e político, muito sensível à nossa sociedade. É uma maneira de mobilizar esperanças, mostrando que não renunciamos e que ainda lutamos pelos direitos humanos”, diz a socióloga Nayla Vacarezza, professora e pesquisadora da UBA (Universidade de Buenos Aires).

OS ENCONTROS NACIONAIS DE MULHERES

Junto com a democracia, nasceu um evento que ajuda a explicar a articulação das argentinas ao longo das últimas décadas: os Encontros Nacionais de Mulheres. Eles são realizados anualmente desde 1986, acontecem durante três dias da segunda semana de agosto, reúnem participantes de todos os cantos do país e de diversos movimentos, desde sindicatos a grupos LGBTQIA+, de vários espectros políticos e todo tipo de militância. 

Na programação, há uma abertura, grupos de trabalho, painéis de discussão, uma feira para que as organizações comercializem seus produtos e financiem o deslocamento, e uma grande marcha de encerramento. Em 2020 não houve encontro por conta da pandemia, mas em 2019, em La Plata, foram cerca de 200 mil participantes e quase 90 grupos de trabalho. 

Ao final de dois dias, cada grupo produz um documento com pontos e propostas de invenção sobre o tema tratado (por exemplo: aborto, comunidades indígenas, imigração, maternidade), que são incluídos no documento final do evento. A ideia é que, mesmo nas diferenças, elas consigam tirar dessas reuniões pautas comuns ao movimento de mulheres.

Na plenária final, elas fazem um balanço do encontro e decidem, por meio de votação, qual será a próxima cidade a receber o encontro. Uma comissão com representantes de organizações locais é formada para buscar apoio de estrutura, logística e de financiamento. Muitas participantes chegam com ônibus fretados (pagos por elas ou pelas organizações que representam) e ficam em dormitórios coletivos montados para o evento em escolas e quadras públicas. 

Foi em um desses encontros que surgiu a ideia da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, lançada oficialmente em 2005. 

A CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO AO ABORTO

“Como a Campanha nasceu em um encontro, conseguimos unificar demandas de diferentes feminismos e construir a luta pela legalização do aborto diante da sociedade como a demanda de maior consenso dentro dos feminismos, do movimento de mulheres, lésbicas, travestis e trans. Foi um acordo que se deu cara a cara  e territorialmente nos encontros nacionais de mulheres. É como se, a cada ano, a gente renovasse o contrato feminista, social e político de lutar por esse direito e por essa demanda”, explica Laura Salomé Canteros, jornalista feminista e integrante da Campanha há dez anos. 

Desde o começo, a campanha reúne associações profissionais, acadêmicas e ativistas para pautar o tema a nível nacional. Essa aliança, que hoje tem mais de 700 organizações, deu força ao movimento, e fez dela uma das protagonistas do debate nos últimos 15 anos.

Outro ensinamento importante das argentinas foi a capilaridade das mobilizações, com a criação de comitês locais para discutir o projeto que seria votado em 2018 pelo Congresso. Isso foi feito por meio das redes de profissionais favoráveis à legalização e de organizações associadas à Campanha Nacional.

“A mobilização conseguiu ir para além de Buenos Aires, tinha representantes em várias províncias, inclusive nas mais conservadoras”, diz Gabriela Rondon.

Os comitês locais da campanha são formados por ativistas e integrantes de organizações sociais, políticas, estudantis, sindicais e de direitos humanos que fazem parte da Campanha Nacional. Há pelo menos um grupo em cada Estado do país, que se reunia periodicamente de forma presencial para transmitir e colocar em prática os acordos firmados nas plenárias anuais nacionais. “Eles têm o objetivo de federalizar, territorializar a luta pela despenalização social e a legalização do aborto”, afirma Laura Salomé, integrante da Campanha. 

Isso ajudou a interiorizar o debate, mostrando que não se tratava de um tema apenas para senadores e deputados, mas de todo o país. “Teve muito impacto que essa demanda estivesse em todas as províncias, com a realização de plenárias locais”, afirma Nayla Vacarezza.

“Isso é importante, porque não basta aprovar o projeto de lei, é preciso sensibilizar, especialmente o sistema de saúde, para que depois ele seja implementado”. Nayla Vacarezza.

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NAS REDES E NAS RUAS

Uma das imagens características dos atos pela legalização do aborto na Argentina são as que unem adolescentes e veteranas do ativismo. Isso foi impulsionado pelos atos do Ni Una Menos, que em 2015 fizeram milhares de mulheres saírem em protesto contra a morte da adolescente Chiara Páez, 14, que estava grávida quando foi assassinada pelo namorado.

Os atos voltaram no ano seguinte, quando outro caso de feminicídio mobilizou as argentinas em todo país: o de Lucía Perez, 16, que morreu após ser drogada, violentada e empalada por dois homens, de 41 e 23 anos. O crime gerou uma greve nacional de mulheres e os protestos alcançaram outros países da América Latina, como o Brasil. 

Nessa mobilização, as mulheres perceberam sua força, articularam-se e uniram diferentes gerações. Logo, a pauta, inicialmente contra o feminicídio e a violência de gênero, incluiu também a demanda pelo aborto legal, seguro e gratuito. Além das ruas, elas mobilizaram campanhas nas redes sociais com o uso de hashtags como #NiUnaMenos, #MiPrimerAcoso,  #AbortoLegalYa e #SeraLey.

“Havia mulheres de 80 anos ao lado de garotas de 15. Isso fez com que conseguíssemos atuar por todos os lados, porque cada geração aporta com um tipo de conhecimento. As jovens aprenderam com as mais velhas, que, por sua vez, também se pintaram com glitter e entraram para o Twitter. Então, não foi um caminho de apenas uma via, e esse foi um dos motores para o êxito”, explica Nayla Vacarezza.

Um dos nomes que emergeriram com o Ni Una Menos e as marchas pelo aborto legal foi o de Ofelia Fernández, que em 2015 tinha apenas 15 anos e era uma das representantes do movimento secundarista. Hoje aos 20, é uma das mais jovens deputadas do país e, por onde vai, leva seu lenço verde da campanha pela legalização do aborto.

Entre as veteranas, estão nomes como a socióloga Dora Barrancos, 80, a médica Martha Rosenberg e as advogadas Nelly Minyersky, 92, e Nina Brugo, 77, que apareciam na linha de frente das marchas pelo aborto legal.

TIRAR O ABORTO DO ARMÁRIO

Em outra frente, uma série de coletivas passaram a militar pelo aborto seguro na Argentina, mesmo em contexto de criminalização. A primeira iniciativa surgiu em 2009, quando um grupo de lésbicas feministas lançaram uma linha telefônica para dar informações sobre como interromper uma gestação com medicamentos.

Depois disso, iniciativas semelhantes pipocaram pelo país (e também por outras partes da América Latina). 

O que elas fazem é tornar acessível a informação pública e presente nos protocolos da OMS (Organização Mundial da Saúde) e de associações médicas, como a Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia), sobre como fazer um aborto seguro. Segundo esses manuais internacionais, o uso de medicamentos é seguro, desde que o procedimento seja realizado da forma e com a dosagem correta.

“Essas iniciativas tiveram o impacto de demonstrar que o aborto é um direito e uma realidade para as mulheres e pessoas com capacidade de gestar e abortar. Estabeleceram as bases para dar uma resposta à problemática de saúde pública”, diz Laura Salomé, da Campanha Nacional. 

Na Argentina, uma das mais conhecidas são as Socorristas en Red, uma aliança que reúne 58 coletivas feministas. Além de dar informação, elas tratam de discutir o estigma e a culpa normalmente associadas ao processo, tratando-o como parte da vida reprodutiva de muitas mulheres. 

“Essas coletivas foram e são chave tanto no acompanhamento como na articulação com o sistema de saúde. Elas têm sido pioneiras em chegar às mulheres com informação de qualidade, precisa e em formatos variados. Também são o motor da despenalização social do aborto”, afirma a médica Mariana Romero, uma das coordenadoras do REDAAS (Rede de Acceso ao Aborto Seguro) na Argentina.

Segundo os relatórios do grupo, entre janeiro e outubro de 2020 elas acompanharam 13.408 abortos; nove em cada dez mulheres atendidas não precisaram acessar os serviços de saúde após o procedimento.

“A partir do ativismo, sustentamos que cada aborto é um mundo. Queremos escutar e acompanhar e, com isso, politizar os desejos que nos movem a tomar determinadas decisões em certos momentos de nossas vidas”, afirmou Ruth Zurbriggen, uma das integrantes das Socorristas em audiência no Senado em dezembro de 2020. 

A atuação dessas ativistas é facilitada pelo contexto na Argentina. Desde antes da legalização, o Misoprostol (também indicado para tratar problemas gástricos) podia ser comprado na farmácia com receita médica. No Brasil, ele é de circulação restrita aos hospitais com atendimento obstétrico.

“É claro que existem essas redes no Brasil, mas aqui elas são mais anônimas, e com razão. A nossa legislação é mais restritiva que a Argentina em relação ao acesso e à circulação do Misoprostol. Possuir o remédio pode ser muito mais grave do que o crime de aborto em si. Por isso, a gente enfrenta um cenário de medo e estigma mais intenso nesse tema, um cenário único no mundo”, explica Gabriela Rondon.

INSISTIR, E INSISTIR MAIS UM POUCO

Assim que foi criada, a primeira iniciativa da Campanha foi elaborar e protocolar, em 2006, um projeto pedindo a legalização do aborto no Congresso Nacional. Elas repetiam esse processo mais sete vezes até 2018, quando o texto foi analisado pela primeira vez pelos deputados. 

“Acredito que a maior lição do movimento na Argentina foi a obstinação feminina, que tem raiz nas mães e avós, que estão em todas as lutas e têm como valor a democracia”, afirma a pesquisadora da UBA.

De tanta insistência, o texto foi finalmente votado em 2018, durante o governo de Mauricio Macri. Apesar de contrário à legalização, o presidente preferiu não interferir diretamente no debate, já que o país vivia uma crise econômica e discutir aborto desviava a atenção dos temas da economia. 

O projeto foi aprovado pelos deputados por 129 votos a favor e 125 contrários, após horas de vigília dos movimentos feministas ao lado de fora do Congresso. O texto, no entanto, acabou rejeitado pelos senadores, por 38 a 31, onde os conservadores tinham maioria e defendiam que era preciso preservar o direito à vida desde o nascimento. “Não será menos trágico um aborto porque se realiza em um hospital. Não, será trágico da mesma forma. O objetivo é que não existam mais abortos na Argentina”, disse à época o senador Esteban Bullrich, ex-ministro da educação de Mauricio Macri. Apesar da negativa, o debate já havia se instalado, e as feministas entenderam que era o momento de insistir um pouco mais. 

“O efeito da vitória parcial de 2018 foi gigantesco. A sensação naquele momento era que faltava pouco, que a sociedade já tinha entendido que aborto era uma questão de saúde pública. Em seguida houve eleições, uma mudança da composição na Câmara dos Deputados e no Senado”, diz a pesquisadora da Anis. 

Naquele ano, enquanto a Argentina discutia o tema no Legislativo, as brasileiras acompanhavam no STF (Supremo Tribunal Federal) a audiência pública que discutia a ADPF 442, ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Vale lembrar, AzMina já mostrou que apenas um projeto de lei tentou fazer o mesmo no Congresso na última década no Brasi.

“Eu acredito que, para nós, as principais lições foram: não desistir da luta, não se render jamais e manter a maior unidade, apesar das diferenças que caracterizam os nossos feminismos”, diz a socióloga Dora Barrancos.

DE REPENTE, TODO MUNDO FALAVA SOBRE ABORTO

Tanto a incidência política, quanto o ativismo em defesa do aborto seguro e as grandes mobilizações nas ruas fizeram com que o tema enfim virasse pauta do Congresso argentino em 2018. 

Nesse momento, a discussão ganhou profundidade e chegou não só ao Parlamento, como também à mesa do jantar, aos programas jornalísticos, aos almoços de trabalho e aos intervalos da escola. De repente, todo mundo falava sobre o assunto.

Ganhou força o argumento do aborto como um direito e uma questão de saúde pública e muita gente acabou mudando de lado, como a senadora, ex-presidente e atual vice, Cristina Kirchner.

“Eu antes era uma pessoa que dizia ‘não sou feminista, sou feminina’. Que estupidez! Não foi apenas [minha filha] Florencia que me fez mudar de ideia, foram também as garotas do ensino médio e as minhas netas, Helenita y María Emilia”, disse em seu discurso ao votar a favor do projeto em 2018.

Assim como Kirchner, as pesquisas de opinião mostraram que mais gente aprovava uma mudança na lei. Segundo pesquisas realizadas pela Ipsos, entre 2014 e 2020, passou de 65% para 75% a porcentagem dos argentinos que aprovavam o aborto em determinadas circunstâncias.

“Em 2018, houve um giro. Foi quando começamos a usar os lenços verdes na vida cotidiana, levando o debate para todos os lados, como se a vida fosse igual à luta pelo aborto legal”, afirma Vacarezza, pesquisadora da UBA.

O lenço verde virou um símbolo do movimento da luta pelo aborto legal. Ele é uma homenagem aos lenços brancos usados pelas Mães da Praça de Maio, que buscam até hoje filhos e netos desaparecidos durante a Ditadura Militar. A cor é usada há mais de 15 anos pelas feministas que lutam pela legalização do aborto e foi decidida coletivamente por eliminação: não podia ser azul (associada à bandeira do país), violeta (do feminismo) nem branco (usado pelas Mães de Maio). Além disso, está inscrito o lema “Educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar e aborto legal e gratuito para não morrer”, inspirado no usado por feministas italianas na década de 1970.s

APROVEITAR O CONTEXTO POLÍTICO

Ainda na ressaca da votação de 2018 e das mobilizações da Maré Verde, o projeto de legalização do aborto virou pauta das eleições presidenciais no ano seguinte. As feministas continuaram pressionando e o assunto não esfriou. Então candidato, Alberto Fernandez não só se posicionou a favor da mudança na lei como prometeu apresentar um projeto assim que assumisse o cargo. 

As mobilizações feministas pela aprovação do projeto um ano antes foram decisivas para isso. “A demanda social depois do debate de 2018 foi imensa, imparável e, pela primeira, quem não se comprometesse com essa causa ficaria de fora. Além disso, os argumentos apresentados no Congresso foram muito contundentes desde a perspectiva de saúde pública e de direitos. Em terceiro lugar, muitas candidatas se definiram como verdes, de diferentes partidos, e isso também pressionou”, afirma Mariana Romero. 

Um presidente declaradamente a favor do aborto era algo novo impensável há alguns anos atrás. Isso só foi possível em 2019, diz Dora Barrancos, com a carreira de Fernandez como professor de direito penal na Universidade de Buenos Aires e o apoio que tem desde a campanha. “Sua candidatura foi apoiada por um grande número de feministas, e não poucas exercemos cargos no governo”, afirma a socióloga, que é uma das assessoras do presidente em assuntos de gênero. 

As eleições de 2019 também promoveram uma mudança na Câmara e no Senado, onde Fernandez tinha maioria, abrindo espaço para uma nova discussão do projeto.

Vale citar outro ingrediente importante: a menor desigualdade de gênero no Legislativo argentino. “Vários mecanismos de reforma política fizeram com o Congresso tivesse mais mulheres e pessoas mais jovens. Isso dá a sensação de representação, de maior diálogo entre as ruas e a institucionalidade”, afirma a advogada Gabriela Rondon.

De fato, dados do Observatório de Gênero da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), ligada à ONU, mostram que o Brasil tem um dos menores índices da Região. Por aqui, as mulheres são 14,6% do Legislativo, enquanto na Argentina elas são 40,9%.

Em 2020, o contexto então parecia finalmente  favorável: presidente que apoiava a legalização do aborto, renovação no Congresso, alta participação de mulheres, maior aceitação por parte da sociedade e mobilização feminista. Só que aí apareceu uma pandemia, adiando um pouco os planos. 

“Para nós, a Argentina é um exemplo muito positivo, porque é um país próximo e mostra que, mesmo em um ano de pandemia e crise, em um país católico como o nosso, era hora desse tema vir a público. Foi um ato de coragem política e mostra que não existe o melhor momento, é preciso enquadrar o aborto como um assunto urgente”, diz a advogada Gabriela Rondon.

Casa 1 lança portal de conteúdo e programação online

A casa 1 é um projeto que só foi posto em prática graças ao poder da comunicação e da internet. Por meio de uma campanha de financiamento coletivo online, com uma forte mobilização nas redes sociais e veículos de comunicação, arrecadamos o valor necessário para alugar o imóvel que até hoje, quatro anos depois é o centro de acolhida de jovens expulsos de casa.

Foi também toda essa mobilização que permitiu que seguíssemos recebendo doações constantemente e também chamando atenção tanto da iniciativa privada, quanto do estado, permitindo assim uma ampliação do financiamento e consequentemente do projeto, que abriu as portas também do Centro Cultural e da Clínica Social.

Com a pandemia do coronavírus, todos nós nos vimos obrigados a mergulhar no digital, e nosso singelo blog explodiu, atingindo meio milhão de visualizações em 2020. Para grandes influenciadores e veículos tradicionais essa cifra não quer dizer muita coisa, mas para nós, uma organização de sociedade civil, que luta constantemente para combater os preconceitos, sobretudo a LGBTfobia, ter nosso conteúdo criado com todo esforço e responsabilidade, sendo acessado meio milhões de vezes é motivo de celebração.

Posto isso transformar o nosso site em uma ferramenta mais sólida, com espaços que permitam experimentos e que reuna tudo que a gente pensa e faz se tornou algo urgente e assim nasceu esse nosso site/portal.

Aqui você encontra informações mais detalhadas das nossas áreas de atuação, como ajudar a gente, nossa programação toda reunida por projetos, assim como matérias, entrevistas, listas e uma série de conteúdos pensados para fazer informar e entreter.

Ao longo das semanas este site/portal estará cada vez mais recheados de conteúdos e esperamos que vocês gostem tanto quando a gente tem gostado de criar tudo isso.

Sejam bem vindos, bem vindas e bem vindes.

Equipe Casa 1