“ENCANTADAS: Transcendental Brazilian Art” é uma exposição de arte inteiramente composta por pessoas Trans do Norte e Nordeste do Brasil, com curadoria de Sanni Est, A TRANSÄLIEN e Ué Prazeres, no Schwules Museum em Berlin – Alemanha.
Na exposição, oito trabalhos representam o mapeamento de performatividades que rompem com as imposições coloniais e de eugenia que se desdobram no contexto geopolítico brasileiro, com foco no Norte-Nordeste do país; permeando suas diversas transmutações e trânsitos existenciais que desafiam fronteiras geográficas, do corpo e das próprias categorizações da arte, onde tais experiências são refletidas em práticas artísticas e ritualísticas.
Artistas: Aoruaura, Borblue, Daniel Lie, Jonas Van, Libra e Xan Marçall, Porca Flor, Rastros de Diógenes e Sy Gomes.
SERVIÇO
Exposição: ENCANTADAS: Transcendental Brazilian Art
Por Cyro Moraes, produtor de conteúdo freelancer da Casa 1
“Um lamento é uma canção, composta por versículos, cujo tema é principalmente triste, obscuro ou mesmo trágico“, segundo o wikipedia. Mas, já em seu título “Lamento da Força Travesti”, canção da transartivista Renna Costa que semana passada se lançou para o mundo também como clipe no youtube e outras redes da artista, diz a que veio. São versos que denunciam a ainda triste realidade da população trans no Brasil e no mundo, mas que também recorrem a sua força ancestral em reexistir.
Túmulos, velas, enterro em pleno sertão pernambucano. Este é o cenário que serve de pano de fundo para o clipe de Renna Costa com a participação da multiartista Gabi Benedita. Nessa produção realizada com recursos da lei Aldir Blanc, a catarinense radicada em Pernambuco, Renna, que também assina a direção, buscou os rituais de luto para falar da insurgência de corpos dissidentes em sua potência de vida.
Lamento da Força Travesti se utiliza simbologias do imaginário das manifestações da cultura popular de Pernambuco, como as novenas, as rezadeiras e benzedeiras, os santos milagreiros e as brincadeiras do Jaraguá e das Veinhas de Triunfo para tratar de uma “ancestralidade travesti”. Os figurinos que remetem ao cangaço parecem lembrar da luta dessas corpas em se manter vivas. A presenças das travestis Irla Carrie, Samantha Fox e Vinn Amara, em diversas cenas, como as que pisam o barro juntas ou fazem um brinde fala da sororidade como força.
Mas do que um relato da tristeza, Lamento é uma ode à luta, uma oração que clama por novos futuros possíveis, como a que abre o clipe:
“Entre cruzes e orifícios
Eu peço
Que seja leve concerne
Em carne
Aquilo ainda não dito
Amais umas às outras como eu vos amei
Ame-o e deixo-o
Qualquer resquício de um passado
Incerto direto
Caminhos abertos e corpo fechado
Proteção ao meu lado
Eu peço
AMEM”
Entrevistas
Também faz parte desse projeto a série “O Sonho Dela”, material complementar ao lançamento de “Lamento de força travesti”, composto por nove minientrevistas gravadas com travestis que respondem sobre como se veem e sonham o futuro. O material também está publicado no perfil de RENNA. @Costadarenna
Evidenciar que Erika Hilton foi a primeira convidada travesti e negra no centro do histórico “Roda Viva” é chover no molhado, celebrar Caê Vasconcelos (Ponte Jornalismo) como o primeiro jornalista trans na bancada de entrevistadores, ao lado da escritora e colunista da Bazaar , Helena Vieira, também trans, idem, porém não são fatos a serem tratados como menos importantes, pelo contrário.
Laerte foi centro do programa em 2012, mas a cartunista já tinha uma história profissional de muito sucesso antes de transicionar, é também uma mulher branca de classe média. Nada disso invalida o ineditismo, nada disso diminui a importância de Laerte, no entanto, revendo o programa original, as pautas eram ainda muito focadas nas questões identitárias de gênero, foi quase uma aula sobre marcadores sociais e de novo, não desimportante, é uma entrevista retrato de seu tempo.
Nove anos separam as duas entrevistas, e com toda sua potência, Erika Hilton ecoa os amadurecimentos da luta trans, escancara as intersecções e dá nome às necessidades. Com as boas perguntas de Caê e Helena, Erika explanou sobre mandatos coletivos, políticas públicas, saúde, representatividade de corpos trans nas artes e por aí vai. Celebrou ainda a negritude, trouxe a tona a ancestralidade negra e trans. Apresentou à uma parcela considerável da população conceitos até então desconhecidos.
Para muitos de nós que está na luta aquele discurso já foi ouvido muitas vezes, com sorte internalizado, porém somos ainda muito poucos, é preciso cada vez mais que Erikas, Caês, Helenas estejam nos veículos de massa, que dialoguem e explanem cada vez suas ideias e ideias. É preciso ocupar cada vez mais!
Cabe ainda ressaltar as excelentes participações de Thiago Amparo, professor de Direito da FGV-SP e colunista da Folha de S. Paulo; Angela Boldrini, repórter da Folha de S. Paulo e Vitória Régia da Silva, repórter da Gênero e Número. Todos, todas e todas muito queridas.
E se você perdeu, pode assistir a entrevista completa aqui:
Por Cyro Morais, produtor de conteúdo freelancer da Casa 1
Há 17 anos, o Brasil comemora no dia 29 de janeiro, o Dia da Visibilidade Trans. A data lembra o dia em que ativistas trans foram até Brasília lançar, no Congresso Nacional, a campanha “Travesti e Respeito”. Muito ainda há o que avançar nas lutas, nas conquistas. Afinal, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil foi eleito pelo 13º ano consecutivo o País que mais mata pessoas trans. O que só reforça a importância da realização de eventos e campanhas que promovam a conscientização e o respeito às pessoas trans, que, hoje, já compõem uma parcela de quase 2% da população brasileira.
Além da realização da IV Semana de Visibilidade Trans da Casa 1 que falamos completinha neste post, reunimos abaixo alguns eventos que fazem parte da programação de diversas instituições em comemoração ao Dia da Visibilidade Trans. A maior parte dos eventos acontece online para evitar os riscos de contaminação pela COVID-19. Dá só uma olhada!
Para marcar a data o Centro Cultural da Diversidade (CCD) apresentará nos dias 29,30 e 31 de janeiro, uma programação especial. No dia 29, show de Jup do Bairro, às 22h, e nos dias 30 e 31, respectivamente, apresentações especiais dos espetáculos ‘Não Ela’ (20h) e ‘Mini-bius, bils, bios’ (19h), que estão em processo de residência artística no CCD. As peças tratam de temas relacionados `a transexualidade. Todos os eventos serão transmitidos pelo instagram @ccdiversidade .
A programação da Semana da Visibilidade Trans da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) da Cidade de São Paulo prevê a divulgação, no dia 29, dos resultados da fase quantitativa do primeiro mapeamento Trans realizado na cidade de São Paulo. Os pesquisadores ouviram 1650 pessoas trans de diversos bairros.
Ainda na sexta-feira, no encerramento da programação, haverá o lançamento da placa de reinauguração do Centro de Referência de Defesa da Diversidade CRD, que passa da administração da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, para a SMDHC, e recebe o nome de Brunna Valin, em homenagem à ativista trans morta em 2020.
Serão promovidas lives sobre diversos aspectos da temática da transexualidade, abordando políticas públicas relacionadas a questões de enfrentamento ao preconceito e à violência, atendimento e tratamento de saúde e dificuldades de mulheres transexuais e homens trans para se inserir no mercado de trabalho. Por conta dos cuidados necessários para prevenção da Covid-19, os eventos serão todos online e transmitidos pelas redes sociais da SMDHC:
29/01, sexta-feira às 14h
Live: Dia da Visibilidade Trans
Apresentação do Resumida do Relatório da 1° Fase do Mapeamento Trans
– Abertura
– Fala da Secretária Ana Cláudia Carletto
– Fala do Vereador Eduardo Suplicy
– Apresentação do Relatório pela equipe do CEDEC
29/01, sexta-feira às 15h
Lançamento do Calendário Trans 2021
Organização: Centro de Cidadania LGBTI Claudia Wonder
Participação do artista e jornalista Jogê Pinheiro
Instagram: @casarao_brasil
29/01, sexta-feira às 17h
Evento presencial, fechado, para marcar a transição do CRD da SMADS para a SMDHC e a inauguração da Placa com o nome CRD Brunna Valin. Convidados: Secretária Claudia Carletto, Floriano Pesaro e Eduardo Barbosa
A SP Escola de Teatro, administrada pela Adaap (Associação dos Artistas Amigos da Praça) realiza a 9ª edição da SP TransVisão, que acontece entre os dias 29 de janeiro e 3 de fevereiro. A iniciativa celebra a diversidade e o respeito que a instituição tem com as pessoas trans. Essa é uma ação da Adaap em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura e Economia Criativa, com a Secretaria de Justiça e Cidadania e com o apoio de grupos e entidades de luta pelos direitos humanos.
Devido à pandemia de Covid-19, em 2021, o evento será digital e transmitido pelo Youtube e Facebook da SP Escola de Teatro. Neste ano, o tema do projeto é Distanciamento Social: Uma Trans realidade – A pandemia passa, o preconceito não! e ativistas, pesquisadores, intelectuais, artistas, profissionais da saúde e outras personalidades importantes na luta LGBTQIA+ marcarão presença. A programação conta com palestras, bate-papos, apresentações artísticas, espetáculos, ações sociais e homenagens.
Confira a programação da 9ª edição da SP TransVisão dos dias 29, 30 e 31 de janeiro e 1ª, 2 e 3 de fevereiro:
SEXTA-FEIRA, 29 de janeiro
17h – Abertura
Com Brenda Oliver, Ingrid Soares, Kimberly Luciana Dias e Marcia Dailyn. Homenagem às pessoas trans que partiram vítimas da Covid-19, com homenagem especial à Bruna Valin e Amanda Marfree.
17h – Jantar Afeto e Música
Distribuição de marmitas e kits de higiene, além de disponibilizar banheiros na sede da SP Escola para higiene. Ação realizada pela Translúdica – Loja Colaborativa Distribuição na Praça Roosevelt e Praça da Sé
17h30 – Intercâmbio TransVisão
Convidades: Renata Taylor (Belém – PA) e Raicarlos Durans (Marituba – PA) Mediação: Millena Wanzeller
19h – Mesa de discussão Transparentalidade
Convidades: Cibele Lascala, Fe Maidel, Leonardo Medeiros e Rachel Rocha Mediação: Daniel Veiga 21h- Ação artística: Espetáculo Teatral – Divas Florescer
SÁBADO, 30 de janeiro
17h – Intercâmbio TransVisão
Convidades: Regininha – Maria Regina (Rio Grande – RS) e Silvia Reis (Boa vista – RR) Mediação: Millena Wanzeller 19h – Mesa de discussão Políticas Públicas para Visibilidade Trans Convidades: Caroline Iara (Bancada Ativista), Samara Sosthenes (Quilombo Periférico) Mediação: Brenda Oliver
21h – Ação artística
Espetáculo teatral Entrevista com Phedra, de Miguel Arcanjo, com Marcia Dailyn e Raphael Garcia. Direção de Robson Catalunha e Juan Telategui Local: SP Escola de Teatro Digital – Sympla Ingressos: Grátis ou R$ 12,50 (contribuição voluntária aos atores) Retirar ingressos na Sympla
Convidades: Alberto Silva (Casa Florescer), Jaciana Batista (mãe), Regiane Abreu (Mães pela Diversidade) Mediação: Fernanda Kawani Custodio 20h – Exibição do Documentário “Limiar” de Coraci Ruiz Local: SP Escola de Teatro Digital – Sympla Gratuito Retirar ingressos na Sympla
Convidades: Daniela Andrade, Joseph Kuga, Yasmin Vitória e Raphael Pagotto Mediação: Heloísa Alves
TERÇA-FEIRA, 2 de fevereiro
17h – Intercâmbio TransVisão
Convidades: Symmy Larrat e Neon Cunha (São Bernardo do Campo – SP) Mediação: Millena Wanzeller
19h- Mesa de discussão – Experiências representativas e de empregabilidade no serviço público
Convidades: Arthur Cardoso, Cássia Azevedo e Emanoel Henrique Lunardi Ferreira. Mediação: Luiz Fernando Uchôa
21h – Ação artística
Espetáculo Teatral Genderless – Um corpo fora da Lei, com Guttervil. Local: SP Escola de Teatro Digital – Sympla Ingressos: Grátis ou R$ 12,50 (contribuição voluntária aos atores) Retirar ingressos na Sympla
QUARTA-FEIRA, 3 de fevereiro
20h – Prêmio Claudia Wonder
Premiades: Casa Chama, Casa Florescer, Eloína dos Leopardos, Erika Hilton, Léo Paulino e Mariana Munhoz
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E tá sabendo de mais alguma programação da visibilidade trans? Manda pra gente nos comentários!
A minissérie “Veneno” baseada no livro “Not a Whore, Not a Saint: The Memories of La Veneno”, conta a história de Cristina Ortiz, uma das primeiras transexuais famosas na Espanha. Cristina foi cantora, atriz, profissional do sexo, e ficou eternizada pelo pseudônimo “La Veneno”.
Na série acompanhamos seu processo de transição, seus grandes momentos na tevê, performances e polêmicas, porém o vínculo de Veneno com a jovem estudante de jornalismo Valeria Vegas é o ponto principal da trama. O seriado não tenta suavizar a dura realidade da vida dessas mulheres, mostrando o que o sofrimento, a falta de oportunidades e a marginalização causam em suas vidas.
Com atrizes trans representando todas as fases da vida de Cristina, a série deixa sua marca na indústria do entretenimento mas, não é a única produção a dar reconhecimento a artistas trans. Listamos a seguir produções nacionais e internacionais que também contribuíram para mudar esse cenário de descaso e marginalidade.
Daniela começou sua carreira como dançarina e modelo, seu primeiro trabalho como atriz foi na minissérie “Veneno”. Além de Daniela, Jedet e Isabel Torres interpretam as diferentes fases da vida de Cristina.
A série fez história colocando no elenco principal cinco atrizes trans e tendo na sua produção a escritora e mulher transexual Janet Mock. Inspirada no documentário “Paris Is Burning”, a série mostra os bailes de vogue dos anos 1980. Elektra, papel de Dominique Jackson, tem um destaque especial.
Abril é uma roteirista e diretora espanhola com uma longa carreira no teatro, cinema e na televisão. Na série “Vis a Vis” ela interpreta a prisioneira Luna Garrido. Destaque ainda para a participação de Abril em “Rosa e Momo”, filme disponível no Brasil pela NetFlix, onde atua ao lado de Sophia Loren.
Na série Lachlan dá vida ao personagem Theo, um homem trans, já na vida real Lachlan se identifica como pessoa não-binária e usa as redes sociais para falar sobre seu processo de autoconhecimento e principalmente sua relação com seu corpo e a maquiagem.
A personagem Sophia Burset interpretada pela atriz que também é produtora de televisão lhe rendeu duas indicações ao Emmy Awards como Melhor Atriz Convidada em Série de Comédia. A atriz participa ainda do importante documentário da Netflix “Revelação” (Disclosure, no título original), sobre representatividade de pessoas trans no cinema e do longa “Promising Young Woman”, forte candidato às premiações de 2021.
O ator, que tem pais religiosos e conservadores, enfrentou muitas barreiras quando expôs publicamente sua identidade. Na série “The OA” ele interpretou Buck Vu e em setembro de 2020 foi convidado para estrelar o primeiro personagem trans na saga “Star Trek: Discovery”.
Nascida no interior de São Paulo, Wallie atuou no Teatro Oficina e já deu aula nas áreas de teatro, TV e publicidade. Também participou do elenco das séries “Toda Forma de Amor”, “Ninguém tá Olhando”e a global “Carcereiros” e estrelou o curta-metragem premiado “Marie”.
Linn está entre as artistas mais relevantes do cenário musical brasileiro atual. Na série original da Rede Globo ela dá vida a personagem Natasha, que encara as dificuldades de ser uma mulher trans em um ambiente escolar. Ela também protagonizou o documentário “Bixa Travesty” contando um pouco da sua história.
Marina é uma multi-artista, cantora, compositora, produtora cultural e curadora. Na série ”3%” viveu a personagem Ariel, uma das responsáveis pela manifestação da sociedade contra as classes mais altas.
Atriz e modelo norte-americana, na produção original da Netflix Jamie interpretou Nori uma hacker que se envolve com uma ativista dos direitos da população LGBT+.
Filho de dois dubladores famosos, o jovem ator interpreta na série Aaron, interesse romântico de uma das protagonistas. Ele também participou do elenco das produções “Shameless” e “Faking it”.
Conhecido por ser um grande ativista pela representatividade de pessoas trans na mídia, Brian já participou das séries “Queen Sugar”, “The L World: Generation Q” e agora estrela em “9-1-1: Lone Star” como o primeiro personagem fixo trans da saga.
Além de atuar na série infanto juvenil mexicana “Control Z”, Zion é modelo e foi escalada para participar do reboot da série sucesso nos anos 2000, “Gossip Girl”.
Antes do seu grande sucesso como Britney na novela “A Dona do Pedaço”, a atriz participou da série “Rua Augusta”, produção original da TNT e também de “Toda Forma de Amor”.
Hunter fez sua estreia como atriz interpretando Jules no famoso seriado “Euphoria”. Um fenômeno nas redes sociais, ela também é modelo e já desfilou para grandes marcas como Versace, Miu Miu e Dior.
Alex fez parte do elenco recorrente da série/novelão estadunidense entre 2017 e 2020. Na série, interpretava um dos internos de cirurgia do renomado hospital depois de passar alguns anos no exército. Além da série, o ator emprestou sua voz para um personagem especial do desenho “She-Ra e as Princesas do Poder”.
Coletivo idealizado por Leo Moreira Sá e Daniel Veiga reúne mais de 50 artistas para afirmar: “as transmasculinidades não serão mais apagadas”
O CATS (Coletivo de Artistas Transmasculines) começa a sua carta-manifesto em vídeo apresentando suas intenções sem rodeios: “As transmasculinidades não serão mais apagadas no meio artístico”. Idealizado por Leo Moreira Sá, 56 anos, artivista, ator, dramaturgo, designer de luz e jornalista, e Daniel Veiga, 39 anos, dramaturgo, ator e diretor, o coletivo nasce para visibilizar homens trans e pessoas transmasculinas das artes.
Foi em 2017, no lançamento do manifesto ‘Representatividade trans já’, assinado por Leo Moreira Sá, Renata Carvalho, Leona Jhovs, Ave Terrena e outras pessoas trans e travestis, que Leo percebeu a necessidade urgente de corpos transmasculinos no mundo artístico.
Na ocasião, atores e atrizes trans e travestis se uniram para pedir o fim do transfake, quando pessoas cisgêneras (que se identificam com o gênero de nascimento) interpretam personagens trans em peças teatrais, em novelas e nos cinemas. O estopim foi a peça “Gisberta”, de Luis Lobianco, em que o ator cisgênero interpreta a transexual brasileira brutalmente assassinada em 2006 em Portugal.
Historicamente, pessoas trans não ocupam os papeis de personagens trans, no Brasil e no mundo afora. Para citar alguns exemplos, nos EUA, Hilary Swank, atriz cisgênera, viveu o homem trans Brandon Teena em “Meninos não choram” (1999). No Brasil, vimos a atriz cis Carol Duarte interpretar Ivan, homem trans da novela “A Força do Querer” (2016).
“De lá para cá, o que eu comecei a perceber que a grande dificuldade era de artistas transmasculines, que as mulheres estavam conquistando o seu espaço, bem aquém do que é de direito, mas estão mais a frente”, conta Leo em entrevista à Ponte.
Leo lembra que a resposta padrão dada é que não existiam artistas transmasculinos. “A Glória Perez [autora da novela ‘Força do Querer’] disse que fizeram vários testes e não acharam um ator transmasculino. Ainda teve aquela frase antológica de que ‘não é porque uma pessoa é trans que ela tem talento para interpretar um personagem trans’”.
À Ponte, Daniel Veiga rebate o argumento da autora e aproveita para mostrar para que o CATS surge: “Ninguém tá pedindo espaço, não queremos que cis dê nada pra gente. A gente não precisa disso. É um levante, uma tomada de espaço porque é direito nosso”.
“Estamos aptos para trabalhar tanto quanto qualquer um. Não existe essa de não tem talento. A gente tem formação, eu tenho um puta currículo atrás de mim, o Leo também, assim como as mulheres trans estão na luta também”, argumenta Daniel.
O ator e dramaturgo também reforça que pessoas trans, e negras, não tem o direito à “mediocridade”. “Nunca podemos ser menos do que excelente. Quando a pessoa é branca e cis ela pode ser meia boca, ela pode estar ali para aprender. Mas quando a pessoa é trans ou preta ou trans e preta ela tem que ser medida na régua mais alta”, critica Daniel.
Foram com essas e outras demandas que a dupla sentou no começo de 2020, antes da pandemia, para começar a desenhar o que já está se tornando história. De dois, o grupo passou para 30 e, após a divulgação do teaser da carta-manifesto, divulgada em 17 de agosto, já contabiliza mais de 50 membros de “todas as gerações”. A carta completa foi divulgada em 4 de setembro.
O coletivo reúne artistas que reivindicam diferentes identidade dentro do espectro trans: homens trans (identidade de gênero que não se identifica com o gênero de nascimento e reivindica o gênero masculino), transmasculinos (identidade de gênero que não se identifica com o gênero de nascimento, reivindica o gênero masculino, mas não reivindica o uso da palavra homem) e transmasculines (identidade não-binária que não reivindica o gênero masculino, mas sim o gênero neutro).
Os segmentos também são múltiplos: das artes cênicas, do cinema, da música, do circo, das artes plásticas. Entre os integrantes do coletivo, estão Lino Arruda, quadrinista, Rosa Caldeira, cineasta, Kaique Theodoro, cantor e ator, Tiely, multi-artista e historiador, Juno Nedel, artista circense, Fernando Aquino, performer e artista visual, e Lyam S, artista plástico e poeta. A lista completa pode ser vista no Instagram do CATS.
“O que faltava era um canal que reunisse todos esses artistas e trouxesse para a visibilidade. A prova de que nós éramos invisíveis é o fato de que nós não nos conhecíamos. O nosso medo era não encontrar artistas transmasculines, agora somos 50 artistas”, comemora Leo.
“A gente não se conhece, não só entre artistas, mas homens trans no geral. Dos 34 anos para cá, eu conheci um número mínimo de homens trans e transmasculines de uma forma em geral”, completa Daniel.
Daniel Veiga (à esq.) e Leo Moreira Sá (à dir.) são cofundadores do CATS (Coletivo de Artistas Transmasculines) | Fotos: Reprodução
Quando sentou para conversar com Leo, Daniel percebeu que os dilemas que enfrentava no mundo artísticos também eram vivenciados pelos dois. “Eu comecei a perceber que ser trans tava chamando mais atenção do que o meu trampo como ator”, define.
“Quando tinha um personagem com o meu perfil, casting de um homem negro de 30 a 40 anos, ninguém me marcava, porque não tinha a palavra trans. Em compensação tiveram dois testes que eram pra mulheres trans que me marcaram”.
A nossa primeira ação do coletivo, contam os fundadores, foi se firmar enquanto coletivo e lançar carta-manifesto, em que todos artistas contribuíram. “Primeiro a gente afirma porque a gente existe, nascemos com esse incômodo com a invisibilização, com o apagamento do corpo transmasculine e com o sequestro das nossas narrativas”, explica Daniel.
“Por sequestro, eu digo que temos a retomada das nossas narrativas sempre pelas mesmas pessoas: uma minoria cis, branca e heteronormativa, independentemente de serem LGBTs ou não, mas que reproduzem o padrão heteronormativo de vivência. São sempre as mesmas pessoas que estão contando as nossas histórias”, continua.
“A nossa luta é primeiro por visibilidade, antes de qualquer coisa. Mas a representatividade tem que caminhar em paralelo. Para que a gente tenha pelo menos essa fina fatia do mercado de personagens trans”, completa Leo.
O segundo passo é estruturar a forma como artistas transmasculinos vão produzir artistas transmasculinos e tornar o coletivo uma referência.”Já tem produtor fazendo teste com pessoas do coletivo. Estou fazendo uma lista de atores e performance para fazer vídeos-testes”, conta Leo.
“Nós podemos, entre nós, nos convocar para trabalhos. Hoje, se eu preciso de um ator trans, eu não preciso procurar pessoas no Facebook como pessoas cis fazem. Eu chamei o Leo para fazer um personagem que nem é trans, porque não precisa ser trans ou cis para fazer esse papel, precisa mandar bem”, completa Daniel.
A partir daí, a ideia é lutar por políticas públicas e criar histórias transmasculinas. “Estamos criando um canal no nosso YouTube em que alguns dos membros vão trazer histórias de homens trans e transmasculines, não necessariamente artistas, que vieram antes da gente, porque não existe histórico sobre a transmasculinidade. A gente conhece o João Nery e ponto”, finaliza Daniel.
Aprovado em curso de cinema em Cuba, ele relata episódios traumáticos vividos na escola e diz que Estado não têm interesse de educar sobre diversidade.
“Quantas pessoas trans tem no seu trabalho? No seu bairro? No seu ciclo de amizades? Por que, às vezes, é tão difícil sermos aceitos como somos no lugar de onde viemos?”, questiona o cineasta e homem trans Rosa Caldeira, 24, morador da Vila Remo, distrito do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo.
Segundo ele, ser uma pessoa trans em quase todos os espaços da sociedade é desafiador e, em muitos lugares, uma vivência ‘solitária’.
Para driblar essa realidade, Rosa diz que as pessoas transexuais criam guetos e atuam como autônomas, na prostituição ou na beleza. “A gente cria espaços de resistência e se une. Ser trans na periferia é difícil da mesma forma”, afirma.
Rosa participa da Maloka Filmes, um coletivo de audiovisual periférico com outras pessoas LGBTs. No grupo, dirigiu o filme ‘Perifericu’, eleito melhor curta-metragem no Festival de Tiradentes de 2020 e no Mix Brasil de 2019. A obra fala sobre experiências LGBTs no extremo sul de São Paulo.
“Costumo dizer que se nem o transporte chega na quebrada, pensa o tanto que a informação demora para encontrar com a favela”, observa. “Só a partir do cotidiano em cada beco e viela que a consciência dos moradores se abre para esse debate: a cabeça pensa onde os pés podem pisar”.
Para contextualizar o assunto, Rosa cita uma fala de Gilmara Cunha, mulher transexual, ativista dos direitos civis e moradora da Favela da Maré, no Rio de Janeiro.
“Quem é gay, lésbica ou transexual de território de favela não usufrui dos avanços que os LGBTs do país vêm experimentando. Não lutamos para adotar um filho. Ainda estamos lutando para sobreviver”, disse Gilmara em 2015.
Parte dessas dificuldades começam desde a escola, que serve como mecanismo de opressão para LGBTs, segundo o cineasta.
Rosa relata agressões físicas e verbais que sofreu durante a adolescência. “Já apanhei por ‘ser diferente’, ‘esquisito’, ‘querer chamar atenção’. Também tem coisas menos explícitas, tipo você ser o zoado do rolê pela forma como você se veste, pela aparência, pessoas sentirem nojo de você, enfim, isso acaba gerando muita solidão”.
Para o cineasta, o Estado e as escolas não têm interesse de educar sobre respeito e diversidade. “Quando você sofre um preconceito e vai tentar o apoio da coordenação, a primeira coisa que eles dizem é que você tem que mudar, que você é o problema. Você entende que aquele corpo estudantil não está preparado para receber o corpo trans”, pontua.
Crédito: Acervo pessoal – Rosa participa de um coletivo de audiovisual periférico com outras LGBTs, a Maloka Filmes, na zona sul
Com isso, a população trans fica esquecida, ao invés de ser valorizada nas comunidades. Na educação formal, 82% da população trans sofre com a evasão escolar segundo estudo da Ordem dos Advogados do Brasil em 2016.
“A escola é um dos espaços onde as pessoas trans mais sofrem preconceito”, cita. “O mínimo que a gente espera da escola é que ela seja um lugar acolhedor, não produtor de violências como ela é hoje”.
Há preconceito dentro da própria classe social e bairro onde vive. “Precisamos trabalhar e mostrar que ser LGBT e ser de quebrada não são coisas contraditórias. A gente, trans de periferia, existe, cria e pensa”, pontua.
“Não quero mais ter que sair da periferia para poder ser quem eu sou. É muita resistência se assumir e se declarar onde ainda é tabu. Eu não era aceito nem dentro de casa, com a minha família. Eu nem imaginava que a escola poderia me dar suporte” – Rosa Caldeira, cineasta.
A dificuldade de aceitação também tem sido evidenciada em mortes todos os anos. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo.
O Dossiê Trans, pesquisa organizada pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e pelo IBTE (Instituto Brasileiro Trans de Educação) em 2019, mostrou que foram 124 casos de assassinatos de pessoas trans no ano passado.
O Brasil ocupa essa posição há 11 anos, de acordo com o projeto Trans Murder Monitoring, que analisa dados em todo o mundo. Entre as vítimas, 82% se identificavam como pretas e pardas.
Crédito: Arquivo Pessoal Também foi diretor do filme ‘perifericu’, eleito melhor curta-metragem no Festival de Tiradentes de 2020 e no Mix Brasil de 2019
DO ÂNGELA PARA O MUNDO
Há três semanas, Rosa recebeu a notícia de que tinha sido aprovado no mestrado da faculdade espanhola EQZE (Elias Querejeta Zine Eskola).
Dias depois, também foi aceito na EICTV (Escuela Internacional de Cine y Television), na cidade de San Antonio de Los Baños, em Cuba. O cineasta foi aprovado no curso de direção de fotografia da instituição, considerada uma das mais prestigiadas escolas do mundo em produção de cinema.
“Sou um cineasta trans e, contrariando todas essas estatísticas, passei em uma das melhores escolas de cinema do mundo, porém, como jovem periférico e trans, ainda me falta o dinheiro”, comenta. “O processo seletivo é muito concorrido, sendo que só eu e mais quatro pessoas do mundo fomos aceitos para estudar esse mesmo curso”.
Sem dinheiro para bancar a estadia e a viagem, o cineasta abriu um financiamento coletivo para contribuições financeiras em em prol do estudo.
“Se tirar a ajuda das pessoas, não consigo realizar esse sonho”, lembra. “Estudar fora do país é um sonho muito recente na minha vida. Demorei para entender que a quebrada também podia ocupar esse espaço, mas agora que descobri, não largo mão e não vou só, mas inspiro e levo todas as pessoas trans e periféricas comigo”.
Post criado a partir da postagem de Ana Flor Fernandes Rodrigues no seu Instagram
Em meio a muitas críticas e a um levante pelo pedido de adiamento do ENEM 2020 devido à pandemia (fizemos esta aula aberta para tratar do assunto), o Exame Nacional do Ensino Médio permanece confirmado, porém com algumas datas alteradas. As inscrições para o Exame já estão encerradas desde o dia 27 de maio, mas para quem conseguiu se inscrever, o processo segue normalmente.
E para pessoas trans e travestis que se inscreveram, o ENEM abriu ontem (segunda, 01/06) o período de solicitação para tratamento pelo nome social. Mas atenção: o prazo para a solicitação é até sexta-feira, dia 05/06. Aqui, juntamos um passo a passo de como solicitar e ter o seu nome social respeitado ao longo do Exame:
1) Antes de tudo, só é possível solicitar o uso do nome social se você tiver inscrito ou inscrita para o Exame;
2) O processo para solicitar o uso do nome social é realizado na Página do Participante, disponível no site do INEP neste link;
3) Já na Página do Participante, você precisará dos seguintes documentos:
– fotografia colorida atual de boa qualidade, com fundo branco (a fotografia deve ser tirada da altura dos ombros pra cima);
– cópia digitalizada do seu documento de identidade;
– cópia assinada do formulário de solicitação do nome social (Você encontra o formulário na Página do Participante. Você deve imprimir, assinar o formulário e escanear para anexar ao processo de solicitação).
Outro detalhe importante é que a resposta quanto à solicitação é realizada de maneira individual na Página do Participante, no site do INEP. Se for negada, você receberá um email avisando e terá até três dias para reenviar uma nova solicitação.
Se você é uma pessoa trans ou travesti, fique de olho e não perca os prazos. E se você não for, ajude lembrando pessoas trans e travestis quanto aos prazos e informações.
A imagem que ilustra o post é da Duda Salabert, fundadora da Transvest, em Belo Horizonte (Diogo Andrade/Believe.Earth)
Essa semana a atriz, diretora e dramaturga Renata Carvalho falou nesta entrevista para o blog da Casa 1 sobre a importância da representatividade e das referencias, por isso convidamos a dj, produtora, modelo e voluntária da Casa 1, Ledah Martins para que listasse 20 pessoas trans incríveis para seguir no Instagram e olha, é tiro atrás de tiro. Aproveitem!
Aretha Sadick – Atriz, modelo e cantora
https://www.instagram.com/p/B-f7xftl9wq/
Stripperella – Drag Performer
https://www.instagram.com/p/B9ko58ZAPQ7/
Ventura Profana – Cantora e Artista Visual
https://www.instagram.com/p/B-n6kNFJLMt/
Malka – Dj e Produtora Musical
https://www.instagram.com/p/B-H9iQfnWhD/
Ana Giselle – Dj, performer e produtora MARSHA!
https://www.instagram.com/p/B9Xw0w5HXhD/
Luca Scarpelli – Youtuber, ator e publicitário
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Maria Clara Araújo – Assessora parlamentar
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Paulete Lindacelva – Dj e Comunicadora
https://www.instagram.com/p/B-28P5Jns-x/
Tereza Tessaro – Estudante de história na USP e Podcaster
https://www.instagram.com/p/B3XUakFA3__/
Paty Dellii – Empresária e produtora Terça Trans
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Fernando Ribeiro – Dj
https://www.instagram.com/p/B_DpzSanjLL/
Valentin Rosa – Músico e Técnico de som
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Natasha Princess – Drag Performer
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Helena Aguiar – Dançarina e Performer
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Gabrielle Joie – Atriz e Modelo
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Kiara – Dj
https://www.instagram.com/p/B_TJ-AgHHlZ/
Lucyfer Eclipsa – Artista Visual, Ilustradora e produtora Transarau
https://www.instagram.com/p/B-iKRZDnjiO/
Teodora Oshima – Estilista
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Ona – Atriz e Modelo
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Lala Laurenti – Empresária e Esteticista
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E para finalizar, a autora deste post: Ledah Martins
A primeira vez em que vi a Renata Carvalho foi em 2016 na peça “Zona” do grupo “O Coletivo”, que se apresentavam em casa, na cidade de Santos, litoral de São Paulo. O espetáculo acontecia nas ruas da região portuária e finalizava em um bar/puteiro. A presença de Renata era uma grande pauta, afinal, uma atriz trans em cena ainda era coisa rara. No mesmo ano veio o estrondoso sucesso “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, onde Renata vivia Jesus, uma travesti, nos dias atuais, que assisti no Sesc Pinheiros.
Quando a Casa 1 abriu em 2017, Renata veio na festa de inauguração e já fã, fiquei emocionado e agradecido. Semanas depois uma nova visita, dessa vez na Biblioteca Caio Fernando Abreu, pegou em mãos o livro “Manifesto Contrassexual”, de Paul B.Preciado. “Eu estava louca atrás desse livro”, disse para o amigo que a acompanhava.
No mesmo ano, graças ao prêmio Zé Renato, fez uma apresentação do “Evangelho…” na calçada da Casa 1 que ainda não contava com a estrutura do galpão. Foi a coisa mais espetacular que já presenciei: algumas pessoas passavam pelo meio da cena xingando, durante as falas, gritos de gol ensurdecedores vinham das janelas por conta de uma final de campeonato de futebol onde jogava Palmeiras e Corinthians, que fizeram com que Renata tivesse que rebolar e muito. Assisti a peça em vários outros contextos, e na minha opinião, nenhuma das vezes foi tão potente quanto naquele dia na calçada.
Com “Evangelho…” Renata se apresentou ainda outras três vezes na Casa 1, duas no Galpão Casa 1, durante a programação da exposição “Descoberta – Construção do Corpo Nú”e na “I Semana de Visibilidade Trans”, em 2017 e 2018 respectivamente. Ambas lotadas. Ainda que eu ache até hoje que a apresentação na calçada seja sublime, sempre me senti em dívida pela falta de estrutura que peça e atriz mereciam então para a segunda edição da Semana de Visibilidade Trans conseguimos o icônico Teat(r)o Oficina Uyna Uzona.
Renata aplaudida em pé pelo público no Teatro Oficina. Foto: Carla Carniel
A apresentação no Oficina foi histórica, mais de 400 espectadores, pelo menos um quarto deles e delas trans. Confesso que senti um pouco de medo, o gigantesco Oficina em geral conta com uma centena de atores em cena compondo um coro para dar conta de todo aquele espaço projetado por Lina Bo Bardi: será que a Renata daria conta sozinha? Não só deu como foi aplaudida por mais de 15 minutos.
No dia seguinte me confidenciou que não tinha conseguido dormir depois de tamanha adrenalina e por falta de planejamento nosso teve que apresentar “Domínio Público”, junto com outros artistas censurados recentemente. Nessa peça Renata atua, co-dirige e também é responsável pelo seu texto. Completíssima. Por isso tudo e muito mais que falaremos a seguir, a atriz dá nome ao nosso ateliê de artes plásticas e também foi a primeira pessoa que pensei para abrir essa série de perfis que desejo fazer ao longo do ano aqui no blog da Casa 1.
Dentro de mim mora outra
Esse é o título do espetáculo de 2012 onde Renata contava sua história até então, mesmo ano em que se junta a companhia de teatro santista “O Coletivo”. Nascia ali o que seria o primeiro passo dos estudos da transpóloga, título que usa para se referir a sua pesquisa de antropologia dos corpos trans, a Transpologia. A cronologia de Renata vai e vem, refletindo sua inquietação e pensamentos borbulhantes que fazem com que tenha pelo menos quatro livros em processo de escrita na gaveta, além de muitos outros tantos projetos.
“Comecei ator mas passei para diretor porque me foram negados papeis masculinos pela minha feminilidade fora dos palcos. Sempre me restavam apenas personagens como Veludo de ‘Navalha na Carne’ e Giro de ‘Abajur Lilás'”, relata se referindo aos textos de Plinio Marcos e a si mesma no masculino do passado. Renata especificamente não ignora ou esconde o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento, mas o uso do gênero masculino se encerra assim em que relata sua aproximação com a população trans e consequentemente do seu processo de transição: “Eu não tinha entendimento do meu percebimento travesti e isso só aconteceu em 2007 quando fui ser agente de prevenção voluntária com a população trans”, explica.
Em 2009 volta aos palcos como atriz em “Nossa Vida Como Ela É”, baseada na obra de Nelson Rodrigues, outra referência da vida teatral. “Tenho proximidade do Plinio porque além da obra ele é de Santos e o Nelson porque vejo em seu texto diversidade, ele fala sobre as mulheres, a forma como ele desvelava a burguesia brasileira era algo raro. Nelson desvendava a podridão da classe média”, explica contando que leu “O Anjo Pornográfico”, biografia do jornalista e dramaturgo escrita por Ruy Castro, pelo menos quatro vezes.
Baseado em Nelson Rodrigues fez “Nelson Futebol Clube”, em 2001 e na direção, “Pelo Buraco da Fechadura” em 2004, peça que pretende revisitar com elenco trans no futuro. No entanto Renata faz questão de deixar claro: “não gosto do Nelson como pessoa, acho que ele era um escroto machista”. Pergunto então a ela se é possível separar a obra do criador, tendo em vista o debate recente sobre a obra de nomes como Woody Allen e Roman Polansky. “Tanto os que você citou quanto o Bertolucci eram privilegiados e ocupavam uma posição de domínio e usaram isso para fazer coisas horríveis, quando se trata desse lugar moral eu não consigo diferenciar a produção de quem produz, o Woody Allen é um grande, mas é também um grande filho da puta – não, filho da puta não porque não tem nada de errado em ser puta – filho do Bolsanaro é melhor”, finaliza dando uma alta gargalhada.
A arte como reflexo da sociedade
“Uma obra deve ser lida no seu tempo, para que eu vou montar Romeu e Julieta sem trazer o olhar de hoje? Me interessa como a arte colabora para criação do imagético da travesti, do negro, da mulher, da loucura”, discorre a atriz defendendo as encenações de textos com novas roupagens e significados. “Tem que se fazer releituras sim, uma obra é aberta para ser lida, dissecada, discutida. A partir do momento em que você ressignifica um texto isso já é uma voz própria e uma crítica do seu tempo“, explica diante da minha pergunta sobre as dezenas de remontagens que tomaram os palcos nos últimos anos sob perspectiva dos corpos dissidentes, entre eles “Maquina Branca” da Ave Terrena e “Gota d’Água Preta” de Jé Oliveira. “O Gota é um bom exemplo, como a gente nunca percebeu que se passa todo em uma favela e todas as Joanas eram brancas?” Sobre a peça, aproveita o gancho e vai além: “Porque só agora o Jé Oliveira, um diretor negro, ganhou um prêmio Shell”, se referindo ao fato do prêmio que só depois de 32 anos de existência, em 2019, premiou um diretor negro.
A resposta para a pergunta que faz, ela mesma responde: “É um círculo vicioso onde sempre ficam os mesmos, não tem uma amplitude do olhar. A gente só exalta alguns artistas, só tem os mesmos artistas circulando e eles se auto premiam e prêmio é um lugar de prestigio social, de exemplo e nossos corpos não podem ser exemplo. Aí os milhões acabam indo sempre para o Bob Wilson, para o Gerald Thomas, pro Felipe Hirsch, para a Daniela Thomas, a Bia Lessa, enfim, esses nomes que podem fazer o que quiser”, e cita ainda o grupo mineiro Galpão “que fazem cenários que abaixam, levantam, rodam o Brasil enquanto grupos independentes já começam um espetáculo pensando em diminuir o cenário e o elenco para caber em uma van e poder circular”, conta.
Renata emocionada agradecendo o público de “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”
Para Renata, além das patotas, o olhar colonial em cima da arte é o motivo da mesmice e pouco espaço para corpos dissidentes. “Não podemos mudar as coisas fazendo as mesmas coisas. Precisamos mudar o modo como fazemos arte porque em vários momentos da história fizemos arte de forma irresponsável” afirma a atriz lembrando que o trabalho de hoje vai ter impacto daqui 50 anos: “Estamos mudando o olhar, reorganizando esse olhar, tirando o olhar da branquitude, da cisgeneridade” e complementa falando de outros corpos como o das pessoas gordas, com deficiência, dos corpos positivos, entre outros. “Precisamos tapar o buraco da arte que não nos coloca em destaque, com histórias aprofundadas, verticalizadas, humanizadas”e cita os espetáculos “Isto é Um Negro” do grupo E Quem é Gosta?, “As 3 Uiaras de SP City” da Ave Terrena, “Manifesto Transpofágico”de sua autoria e a performance “Macaquinhos” que agitou a cena quando estreou em 2014.
Luta contra o transfake
Dentre as muitas batalhas públicas que travou em prol da visibilidade trans e de outros tantos corpos, está o embate com a Cia. Mungunzá de Teatro pela montagem “Luís Antônio Gabriela”, com texto e direção de Nelson Baskerville de 2011. “A peça era um pedido de desculpas que não se desculpou, um texto muito desrespeitoso, com um homem cisgênero interpretando a Gabriela e eu saí do teatro nervosa querendo voar em todo mundo”, conta. Depois de anos de luta e debates públicos, a companhia escalou em 2018 a atriz Fabia Mirassos para assumir o papel de Gabriela. “Quando vi a Fabia chorei, nada mudou mas tudo mudou”, aponta explicando que aquele corpo em cena eliminou muitos esteriótipos como por exemplo o de que um corpo de uma travesti é um corpo masculino.
Fundadora do “MONART – Movimento Nacional de Artistas Trans” (travestis, mulheres e homens trans e pessoas trans não binárias) e do “Representatividade Trans”, movimento que luta contra o TransFake, ou seja, pessoas cisgêneras interpretando pessoas trans. Renata explica que a luta é maior do que a atuação:”Primeiro temos que falar sobre proporcionalidade, quantas pessoas trans estão interpretando pessoas cis? Quantas trans estão interpretando trans? Quantos corpos trans estão fazendo parte da construção de uma obra? E não estou falando apenas sobre atuação, estou falando de direção, iluminação, cenário, figurino”, detalha, explicando ainda que “não somos um corpo humanizado, então a justificativa dada é que não temos o poder de humanizar um personagem e por isso acabamos não tendo espaço na arte“.
“Quando a gente fala de travesti fala de corporeidade (termo da filosofia para designar a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo), quando fala de corporeidade fala de colonização, de neocolonialismo, de liberalismo, neoliberalismo, capitalismo. É sobre quais corpos são válidos e quais não são. É muito mais vertical do que estar interpretando um corpo trans”, afirma esvaziando completamente as críticas de que a luta pela representatividade e pelo fim da prática do Transfake é apenas uma questão de ego ou do politicamente correto.
Renata aponta que existem sim muitas narrativas para corpos trans, mas por serem contadas sempre a partir de corpos (e vivências) em geral brancos e cisgêneros, faz com que a imagem consolidada seja sempre pejorativa. “Sob a perspectiva religiosa nossa narrativa é de que somos corpos sem almas, sem Deus, endemoniados; sob a perspectiva médica somos um corpo patologizado, doente; sob a perspectiva legal somos corpos criminalizados, ainda hoje ligados a crime sexuais. Isso tudo sem contar a narrativa carnavalesca, da construção caricata do nosso corpo, algo que chamo de transfobia recreativa”, desabafa.
O caminho até chegar nesse ponto da reflexão e pensamentos segundo a atriz foi longo. “Quando transiciono junto com o trabalho de agente de prevenção voluntária começo a estudar o corpo trans sob a perspectiva da saúde, da psicologia, da psiquiatria, mas com o trabalho em teatro passo a ver peças, filmes, livro e me dou conta de que não existem livros contando nossa história, apenas a nossa exclusão“. O passo seguinte seria uma aproximação do feminismo negro e da interseccionalidade, em especial da leitura de nomes como Djamila Ribeira,Carla Akotirene, Joice Berth, Angela Davis e Audre Lorde, onde “vejo que a ‘culpa’ da minha exclusão não é minha, é da exclusão do meu corpo. Quando me percebo travesti eu mudo meu olhar, eu amplio meu olhar, tenho outro entendimento do meu corpo e do mundo e por esse entendimento ampliado de tudo digo que ser travesti salvou a minha vida”.
E se engana quem acredita que Renata defende cegamente que relação e o conhecimento dos corpos é algo inerente das pessoas trans: “Não é porque se é uma pessoa trans que você tem um entendimento do corpo trans, na arte por exemplo, tem representatividade que não representa porque aquelas pessoas não tiveram tempo para pensar no corpo”, e sabe que a exclusão sistemática da população é um dos principais motivos, ” a grande maioria das travestis não tem tempo para pensar o que significa seu corpo, elas estão correndo atras de viver, de pagar conta, conseguir um trabalho, afeto, saúde mental”, pontua reconhecendo seus privilégios.
“Estou no teatro há 24 anos e teatro é a arte da repetição, eu tive tempo para ver, rever, falar, estudar e de poder me expressar pela minha arte”, celebra citando outros nomes que também tiveram essas oportunidades e a inspira: as dramaturgas e atrizes Ave Terrena, Leonarda Glück, Marina Matei, a artista -educadora Dodi Leal, as cantoras Linn da Quebrada, Raquel Virgínia, Assucena Assucena e Danna Lisboa, a publicitária, ativista e multi artista Neon Cunha, a professora e doutora Jaqueline Gomes de Jesus e as deputadas Erika Hilton e Erica Malunguinho.
Se como Renata mesmo diz, os livros não contam a história dos corpos trans, apenas da exclusão, vão ser nas pessoas que vai buscar inspiração e conhecimento. “Foi e é pra mim essencial ter referencias trans, então eu quero falar de Keila Simpson, Giovana Baby (ativistas da ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais), Symmy Larrat (ativista e ex presidente da ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), Indianare Siqueira (ativista e fundadora da Casa Nem)”, citando ainda nomes de figuras que já nos deixaram mas foram fundamentais para o movimento, como Cláudia Wonder, Phedra de Córdoba, Brenda Lee e Andrea de Mayo.
Depois de anos de lutas e de prática, veio então a calma, a voz ganhou um tom calmo, pausado e microfonado em “Manifesto Transpofágico”, espetáculo que estreou em 2019 na “Mostra Internacional de Teatro” e que a atriz entende como uma espécie de continuação do seu primeiro monólogo “Dentro de Mim Mora Outra” só que mais voltado para a história da sua comunidade, ainda que costurado pela sua trajetória pessoal. “Quando comecei o ‘Representatividade Trans’ e com as censuras que sofri e ainda sofro com o Evangelho fiquei conhecida como violenta, como um corpo bélico, que causa desconforto”, relembra contando ainda que acabou inclusive adoecendo. “É difícil defender o óbvio todo dia mas aprendendo sobre comunicação não violenta e com a Djamila Ribeiro, entendi que para chegar em determinados lugares preciso falar de outra forma”, finaliza.
“Manifesto Transpofágico” se tornou rapidamente um sucesso de público e crítica mas mesmo com a fala calma Renata sabe que não se trata de um texto suave: “Ele (o espetáculo) já é violento pelo o que eu conto e eu não queria abalar o que eu chamo de fragilidade cisgênera – que se abala fácil, então quando a gente fala alto as pessoas botam a culpa nisso, por isso sigo calma em cena”, explica a atriz que passa praticamente todo o espetáculo apenas de calcinha: “Manifesto vem para colocar o corpo trans em discussão e eu literalmente me desnudo no palco para que isso aconteça. Eu quero jogar o meu corpo travesti nas pessoas, eu passo bunda, passo peito na plateia, para que as pessoas naturalizarem esse corpo”, explica.
Outro sucesso recente é a participação no longa “Vento Seco”, de Daniel Nolasco onde interpreta Paula, uma mulher cis sindicalista que trabalha em uma fábrica de fertilizantes e é segundo a atriz, “a parte solar do longa”. Além de Renata, outros dois atores trans interpretam pessoas cis na trama, algo importante tendo em vista as escassas oportunidade de trabalho desses corpos. O longa estreou no Festival de Berlim com ótimas críticas e tinha sua estreia nacional programada para o final do ano no Festival Mix Brasil, mas carece de confirmação por conta da pandemia do novo Coronavirus. Além do longa, Renata também gravou “Primeiros Soldados” de Rodrigo de Oliveira, que fala sobre os primeiros casos de HIV/AIDS na cidade de Vitória, no Espirito Santo, sem estreia prevista.
Com tantos projetos e com o avanço de outros tantos atores e atrizes trans pergunto então se já caiu por terra a justificativa de que o público não estaria pronto, tão defendida por quem cria os espetáculos, filmes e programas de TV e a resposta vem afiada e rápida: “Se o público não estiver pronto, vai ter que ficar. A arte precisa se responsabilizar pelo que contrói e pelo que já ajudou a construir” e cita três longas lançados no ano anterior (2019) que ainda contam com a prática do Transfake, “Veneza”, de Miguel Falabella (um dos campeões da prática, diga-se de passagem), “Bate Coração” de Glauber Filho e “Greta”, de Armando Praça, não coincidentemente dirigidos por três homens brancos cisgêneros. “É o que eu chamo de continuidade do pacto da branquitude e da cisgeneridade, onde quem escreve e dirige faz sem estudar, sem entender as vivências trans, muitas vezes sexualizando e criminalizando esses corpos e consequentemente tirando humanidade deles”, pontua.
Para o futuro, os desejos são muitos, “quero que todas as pessoas trans trabalhem com o que querem, que tenham uma vida saudável, saúde mental, eu não trabalho para mim, trabalho para as que estão começando, as que estão nascendo hoje e nem sabe que são travesti, para que elas envelheçam” diz se referindo à expectativa de vida da população trans que é de 27 à 35 anos, expectativa essa que Renata diz ter o privilégio de ter ultrapassado mas que a idade que realmente almeja é 55 anos porque “aí eu vou ter vivido mais como Renata do que como Ricardo“, diz.
No campo do trabalho, ela que recentemente ingressou na faculdade de Ciência Sociais deseja, junto do trabalho artístico, criar um mapa da prostituição e a diáspora travesti na Europa e trabalha em uma versão para “Grandes Sertões: Veredas” de Guimarães Rosa com um elenco todo trans: “Vai ser o Trans Sertrans Veredas com o Riobaldo transicionando e chamando Renata, talvez ambientado em São Paulo, num corpo atemporal. A ideia é começar como um livro e depois peça”, conta. Inquieta que é, também tem no radar uma série ou filme sobre Gisberta e um longa com a atriz Fernanda Montenegro. “Esse texto já tá até pronto e conta a história de uma trans que é criada pela avó mas quando transiciona é expulsa de casa e retorna depois de décadas para cuidar dessa avó com Alzheimer”, e completa com a cena que tem clara na cabeça: “Eu sorrio para minha avó e ela diz ‘nossa, você tem o sorriso do meu neto'”, finaliza.
Cabe agora a nós, reles mortais, esperar esse furacão que é Renata colocar em prática todos esse grandes projetos. Evoé!