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‘Esse é feminino’: experiências de mulheres lésbicas em banheiros públicos de São Paulo

Pesquisadora conta como a segregação sexual dos banheiros é um problema cotidiano para lésbicas porque reforça o imaginário social com preconceitos

Por Josefina Cicconetti

Muites, muitas e muitos podem se questionar acerca dos motivos que levam alguém a escrever sobre “banheiros”. Podem, ainda, se perguntar qual é a relevância social de analisar esse espaço. Diz Y.A.*: “O banheiro é uma metáfora concreta do que é a hipocrisia brasileira e de outras partes do mundo em relação ao debate sobre sexualidade e diversidade de gênero. Tudo isso é uma metáfora concreta. Digo metáfora concreta porque explica para gente o que está acontecendo e mostra na prática como acontece. É só um banheiro, né? mas o problema não é só o banheiro, o problema é o comportamento das pessoas no banheiro. É você olhar para mim no banheiro porque eu estou de cabelo curto e não sou um homem, provavelmente sou lésbica”.

Pois bem, diferentemente do que o senso comum nos faz pensar sobre os banheiros como espaços neutros, despojados de poder, divididos com base nas diferenças “naturais” entre homens e mulheres (e por isso são lugares “seguros”), na prática vemos e experimentamos como estes espaços são deliberadamente desenhados e planejados de forma dicotômica e genderizada.

Na minha experiência enquanto lésbica, vivi diferentes situações de discriminação e preconceito nos banheiros – sejam estes de “uso público” (banheiros em espaços públicos como praças, parques etc.) ou de “acesso privado” (banheiros em espaços privados e de uso exclusivo de seus clientes, como restaurantes, bares etc.). Nessas situações, o meu gênero se tornava “o” assunto a ser interpelado, indagado e verificado por qualquer pessoa, em particular pelas usuárias ou potenciais usuárias – a caminho ou dentro – do banheiro, em virtude da minha expressão de gênero, pois era (e ainda sou) enquadrada como fora do padrão de “mulher” e de “feminilidade” exigidos e esperados para ingressar no banheiro dito feminino.

Assim, diante destas experiências e dos questionamentos decorrentes delas, decidi desenvolver uma pesquisa que abordasse as experiências das mulheres lésbicas nos banheiros públicos em São Paulo. Pretendia com isso, por um lado, visibilizar as vivências e os relatos das mulheres lésbicas, em especial as chamadas lésbicas masculinas, e, por outro lado, denunciar que a manutenção da segregação sexual e de gênero dos banheiros torna este espaço a última fortaleza do sistema heteronormativo.

Propus-me, através da pesquisa, a questionar as formas hoje institucionalizadas de ir ao banheiro, sua divisão sexual, binária, heteronormativa e baseada em estereótipos culturais de masculinidade e feminilidade. E isso abriu caminhos para abordar também os “como”, os “para quê” e os “porquês” dessa separação.

Espaço segregador

A separação dos banheiros foi inicialmente realizada em função da raça e etnia das pessoas. Em países como Estados Unidos e África do Sul, regiam normas e leis para separar o uso do espaço entre pessoas brancas e pessoas racializadas – nomeadamente, as leis Jim Crow e o Apartheid. Atualmente, a prática é que os banheiros sejam divididos com base no sexo e no gênero das pessoas.

Esta segregação do espaço público em termos de um lugar exclusivo para homens e outro exclusivo para mulheres normaliza determinadas significações sociais (identidades) em detrimento de todas as outras. Isto faz com que, entre outras coisas, as identidades que não atendam aos estereótipos sociais e culturais (no sentido da aparência e comportamento vinculados ao sexo que lhes foi atribuído ao nascer) se encontrem em situações discriminação e preconceito. Assim, o uso dos banheiros por pessoas com identidades de gênero não binária ou por pessoas trans, travestis e transgênero é sempre alvo de controvérsias.

O fragmento citado no começo do texto traz o relato de Y.A., uma das entrevistadas que participaram da pesquisa, e revela uma das formas em que as mulheres lésbicas, em especial aquelas que não reproduzem o modelo de feminilidade heterossexual, são abordadas nos banheiros públicos “femininos”. Dessa forma, fica claro que a divisão binária dos banheiros sustenta a diferença sexual, e que esta não só divide os espaços como também os papéis de gênero, legitimando assim as desigualdades sociais e relegando certas pessoas às margens da sociedade e do direito.

Se hoje compreendemos – graças ao ativismo e à teorização dos movimentos feministas, trans, pós-colonial e queer – que o gênero não é algo “naturalmente” dado, senão construído performativamente e que anatomia não é destino, mas sim que há uma multidão de formas de ser e estar no mundo, por que continuamos segregando os corpos e os espaços com base em duas categorias identitárias como se estas fossem estáveis, definitivas e fixas (homem/mulher, masculino/feminino)?

Interpelações de gênero

Tomando como base os relatos das entrevistadas, identifiquei a existência de um processo de abordagem e questionamento de gênero que chamei de interpelação de gênero. À medida que as entrevistadas narravam diferentes episódios nos banheiros, foi possível identificar três etapas em que a interpelação de gênero se faz presente. Cabe ressaltar aqui que apesar de ter identificado essas três etapas em que o gênero é questionado, esta lista não é exaustiva e sim ilustrativa, podendo haver outras formas de interpelação não listadas e que possivelmente outras mulheres lésbicas podem experimentar.

Em primeiro lugar, a etapa do estereótipo. Aqui a exigência da identificação dentro dos moldes do sistema heteronormativo (homem/mulher) incentiva a produção de características estereotipantes para cada pessoa (masculinidade/feminilidade). Neste sentido, os banheiros fazem o controle de que quem ingressa ou quem tem intenções de ingressar seja antes “legível” nos termos que essas categorias da diferença social predeterminante. Ou seja, que sejam “lidas” como “mulheres”, dentro da feminilidade socialmente exigida, ou como “homens”, dentro dos moldes da masculinidade hegemônica.

Confira o que dizem três pessoas entrevistadas na pesquisa:

R.Q.: “Há estereótipos que nos colocam em determinados lugares e que nos dão acesso a algumas trilhas, eles podem ser extremamente violentos. Já aconteceu assim, na porta do banheiro, eu querendo entrar e alguém me chama, aí você vira e a pessoa fala “ah, desculpa”, ou estando dentro do banheiro e alguém olha assustada.”

R.A.: “Eles vêem a expressão de gênero, e uma expressão de gênero baseada em vestimenta, corte de cabelo… eles não estão questionando minha orientação [sexual], não é o ser lésbica ou se eu gosto de mulheres ou alguma coisa assim.”

M.F.: “Depois que eu cortei o cabelo, aí que começou essas questões do banheiro comigo! […] ter o cabelo curto, e principalmente aqui na região da nuca, o undercut, mudou minha vida! Até pensei por um momento de deixar meu cabelo crescer um pouco para deixar de ser confundida com homem, porque eu não quero ter nenhum vínculo e nenhuma referência com os homens porque eu sou uma mulher lésbica! Não tem nada a ver! É outra coisa!”

A segunda etapa no processo de abordagem das mulheres lésbicas nos banheiros públicos é chamada de questionamento, argumentação e prova. Nela as entrevistadas expuseram situações de estranhamento, de olhares de aprovação ou rejeição, nas quais como contrapartida dessas interdições socioculturais elas têm que “provar” que aquele é seu banheiro. Percebe-se que o fato de elas terem que demonstrar que estão no banheiro “certo” se dá porque estas não foram imediatamente “lidas” dentro dos códigos da feminilidade heteronormativa.

Dizem as entrevistadas:

L.B: “Na PUC [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo], estava no banheiro e aí a pessoa dá uma conferida na porta assim, tipo: ‘Eu entrei no banheiro certo?’ […] Olha para plaquinha na hora que abre [a porta], tipo confere, sabe?”

R.A.: “Primeiro a proibição, né? Estava num shopping, fui entrar no banheiro e a pessoa que cuida da higiene do banheiro falou: ‘Opa, opa, é lá’. Aí eu olhei para ela, e no que eu olhei acho que eu mostrei os peitos, e aí ela acabou… ‘Ah, desculpa’. E aí eu entrei.”

R.Q.: “Já me aconteceu uma vez também que me falaram assim: ‘esse banheiro é das mulheres’. Aí eu falei: “Eu sei!” Aí fica aquela situação de ‘saia justa’.”

C.R.: “Você vai entrar num banheiro público, e aí você percebe que uma pessoa vem te seguindo […]. Aí a pessoa te olha, leva um susto e fala: “Não, não desculpa”, e deixa você entrar. […] É só você mostrar o peito na verdade, aí eles me deixam entrar na hora, né?, mas você tem que provar que aquele é seu banheiro de acordo com o que a sociedade acredita […]. E aí você tem que mostrar, ou mostrar o peito ou falar: ‘Não, sou uma mulher’. Tenho que me apresentar.”

Finalmente, a terceira etapa da interpelação de gênero se dá em forma de confusão e disciplinamento de gênero e ocorre quando as entrevistadas expressam seu gênero fora dos padrões e moldes preestabelecidos pelo sistema heteronormativo. Quer dizer, aquelas lésbicas identificadas social e culturalmente como masculinas ou masculinizadas relatam que primeiro são abordadas como se fossem homens, e, em seguida, ao compreender que são mulheres com uma masculinidade feminina, são disciplinadas – já que para manter o status quo do sistema heteronormativo é preciso que qualquer ambiguidade e desvio de gênero seja emendado, corrigido e sobretudo, disciplinado.

Contam as entrevistadas:

D.C.: “[Acontece] Principalmente em festivais, em que tem muita segurança dentro do banheiro. Já aconteceu várias vezes de, tipo, estar entrando e me pararem, sabe? A segurança me parar […]: ‘Não, aqui é o banheiro feminino’, e aí eu virava e falava: ‘Bom, eu sou mulher’. Falar isso para poder entrar. Isso aconteceu várias vezes em festivais, mais em lugares assim, em baladas e tal.”

M.F.: “As pessoas acham que eu sou um homem. Eu não sou, sou uma mulher! E além de ser uma mulher, eu sou uma mulher lésbica […] Então, eu tento reforçar isso para as pessoas perceberem, e eu acho que a forma de eu responder ou tratar faz com que as pessoas percebam e prestem atenção […]. Eu acho que [em] outro momento eles vão ter mais cuidado ou vão pensar: ‘Ah, não, é uma lésbica, não é um homem’.”

Após a confusão com os “homens”, o disciplinamento de gênero aparece para reforçar a adequação de gênero. Neste ato de adequação, o próprio enquadramento, a confusão ou leitura das mulheres masculinizadas enquanto “homens” é uma ação de disciplinamento e de normalização – já que se a pessoa apresenta determinadas características ou traços que são julgados como “masculinos” no banheiro “feminino”, as demais pessoas (usuárias, agentes de segurança ou vigilantes) tentarão automaticamente colocá-la no “seu lugar”, que não é no banheiro “feminino”.

As entrevistadas aduzem que, via de regra, no Brasil se vê o banheiro como um espaço neutro, negando qualquer tipo de efeito disciplinador que a divisão sexual carrega, bem como as formas de opressão e controle que coabitam nele e que se impõem sobre outras identidades de gêneros. Isto pode ser constatado quando as entrevistadas narram suas experiências de serem “confundidas” com homens e que elas devem provar que aquele é “seu” banheiro ou quando outras usuárias olham para elas no banheiro e imediatamente vão “conferir” as placas na porta.

Todos os relatos colocam em evidência que, através da “incongruência” ou “desconexão” entre a expressão de gênero (aparência) e o que o meio social espera perceber ou identificar (estereótipo) como características representativas de uma determinada identidade, a política de representação está falindo e é preciso abrir espaço para as múltiplas opções de ser e estar no mundo.

Assim, esta reflexão busca contribuir para uma visão mais plural e menos ingênua, em termos de não mais mascarar as reais causas e intenções da segregação sexual dos banheiros, bem como de quebrar as barreiras simbólicas, culturais e estruturais que se utilizam como justificativa para manter tal divisão.

A segregação sexual dos banheiros públicos é um problema cotidiano para lésbicas, trans, travestis, transgênero, não-binárias, intersex ou queer, pois restringe a circulação dessas pessoas no espaço público e reforça o imaginário social com preconceitos. Mas não por isso seu debate e problematização devem ser pensados como uma questão particular ou exclusiva das “minorias sexuais”, e, sim, como um debate que concerne a toda a sociedade, já que nos banheiros se sublinham os mecanismos sociais vinculados à divisão sexual dos indivíduos que continuam sendo centrais na organização da vida social contemporânea.

*Os nomes foram substituídos pela iniciais, para preservar a identidade das pessoas.

Josefina Cicconetti é doutoranda em Estudos de Gênero pela Universidade Nova de Lisboa, mestra em Filosofia pela USP (Universidade de São Paulo) e especialista em Políticas Públicas de Direitos Humanos pelo IPPDH (Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos). Atua na área de direitos humanos na América Latina há mais de 10 anos. Contato.

Acesse o site da Agência Diadorim.

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