Protocolada em 2017, ação questiona constitucionalidade dos artigos do Código Penal que criminalizam o aborto
Por Schirlei Alves para Gênero e Número
A descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação voltou a ser debatida no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF) após cinco anos de completo silêncio. O voto favorável foi uma das últimas ações da ministra Rosa Weber antes de deixar a presidência da Corte e se aposentar compulsoriamente após completar 75 anos.
Até sua aposentadoria, em 2 de outubro, Weber fica com a relatoria da ADPF 442, protocolada por PSOL e Anis Instituto de Bioética. Depois disso, a ação pode ficar tanto sob a responsabilidade do ministro ou ministra que substituir a atual presidente da Corte, como na alçada do novo presidente, ministro Luís Roberto Barroso, que pediu destaque para a ação, o que leva o debate ao plenário presencial. Cabe agora a Barroso definir uma data para a continuidade do julgamento.
Em 2018, representantes da sociedade civil e membros de instituições e organizações nacionais e internacionais debateram a descriminalização do aborto em duas audiências públicas no STF. Pesquisas, dados de saúde e experiências de outros países foram levados em consideração por Rosa Weber.
Em seu voto no plenário virtual, a ministra destacou que “os abortos inseguros e o risco aumentado da taxa de mortalidade revelam o impacto desproporcional da regra da criminalização da interrupção voluntária da gravidez”, não apenas em razão do gênero, mas por razões de “raça e condições socioeconômicas”.
Para compreender os caminhos da ADPF 442 no STF, conversamos com Luciana Boiteux, advogada do PSOL e responsável por protocolar a ação, e com Leticia Ueda Vella, advogada do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
O que é a ADPF 442
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 442, é uma ação proposta por PSOL com apoio da Anis Instituto de Bioética, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
A ação foi protocolada em 2017, no STF, visto que cabe à Corte avaliar a compatibilidade entre os artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam a prática do aborto, com os princípios da dignidade humana previstos na Constituição Federal.
O Código Penal vigente é de 1940, portanto, anterior à Constituição Federal, de 1988. No entendimento das autoras da ação, a criminalização do aborto viola princípios como a igualdade, a não discriminação, a saúde e o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos, presentes na Constituição atual, mas que não eram contemplados no momento da edição do Código Penal.
O que a lei atual diz sobre o aborto
Atualmente, o aborto é criminalizado exceto em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da gestante e anencefalia do feto. As duas primeiras situações estão previstas no artigo 128 do Código Penal, vigente desde 1940. Já a terceira situação, de interrupção em caso de anencefalia do feto, foi descriminalizada pelo STF em votação que ocorreu em 2012.
Como toda relação sexual ou ato libidinoso com menores de 14 anos é prevista no artigo 217A do Código Penal como estupro de vulnerável, todas as gestantes nessa faixa etária tem direito de acesso ao aborto legal no Brasil, embora enfrentem obstáculos para realizá-lo.
Já a criminalização do aborto é prevista em dois artigos do Código Penal. O artigo 124 criminaliza a pessoa que provocar o aborto em si ou consentir que outra pessoa o provoque. Nesse caso, a pena é de um a três anos de prisão. O artigo 126 criminaliza a pessoa que provocar o aborto com o consentimento da gestante. A pena é de um a quatro anos de prisão.
Por que a ação sugere a descriminalização até a 12ª semana de gestação
Um dos argumentos para defender a descriminalização até a 12ª semana de gestação é o de jurisprudência de legislações internacionais, dado que esse foi o limite determinado em muitos países onde o aborto foi descriminalizado e reconhecido como um problema de saúde pública. Como exemplo, na América Latina, a Cidade do México e o Uruguai descriminalizaram o aborto até a 12ª semana.
Outro argumento é o baixo risco do procedimento nas primeiras 12 semanas da gestação, pois é possível realizá-lo apenas com o uso dos medicamentos misoprostol e mifepristona. Esse atendimento pode ser feito tanto no ambiente ambulatorial como no próprio domicílio, com orientação médica guiada por telemedicina.
Vale lembrar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) indica, em suas diretrizes, que, embora os métodos de aborto variem conforme a idade gestacional, a gravidez pode ser interrompida com segurança em qualquer estágio.
Segundo as peticionárias da ADPF 442, embora a ação proponha a descriminalização até a 12ª semana de gestação, este limite ainda é considerado conservador, uma vez que há legislações aprovadas recentemente com limites superiores.
Na Argentina, a lei da interrupção voluntária da gravidez, aprovada em 2020, autoriza a interrupção até a 14ª semana de gestação. Já na Colômbia, o aborto foi descriminalizado até a 24ª semana de gestação pela Corte Constitucional, em 2022.
O caminho da ADPF 442 no STF
Em agosto de 2018, a ministra Rosa Weber convocou audiência pública para discutir o assunto. Mais de 40 representantes da sociedade civil e membros de instituições e organizações nacionais e internacionais foram ouvidos.
Cinco anos depois, em 22 de setembro de 2023, às vésperas de se aposentar, Weber movimentou a pauta novamente e se manifestou a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O voto, de 129 páginas, foi apresentado em julgamento virtual.
Na sequência, o ministro Luís Roberto Barroso, que será o próximo presidente da Corte, pediu destaque, o que gerou a suspensão da votação no plenário virtual. A manifestação leva o julgamento para o plenário presencial, no qual é possível ocorrer as sustentações orais e debates entre os ministros, com transmissão ao vivo pela TV Justiça.
O julgamento em plenário físico, porém, não tem data para acontecer. O único voto registrado até agora foi o de Weber. O ministro Barroso, que assumiu a presidência do STF na quinta-feira (28), tem agora a responsabilidade de marcar a data para a retomada do debate.
Congresso Nacional e a votação do STF
As manifestações dos parlamentares podem reverberar politicamente, mas não interferir no curso da votação no Supremo. A ADPF é debatida no STF, pois é reconhecida a competência da Corte em avaliar a constitucionalidade da legislação que criminaliza o aborto, assim como tem ocorrido em outros países.
O debate envolve direitos fundamentais das mulheres, meninas e pessoas que gestam e compreende populações que estão em maior situação de vulnerabilidade, como mulheres negras, na medida em que estudos apresentados na argumentação mostram que elas são as mais impactadas com a crimininalização do aborto.
O papel do STF, nesse sentido, é impedir que as legislações violem direitos e garantir os que estão previstos na Constituição.
Possíveis cenários com a aprovação da ADPF 442
Movimentos feministas e organizações que atuam com temas relacionados aos direitos reprodutivos esperam que o ministro Barroso, enquanto presidente do STF, assuma a responsabilidade de dar continuidade ao julgamento presencial em decorrência da relevância da pauta. Segundo os movimentos, a urgência da votação está ligada aos danos que a criminalização tem causado à saúde das mulheres.
Entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram por aborto em hospitais da rede pública de saúde do Brasil. Proporcionalmente, o maior número de mortes ocorreu nos casos de “falha na tentativa de aborto”, categoria na qual são registrados abortos incompletos, em que internação ocorreu para finalização do procedimento.
Caso a ADPF 442 seja aprovada, será necessária uma regulamentação da implementação do serviço pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Na avaliação das peticionárias, a regulamentação pode se dar por meio de portarias do Ministério da Saúde, como já ocorre nos casos de aborto previstos em lei no Brasil.