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Com medo de ser morta por ser lésbica, Lara fugiu de Moçambique para SP. ‘Nunca tive respeito por ser o que eu sou’

Refugiada por causa da LGBTfobia e da violência do Estado de Moçambique, Lara foi agredida e viu amigas sendo mortas e estupradas por sua sexualidade. Desde 2013, ela vive com a esposa e um filho em São Paulo

Por Beatriz Drague Ramos 

“Ele me deu um soco na cara, nunca vou esquecer isso”, lembra a empresária de 37 anos, Lara Lopes, ao se referir a uma das memórias de sua vida em Moçambique, sudeste  da África – ela foi agredida por um homem na rua por ser lésbica. Outra recordação viva em sua mente foi o dia em que a própria família a excluiu de um jantar. “Nunca esqueço o dia que eu fui jantar na casa da minha tia, entre primos, eles me excluíram, me colocaram num canto sozinha e proibiram suas mulheres de conversarem comigo”.  Ambos os episódios têm o mesmo motivo: LGBTfobia. 

Atualmente Lara é dona de uma mecânica de carros e se assumiu lésbica para as pessoas de sua convivência, mas só após 17 anos de sofrimento em seu país de origem. Em entrevista à Ponte às vésperas do Dia Mundial do Refugiado e no mês do orgulho LGBT, Lara conta que descobriu o Brasil através de uma novela brasileira que retratava um casal LGBT. Foi quando ela começou a pensar em sair do país que a ameaçava constantemente. 

Seu maior hobby na adolescência era jogar futebol entre amigas na área central de Maputo, capital de Moçambique. O que era um momento de lazer aos poucos foi se tornando um desafio em sua vida à medida que ela crescia e descobria a sua sexualidade. “Eu sempre joguei futebol lá e o meu pai sempre foi uma pessoa ligada ao futebol, que era sempre associado a homossexualidade. Toda mulher que joga futebol, como eles falavam, é ‘fufa’. Quer dizer lésbica, de uma forma pejorativa”.

O pai, que frequentava muito o meio do esporte, ouvia outras pessoas falando de Lara e abandonou a família por conta da orientação sexual da filha. “Ele ouvia sempre alguma coisa, mas nunca chegou para conversar a respeito. Um dia ele saiu de casa, não falou para ninguém e quando a minha mãe procurou saber o porquê, ele falou que eu estava consumindo drogas, mas eu nunca consumi na minha vida. Logo entendi o que estava acontecendo”, conta.

Além do abandono do pai, o preconceito, segundo ela, faz parte da sociedade influenciada fortemente por religiões cristãs, predominantemente as evangélicas. “Xingavam e gritavam na rua, eu ouvia às vezes, sem nem saber onde é que a pessoa estava. Às vezes a pessoa jogava alguma coisa do alto de um prédio na nossa cabeça, tinha gente que jogava água”. 

Fora isso, Lara viu formas ainda mais violentas de LGBTfobia no país em que era crime ser homossexual até julho de 2015. “Chamam a pratica de estupro em pessoas LGBTs de ‘violação cura’, ou ‘violação correctiva’, que agora na África do Sul eles fazem muito. Duas amigas minhas que não aguentavam os desaforos foram assassinadas. Eu às vezes me pergunto: será que se eu estivesse em Moçambique não estaria nessa estatística delas duas?”, questiona. 

Um dos casos lembrados por ela foi o dia em que um homem a agrediu ao final de um jogo de futebol. “Foi em um campo público que fica no centro da cidade, chama-se Campo do Estrela. É normal os homens mandarem indiretas, só que tem gente que engole, minhas amigas não. O cara estava com vontade de criar briga com a gente, ele foi pra cima, com tudo mesmo, xingou a gente um monte de nome, ele me deu um soco na cara. E eu tenho a certeza absoluta que se ele me ver hoje, ele vai se lembrar muito bem disso”, conta, revoltada. “São coisas que não tem como você esquecer, está lá guardado numa gavetinha”, lamenta.

Violência do Estado

A LGBTfobia é uma herança do colonialismo que impera até hoje em ao menos 30 países africanos que persistem em manter como crime as relações entre pessoas do mesmo sexo ou em restringir práticas sexuais não heteronormativas, segundo informações do relatório Homofobia Patrocinada pelo Estado 2019, produzido pela  Associação Internacional de Gays e Lésbicas (ILGA).

Moçambique, que foi colônia portuguesa, se desvencilhou de seu Código Penal que penalizava pessoas LGBT em 2015, mas nenhuma proteção foi concedida em relação à orientação sexual ou identidade de gênero, diz o relatório, que também apontou a negação do Estado moçambicano em registar a ONG Lambda Moçambique, que trata dos direitos LGBTs “. 

Lambda está há mais de 10 anos em uma batalha jurídica para ser reconhecida legalmente pelo governo moçambicano, apesar de ser  a primeira associação de defesa de minorias sexuais no país. A atuação da entidade também fez parte da vida de Lara. “Apesar de ser perigoso, eu sempre convivi com pessoas LGBTs, fiz parte da direção da Lambda, que até agora não é assumida pelo governo, não é uma tarefa fácil. A religião influencia ainda mais, principalmente na parte dos evangélicos, eles se acham os donos da verdade e se colocam na posição de Deus. A mãe da minha esposa é evangélica extremista, por exemplo”. 

Ativistas da Lambda marcharam em 8 de março de 2018 na cidade de Nampula em Moçambique reivindicando direitos à população LGBTQIA+ | Foto: Lambda/Reprodução Twitter

Para além das violências físicas e verbais, Lara também teve sua liberdade violada pelo Estado moçambicano quando ela foi detida pela polícia apenas por estar junto com a sua namorada, por medo de represálias Lara não pode dar maiores detalhes sobre esse episódio.

O medo de ser agredida ou estuprada impediu Lara de conversar com a família sobre a relação amorosa com a mulher que hoje é sua esposa. O relacionamento começou em 2011 quando sua parceira, que morava na África do Sul com o pai, foi passar as férias em Moçambique, onde a mãe morava. Ela e Lara se conheceram em um aniversário de amigos e começaram um namoro. “Quando a gente já estava bem firmes, aí começaram os problemas, porque a família acha que eu tirei ela da África do Sul, para morar em Moçambique, começam as invasões, xingamentos em redes sociais”.

Desemprego e exclusão social

Lara sempre viveu com a mãe em Maputo, que fez questão que a filha trabalhasse apenas depois dos estudos. Ainda que tivesse uma condição financeira estável ao lado da mãe, Lara nunca conseguiu um emprego no seu país de origem. Ela se formou em Tecnologia da Informação (TI) na capital de Moçambique no início dos anos 2000, fase que também tem recordações dos preconceitos vividos. “Era uma faculdade católica, era comum os professores falarem que a homossexualidade não existia, que a essas pessoas não deveriam ser dados espaços.” 

O desemprego foi outro motivo que levou a empresária a querer deixar o país. “Não tinha como trabalhar, uma pessoa com a minha aparência, não tem como. Eu procurei vários empregos, mas eu sempre andei de cabelo curto, sempre me vesti masculinamente, nenhuma empresa era aberta”, conta. 

A resposta era sempre a mesma, diz Lara. “É sempre um não atrás de não, sabendo que você tem as qualificações para aquela vaga”. De 2000 a 2013, a moçambicana tentou encontrar um emprego, sem sucesso, conseguiu um bico com um amigo em uma empresa que era provedora de internet já em 2013, ano que viria ao Brasil. “Não me despedi de ninguém, contei à minha mãe apenas seis meses depois”, afirma. 

Sem querer dar muitos detalhes do processo que a trouxe à São Paulo, Lara revela que não foi uma migração rápida. “Teve todo um preparo, conhecer o Brasil, saber como é que são as coisas aqui, mas tudo isso também por causa da novela A Senhora do Destino“Eu assisti e criei essa curiosidade e vontade de vir para cá”.

“Não conhecia nada, não tinha lugar para ficar”

Ao chegar sozinha ao Brasil em setembro de 2013, Lara ficou em um hotel no centro de São Paulo e depois foi à Missão Paz, instituição de apoio e acolhimento a imigrantes e refugiados na cidade de São Paulo. “Não conhecia nada, não tinha lugar pra ficar, o primeiro lugar que eu fiquei foi em um hotel lá na República. Depois eu fui pra Missão Paz, eles pediram o refúgio, fizeram todo o trâmite e tive que sair”, lembra.  

Em São Paulo, a empresária esperava que conseguiria um emprego com base em sua formação, o que não aconteceu, além disso ela demorou quatro anos para ser registrada como refugiada no Brasil. “Fiquei mais de seis meses desempregada. Eu procurei com base na minha formação, mas eu não consegui. Pediam na época a validação do diploma e eu não tinha condições para fazer essa validação pelo Acnur, que começou só em 2015. Então, eu tive que procurar emprego com base nas minhas necessidades. O primeiro foi como camareira em um hotel na Paulista”. 

Apesar das dificuldades encontradas em um novo país, Lara diz que o racismo passou a fazer parte do cotidiano de seu trabalho no hotel em que trabalhavam outras duas mulheres africanas. “Falavam que nós éramos sujas”, diz. O que a fez sair desse emprego em busca de algo melhor. “Tentei trabalhar em um call center, passei a trabalhar como corretora de imóveis, também saí e vi que enquanto eu não tivesse um diploma eu não ia conseguir trabalhar naquilo que eu gosto. Então fiz uma faculdade em TI de novo e terminei em 2019”.

Independentemente das adversidades, a moçambicana afirma que as expectativas com o Brasil foram correspondidas. “Eu nunca tive problemas com ninguém em relação à minha sexualidade aqui. O simples fato de haver respeito para mim, eu acho é a base, coisa que eu nunca tive, respeito por aquilo que eu sou”.  Ainda assim,na visão dela a intolerância vem crescendo no país. “Agora as pessoas estão mais intolerantes com os imigrantes e refugiados, principalmente por causa da pandemia, dizem que estamos roubando os empregos dos brasileiros, o que não corresponde à verdade. Imigrante e refugiado trabalha naquilo que tem, é que nem comida, a minha mãe me ensinou a comer aquilo que tem”.

Em 2017 uma nova barreira se impôs na vida de Lara Ela foi atropelada por um carro enquanto ia ao trabalho quando já estava se graduando, trabalhava na sua área e vivia com sua esposa que havia vindo morar com ela em 2015. “Não tinha como ela parar de trabalhar para cuidar de mim, a minha mãe veio e ficou esse tempo todo até eu me recuperar e sair da cadeira de rodas, me cuidei pelo SUS (Sistema Único de Saúde)”.

Os anos se passaram e Lara decidiu sair da área da tecnologia e abrir uma mecânica de carros. Ela gerencia uma equipe e tenta empregar aqueles que, como ela, tiveram que sair de seus países. “Tenho aqui um refugiado da Guiné-Bissau”, conta. Hoje ela sonha com a casa própria para viver com a esposa e o filho de um ano que nasceu de inseminação artificial. 

Refúgio e Migração

Lara Lopes faz parte do programa Refúgio e Migração desenvolvido pelo Sesc São Paulo, voltado e protagonizado para e por imigrantes e pessoas em situação de refúgio desde 1995, por meio de um convênio entre Sesc, Senac, Caritas e o ACNUR. O projeto desenvolve ações de integração para pessoas em situação de refúgio e solicitantes de refúgio e está realizando o evento Culturas em Trânsito: Refúgio e Migração, ele começou em 10 de junho e vai até 19 de julho de 2021. 

Entre as ações do programa está a realização de cursos de português, como explica a assistente técnica da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, Ioná Damiana de Souza. “Quando você chega num país novo e não domina a língua, que é um capital, um marcador social, traz mais vulnerabilidade para a condição da pessoa. Por meio do curso de português os imigrantes e refugiados conhecem outras pessoas em situação de refúgio e vão abrir essa rede de contatos e tem também mais preparo para conseguir trabalho”.

Com a pandemia da Covid-19, a situação dos refugiados, que já é difícil, se agravou “Num geral pode demorar anos pra tirar um Registro Nacional de Estrangeiros (RNE), o documento de refúgio oficial. Neste momento estamos com um processo muito mais moroso na Polícia Federal para a aquisição desses documentos e ao mesmo tempo não temos uma operação de reversão para as pessoas que querem voltar aos seus países por causa da pandemia”, diz Ioná. 

Outra dificuldade apontada por ela é a validação dos diplomas. “Eu já vi pessoas chegarem aqui, com uma super formação, mas o processo de reconhecimento, de validação de diplomas é muito burocrático, a gente não tem facilidade de conseguir isso.”

Por conta das mudanças nas regulamentações de fronteiras durante a pandemia, Ioná conta que os registros deixaram de serem feitos corretamente. “A grande perversidade que tem nessa situação, é que as pessoas não deixam de migrar. A gente só deixa de registrar que elas estão. Na ausência desse registro, não temos condições de dar assistência”.

Foto de Capa: Rafael Yamamoto

Acesse aqui a reportagem no site da Ponte Jornalismo.

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