Descrever a Jup do Bairro é talvez o maior desafio que uma pessoa pode se deparar. Para si e para nós, se apresenta como “um corpo sem juízo, que não quer saber do paraíso, mas sabe que mudar o destino é o seu compromisso”.
Ela é precisa no prefácio, mas a alegoria artístico-filosófica não me parece suficiente.
Independente do que cada um acredita, não temos como negar que algumas pessoas carregam em si um poder de bem-estar e acolhimento. Aura, energia, elã, vibe, iluminação, cada um dá uma nome para essa sensação que nos preenche na presença de determinados indivíduos.
E Jup é assim, em questão de segundos você se sente à vontade para chamá-la de amiga, e é como se a conhecesse a vida toda. Com sorriso largo e voz calma, contraponto à sua figura contestadora e afrontosa dos palcos, a rapper começa uma entrevista já pedindo para ser contida, “vai me interrompendo também, por que se me deixar eu vô indo”, diz.
Conheço a artista a alguns anos, primeiro de eventos e boates, depois da sua participação junto com a amiga e parceira musical Linn da Quebrada na I Semana de Visibilidade Trans da Casa 1, em 2018. Como sempre fico meio enlouquecido de um lado para o outro, nunca me permiti sentar e trocar o quanto gostaria com a cantora. Por isso, fui me beneficiando de sua boa energia em doses homeopáticas.
Até que em maio de 2020, no começo da pandemia do coronavírus, consegui tirar duas deliciosas horas para entrevistá-la. Os processos novamente me atropelaram, e o papo transcrito ficou guardado, me assombrando, como um tesouro escondido que precisava ser visto por todo mundo. Mas em tempos imediatistas, não via sentido publicar uma entrevista feita há meses.
Até que resolvi reler o material, e me dei conta de que no caso de pessoas grandiosas como a Jup, o tempo, tão implacável com todo mundo, não tem muito poder. Suas falas e seus pensamentos são daqueles eternos, que vão, com toda certeza, atravessar gerações. Por isso, resolvi compartilhar com quem quiser ler.
Menina Pastora do Valo Velho
Nascida e criada no Valo Velho, bairro do distrito do Capão Redondo, zona sul da cidade de São Paulo, a multiartista até ensaiou uma mudança, mas ali decidiu permanecer. “Eu tenho Jup do Bairro não é à toa, eu sou muito bairrista, gosto muito da minha quebrada, da relação que eu tenho com ela também. Já tentei morar no centro, na Paulista, mas acredito que o meu lugar é aqui, e às vezes me vem até uma questão de uma certa missão, sabe? do que eu posso trazer para cá, do que eu posso construir aqui”, explica.
O sentimento missionário, vem em partes da criação religiosa, em partes dos estigmas e problemas da região, que ao longo dos anos 90 e 2000, era chamado de “triângulo da morte” (Capão Redondo, Jardim Ângela e Jardim São Luís) pela imprensa devido à violência da área.
Apesar da luta de quem vive ali e o destaque que ganhou no país e no mundo graças ao rap e uma diversidade de projetos culturais e educacionais, o bairro ainda tem problemas estruturais graves. Segundo o Mapa da Desigualdade de 2020, publicado pela Rede Nossa São Paulo, o Capão é o terceiro bairro mais populoso da cidade, com 293.651 habitantes. Se na média da cidade vive-se 68 anos, no Capão, não se passa de 61 anos e sete meses. No rico e tradicional Jardim Paulista, a média de vida é de 81 anos e cinco meses.
Outros dados também dão conta de mostrar os problemas: o bairro conta com 1,02 equipamentos de cultura por cem mil habitantes, enquanto o bairro central do Bom Retiro acumula 23,41 aparelhos culturais. E quando o assunto é museus, salas de show e concertos, o Capão não chega pontuar, marcando zero.
A taxa de emprego formal é de parcos 0,55% e a remuneração mensal não chega à metade do valor da média da cidade. Somando todos os indicadores coletados, o Capão Redondo aparece dezesseis vezes entre os piores índices, apontando que está entre os 10 bairros que mais sofrem com a desigualdade em São Paulo. Não por acaso, 53% de seus e suas residentes é negra e 46% jovens de até 29 anos.
Jup ressalta ainda que o Valo Velho, por ser dividida com o município de Itapecerica da Serra conta ainda com uma área rural: “é um bairro no meio onde não tem nada além de casa sem reboco e animais, e animais que eu digo é cavalo, vaca, então é uma coisa meio rural e quebrada. Eu sou uma ‘cyber-gueta-caipira'”, destila.
Já a criação religiosa rende também boas histórias, como por exemplo a glossolalia. “Desde a minha infância eu tive uma base religiosa cristã por parte da minha família, então eu passei a minha infância, até começo da adolescência, frequentando igreja arduamente. Eu falava até em línguas. Eu era a própria menina pastora”, conta rindo, se referindo à carioca Ana Carolina Dias, que aos sete anos viralizou fazendo uma apaixonada pregação.
Da família não veio só a influência religiosa, mas também seus principais valores. Jup é filha de pai que, como muitos brasileiros, trabalhou com dezenas de ofícios para sobreviver ao longo da vida e mãe costureira, “melhor costureira aqui que eu conheço e onde eu peguei a minha maior referência de moda estética também” enfatiza, contando que no momento da conversa feita por videochamada, a mãe operava o maquinário ao lado.
“Moro com a minha mãe, a gente tem um quintal gigantesco inclusive, super arborizado e a nossa relação sempre foi muito boa, eu sempre fui muito próxima do meu pai, a gente conseguia trocar e conversar de uma forma muito linear, muito sincera, muito honesta”, conta se referindo ao pai que faleceu quando ela tinha 12 anos, o que gerou um impacto muito grande em sua vida. “Foi quando tudo mudou, foi um divisor de águas na minha vida e eu acabei até me rebelando de alguma forma, contra o sistema sabe?”, indaga.
E segue falando da matriarca: “minha mãe sou eu cis, até a voz, as vezes a galera liga aqui, pensa que tá falando comigo mas tá falando com ela porque são os mesmos trejeitos, a fala é muito parecida também, o repertório de palavras. A gente sempre teve um entrosamento muito bom, então isso foi sempre muito importante para a execução de quem eu sou, sabe? Porque apesar deles virem de outro tempo de uma outra cabeça, eu acho que a gente sempre teve negociações e entendimento”, explica, reforçando a importância do diálogo.
“Uma coisa que eu gosto de falar com franqueza é que os nossos pais, eles não são nossos inimigos, sabe? Até as pessoas que estão ao nosso redor, às vezes nos oprimindo, os nossos vizinhos, eles não são nossos inimigos, eles também fazem parte de uma engrenagem que é extremamente opressora que faz com que eles reajam dessa maneira”, explica, não minimizando o impacto da LGBTfobia cotidiana. “Claro que não tô tirando o lugar do quanto fere, o quanto é doloroso, e tirando a responsabilidade deles, mas é muito importante a gente saber quem realmente é nosso inimigo para a gente poder ir para cima sabe? Para a gente entender que o Estado faz com que essas pessoas pensem assim, que o Estado faz com que essas mortes sejam financiadas, e que essas pessoas acabam não tendo empatia com esses corpos”, defende.
“Então, é importante a gente ir nomeando justamente para que a gente não sofra, ainda mais, com as possibilidades do ser do imaginário dessas pessoas. Então eu sempre tentei negociar muito com eles [os pais], buscar entender”, conta Jup, lembrando ainda que na maioria das vezes o preconceito vinha de fora de casa. “Acho que eu sofria mais com os pais de amigos meus do que meus próprios pais. Nunca entendia o porquê ia só uma vez na casa das pessoas e ninguém me chamava mais, eu falava: ‘nossa será que eu sou chata, mas todo mundo finge tão bem gostar de mim?’. Depois fui entendendo que a galera às vezes não me cumprimentava na rua porque tava com seus pais, então não queria demonstrar que sentia um afeto por mim”, diz.
Degradê da opressão que tem CEP
Vivendo no mesmo bairro em que nasceu, a artista percebe que muitos e muitas da sua idade fizeram o mesmo, mas que as coisas mudaram significativamente. “Hoje eu sou uma referência para minha quebrada, eu consigo demonstrar uma outra possibilidade de vida, inclusive de existência”, aponta.
O mesmo, no entanto, infelizmente não pode ser dito do restante da cidade em que vive, e também do país, arrisco dizer. “Aqui eu nunca sofri nenhum tipo de violência direta, de me xingarem na rua, mas quando eu faço o eixo da minha quebrada até o centro, eu vou sentindo um degradê da opressão, sabe? Quando eu chego na Estação Capão Redondo eu me sinto segura, vou chegando em Santo Amaro já começam os olhares, quando chego em Pinheiros já começo a ouvir um ‘viado! traveco! não sei o quê’, relata marcando o trajeto que vai da linha Lilás do metrô, passando pela linha Esmeralda do trem, culminando na elitizada linha Amarela do metrô, que passa por estações como Pinheiros, Higienópolis e Oscar Freire.
“E quando chego no centro é onde me dá as maiores disforias de até não-pertencimento, porque até a gente está entre as nossas, o centro é uma grande caixa de pandora, onde você tá indo se encontrar com uma amiga mas pode ser agredida qualquer momento, como aconteceu com várias amigas minhas, sabe? Como verbalmente aconteceu comigo também”, detalha. E a sensação de Jup também se comprovam nos dados, o mesmo Mapa da Desigualdade já citado, aponta que os bairros da Liberdade, República e Sé, concentram a maior quantidade de ataques LGBTfóbicos da cidade, com 10 vezes mais casos cada, do que a média da cidade. O Capão Redondo por sua vez, não tem casos suficientes para entrar no levantamento.
Foi e é a partir dessas vivências que a rapper busca responsabilizar e entender a opressão que corpos como o seu sofrem. “Acho que é isso que eu faço dentro do meu estudo performático e artístico: realmente desvendar quem plantou a sementinha desse apocalipse que já aconteceu, né? Porque a galera tá falando agora que o mundo tá acabando e não sei o que. Sinto informar, mas o mundo já acabou faz tempo, a gente já tá andando sobre os destroços há muito tempo”, aponta, se referindo em especial sobre as desigualdade e violências do país.
“A Casa 1, por exemplo, é um projeto que não deveria existir, o Aparelha Luzia é um lugar também que não deveria existir, sabe? Esses lugares acabam existindo como forma de acolhimento de fato, para um sistema que nega a existência de pessoas. São ideias que realmente não deveriam existir, mas ainda bem que existem, porque aí com isso a gente consegue ter um frescor de possibilidade, um sentimento de que a gente consegue fazer alguma coisinha acontecer aqui sim”, explica, se referindo à Casa 1, um centro de acolhida e cultura LGBT+ e ao quilombo urbano fundado pela hoje deputada estadual Érica Malunguinho. Ambos espaços localizados na região central de São Paulo.
Nesse exercício de reflexão e entendimentos, invariavelmente chegamos à eleição presidencial de 2018. “Tudo é muito contraditório e uso sempre como exemplo a eleição do Bolsonaro. A gente tava caminhando, a gente tava se achando as próprias Priscillas Rainhas do Deserto, falando, ‘eita, porra, agora vai ser festa na rua todos os dias e não sei o que’, mas esquecemos que quando a evolução caminha, os avanços caminham, o passado caminha também, caminha junto por medo de perder privilégios, por medo de perder o posto de segurança, por medo de reconhecer esse estranho como possibilidade né?”, aponta, indo além: “é o medo de humanizar esses corpos abjetos, é o medo desses corpos abjetos se tornarem corpos objetos, inclusive”, finaliza.
Representatividade Una
Em relação aos avanços, Jup consegue visualizá-los e senti-los, mas é bastante cautelosa e crítica com a forma como o movimento canta vitória. “Estamos fazendo barulho, nosso caminhar, o caminhar dos nossos ancestrais estão fazendo barulho, sabe? Então, é muito importante a gente reconhecer esses dados também, mas sem romantizar, no lugar de ‘tá vendo? Tem travesti apresentando o programa. Tá vendo? tem uma Drag Queen no Faustão e não sei o quê’, precisamos lembrar que é uma. Eu não acredito na representatividade una, porque ela é falha. Porque a partir do momento que a gente representa e pode impulsionar o imaginário, acaba deixando outras pessoas estáticas pensando “Ai, a Jup do Bairro tá ali, então posso ficar aqui quietinho no meu cantinho que tem alguém fazendo por mim’. Nomear essas representatividades unas é muito perigoso”, aponta.
O gênero e o privilégio também surgem na reflexão da rapper: “A gente tem que tomar muito cuidado principalmente no reconhecimento dos nossos privilégios, reconhecendo também que o acesso é um privilégio, sabe? Porque quando a gente vê a ‘grande invasão LGBT’ , muitas vezes ela acaba sendo feita por homens, entende? De que diversidade a gente está falando de fato?”, indaga, embrenhando para dois temas bastante espinhosos: empatia e lugar de fala.
“Um exercício que eu tenho feito muito de um tempo para cá é parar de me colocar no lugar das pessoas, porque acho que isso é, além de extremamente brutal, cego. Acho que a gente não deve se colocar no lugar das pessoas, a gente deve se colocar no nosso lugar e saber como a gente deve exercer a partir do nosso papel, não do papel da pessoa”, reflete, completando. “Cito sempre a Djamila [Ribeiro], que aponta que o meu local de fala não é necessariamente o seu local de silêncio, sabe? Todo mundo pode falar sobre negritude, todo mundo pode falar sobre gênero, sexualidade, todo mundo pode falar sobre tudo, mas o que é importante a gente reconhecer é que eu falo do meu lugar e você fala do seu. Que não dá para atropelar vivências. E é fundamental a gente colocar isso, porque tudo virou ‘não é meu local de fala, não é meu local de fala’, mas a gente pode falar, porque o que acontece fora do nosso corpo, da nossa casa, dos nossos templos, é problema nosso sim! As pessoas em situação de rua são um problema nosso, viver em um país que mais mata pessoas trans e travestis é problema nosso, sim. Precisamos saber sobre tudo isso para saber como nos aliarmos, para saber como a gente pode evitar esses danos que é a maior doença social, essas mortes e esses planos genocidas”, afirma, sem em nenhum momento levantar o tom de voz.
Como já deu para perceber, o grau de instrução e repertório da rapper é de fazer inveja a qualquer doutorando de gênero e políticas públicas, mas se engana quem acha que vem da academia. “Eu acho que a periferia tem um dispositivo de intelectualidade que muitas vezes não é acionado, mas a gente consegue ter uma capacitação sem perceber, justamente pelas necessidades. Meu aprendizado veio através da necessidade de eu ter que bater de frente com uma pessoa, com quem me violenta, com quem vem me atingir com maldade, com quem tenta me ferir”, explica, ressaltando a importância de se ter referências.
“Sempre gosto de colocar, de nomear pessoas e falas, para que eu não me aproprie intelectualmente e que a gente também consiga gerar esse imaginário de referência, sabe? Outro dia estavam me fazendo perguntas no Twitter sobre amor e a galera sempre vem com uma coisa mais debochada, porque eu tenho um apelo humorístico nas minhas redes, mas daí veio uma pergunta onde uma menina citou a Helena Vieira. Foi algo muito pequeno, mas fiquei tão emocionada. Porra, é uma gata que eu assisto, que eu vejo, que faz parte do das minhas referências de criação de pensamento e isso é muito importante, sabe? Então, quando a gente oraliza essas pessoas, esses corpos, principalmente em vida, eu acho que é uma forma de imortalizar de alguma forma”, conta, se referindo à escritora transfeminista paulista, atualmente radicada em Fortaleza, para de novo, retomar suas preocupações com as políticas públicas ineficazes.
“A periferia, ela não aciona esse esse chip de intelecto justamente porque não interessa a classe média, não interessa à branquitude, porque com esse chip inativo é mais fácil em se criar serviçais, criar uma mão de obra barata. Por isso, quando um um governo conservador domina e é eleito, cortam primeiro a cultura e a arte, porque a partir da cultura e da arte é que se criam novas possibilidades”, afirma, exemplificando: “quando o jovem consegue se reunir em uma roda de ‘freestyle’ tá ali, tá criando o imaginário de ‘opa eu posso ser rapper’, percebe que pode de ir numa fábrica de cultura e pegar no instrumento e falar ‘opa, isso pode ser interessante’, uma gata pode pegar no tecido e falar ‘eu posso aprender moda’. Hoje, tudo caminha para que isso não aconteça, para que se continue essa espécie de escravidão sofisticada, a manutenção desse racismo, que muda suas nuances para que não pareça tão dolorido e fique a sensação de que ‘não somos tão cruéis com vocês'”, aponta.
E sobre tudo isso, pergunto enfim se existe espaço para mudança e a resposta é precisa: “Eu acho que não, sinceramente, e é sim sendo pessimista, mas sem ser derrotista, o que é muito diferente. Mas eu não boto mais fé nesse mundo aqui não, porque ele continua nos maltratando, ele continua nos oprimindo e eu acho que o que muda é a sutileza com que essas ações acontecem”, conclui.
E se você chegou até aqui, percebeu que pouco foi falado sobre o trabalho da Jup em si, sua rica produção audiovisual, suas músicas, seu processo de criação e execução, antes e durante a pandemia do coronavírus, e aí voltamos para o comecinho do texto: essa entrevista foi realizada em maio de 2020 e muita coisa mudou. Jup não tinha lançado o aclamado EP Corpo Sem Juízo, que só aconteceu em junho. Não tinha ganho o prêmio Multishow de Artista Revelação, nem concorria a álbum do ano e artista revelação no Woman Music Awards, entre outros tantos prêmios. Ela também não tinha lançado o maravilhoso clipe de “O Corre”, por isso decidi aqui não falar tanto sobre esse aspecto da sua vida.
Mas deixo uma promessa: conseguir mais duas horas para ouvir a palavra de Jup do Bairro e trazer para você um pouco mais dessa, que é sem dúvidas, uma das maiores artistas da nossa geração.
Foto de capa: cena do clip “O Corre”.