- Vinicius Andrade. Publicado em 3 de agosto de 2022
Às 9h25 do dia 8 de junho de 2022, mais de 200 alunos da Escola de Ensino Médio Padre Coriolano, em Pacajus, Região Metropolitana de Fortaleza, receberam a professora Jhosy Gadêlha, de 34 anos, aos aplausos e gritos pelos corredores estreitos da instituição. A homenagem foi uma resposta ao ataque transfóbico sofrido por ela.
Dois dias antes de ser homenageada, Gadêlha havia ido a uma loja de roupas para comprar uma saia. No local, foi xingada e ofendida pela dona do estabelecimento, com frase como “sua voz é de homem”, “você fez a cirurgia de mudança de sexo?” e “meu filho, porque você fez isso?”. “Nesse momento foi a gota d’água, eu ser questionada pela minha voz, pela minha existência, pela minha luta e a pessoa entrar na minha intimidade”, relata a professora. A cena foi registrada pelas câmeras de segurança do local e publicada nas redes sociais.
A recepção carinhosa dos alunos “foi uma injeção de muita força, de muita empatia e de muito amor”, segundo Gadêlha. Ela ainda recebeu um abraço coletivo de todos eles no pátio do colégio. “Eu precisava demais desse acolhimento e isso me fortaleceu muito para continuar essa luta”, relembra a professora, um mês depois, em entrevista à Diadorim.
Segundo ela, apesar da emoção, aquela atitude dos jovens e crianças não foi uma surpresa. Há sete anos, Jhosy Gadêlha ensina espanhol na instituição, mesmo período em que começou sua transição de gênero. Os estudantes acompanharam de perto o início dessa jornada e foram importantes para o processo. Diariamente, afirma, eles lhe dirigem palavras de carinho e respeito. “Eu não me surpreendi com a iniciativa, porque é o que eu planto todos os dias.”
Para a professora, além de lecionar, a presença de seu corpo naquele espaço é fundamental para criar uma geração sem preconceitos. “Eu não entro apenas para dar a minha disciplina, eu entro para formar os meus alunos em cidadãos, para formar pessoas melhores. E eu consigo, esse gesto foi a prova disso”, afirma.
De acordo com os dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Ceará está entre os quatro estados mais violentos para pessoas trans e travestis. Segundo o dossiê 2021, 22 pessoas transexuais foram assassinadas no estado devido à identidade de gênero só em 2020, o recorde cearense da série histórica até o momento.
‘Conquistei meu espaço’
A quase 1000 km de Jhosy Gadêlha, a professora de língua portuguesa Marcely Dias, 43 anos, também ajuda a mudar a estrutura de ensino local. Primeira mulher transexual de Aquidabã, no interior de Sergipe, a presença dela pelas ruas e em colégios da região, que tem apenas 21 mil habitantes, encoraja a nova geração e subverte o preconceito.
O caminho foi longo para Marcely e ainda é desafiador. Assim que pisou pela primeira vez na instituição, ela teve seu conhecimento questionado e seu corpo julgado — seja pelos próprios colegas de trabalho ou pelos pais dos alunos. “Já passei muitos momentos ruins aqui [na escola] de transfobia, de rejeição e de negação. Não existia leis naquela época, para mim foi extremamente difícil, mas eu conquistei meu espaço aqui na cidade”, avalia a professora.
Há 23 anos no trabalho, ela tenta ressignificar o ambiente escolar e, consequentemente, uma cadeia social. “Ela tem um papel muito importante nessa desconstrução e conscientização da sociedade no geral. Ela ocupar esse espaço dentro da escola é uma representatividade”, comenta Letícia Guimarães, 17 anos, aluna de Marcely no Colégio Estadual Francisco Figueiredo. “É uma forma de os alunos que também são LGBTI+ se sentirem representados.”
Além do símbolo de mudança, Dias se coloca como suporte para alunos que estão conhecendo e amadurecendo sua sexualidade e identidade de gênero. “Ajudar esses estudantes nesse ambiente é uma das minhas principais funções”, ressalta a professora. Infelizmente, o bullying com docentes transgêneros é uma realidade ainda presente dentro das salas de aulas do país. Segundo um estudo realizado em parceria com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/aids (Unaids), 77,5% de crianças e adolescentes transgêneros, entre 5 e 17 anos, foram vítimas de preconceito nas escolas.
Mas para a Letícia Guimarães, a presença de professoras e professores LGTBI+ no ambiente de aprendizado é um instrumento de mudança e conscientização social. “A gente ter uma professora transexual que é a autoridade dentro da sala de aula, acaba inspirando outras pessoas e despertando a vontade de buscar conhecimento e se entender quem você realmente é”, afirma a adolescente.
Para Dias, que é mestre em Educação, isso é uma via de mão dupla, já que por meio da reciprocidade e da empatia ela acaba vivendo momentos especiais com seus alunos. Um deles foi em 2011, e a professora considera uma das situações mais marcantes do seu currículo profissional.
Quando era criança, ela tinha o sonho de ter a boneca Emília, personagem do Sítio do Picapau Amarelo, mas nunca ganhou de presente da mãe pelo fato de ser considerada “menino”. A professora contou isso aos seus estudantes e, após o relato, eles se juntaram e a presentearam com o objeto.
“Me tocou muito, porque são coisas pequenas que mexem com nosso psicológico e emocional e a gente percebe o quanto somos amados nas pequenas situações. Uma história simples do meu passado, e quem realizou esse sonho foram meus alunos”, conta Dias, com a voz embargada.
Currículo escolar
Embora a presença dessas professoras trans em sala de aula signifique um avanço importante de ensino inclusivo, é necessário também que se construam outras ferramentas para reduzir as desigualdades no ambiente escolar. É o que defende a pesquisadora Dayanna Louise, doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e ex-chefe da unidade de educação para as relações de gênero e sexualidades da Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco.
Segundo ela, a escola ainda privilegia a perspectiva de grupos majoritários e reproduz práticas preconceituosas, racistas e classistas.
“A questão é quando a escola transforma essa diferença em desigualdade. É quando o que foge à norma é visto como diferente”, pondera Louise. É essa exclusão, por exemplo, um dos motivos para a evasão escolar de estudantes transexuais e travestis. De acordo com levantamento feito pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil em 2017, 82% das pessoas trans deixam o ensino médio entre 14 e 18 anos.
Entidades e grupos ligados ao movimento LGBTI+ avaliam ainda que houve retrocesso, em 2017, quando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi revisada e suprimiu os termos “gênero” e “orientação sexual” do texto que tem como objetivo nortear os objetivos de aprendizagem para estudantes da Educação Básica no Brasil.
Nos últimos anos, no entanto, políticas afirmativas têm pressionado a mudança nos espaços escolares e possibilitado acessos a pessoas historicamente excluídas do convívio social — seja como professoras ou como estudantes. Em 2018, o Ministério da Educação (MEC) permitiu o uso de nome social nos registros escolares de educação básica — medida que já atendeu mais de 15 mil pessoas na rede pública de ensino.
Para Dayana Louise, a transformação na rede de ensino vai acontecer, de fato, quando o gênero for uma temática “presente em todas as disciplinas que compõem o currículo escolar”. Em Pernambuco, exemplifica a pesquisadora, professores da rede pública são estimulados a revisar na disciplina de Biologia os conceitos em torno dos corpos e reprodução sexual, de maneira a evitar estigmas.
É justamente pelos avanços da luta de pessoas trans e travestis que essas pautas conservadoras ganham força no Brasil, avalia Louise. Mas de acordo com ela, a “revolução” feita por esses corpos avança mais ainda. “A duras custas estamos conseguindo reconstruir esse país que ainda está devastado pelo ódio”, enfatiza.