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Sapatão não-bináries: não é só sobre amar mulheres

Pessoas que não se identificam nem como homem, nem como mulher, mas que se reconhecem como lésbiques ou sapatão

Por Helena Bertho

Lésbicas são mulheres que se relacionam romântica ou sexualmente com mulheres, né? Já pessoas não binárias são aquelas que não se identificam nem como homem, nem como mulher. Então, se uma pessoa não binária não é homem, nem mulher, como pode ser lésbica? 

Fizemos essa pergunta para quatro pessoas que se identificam como sapatão ou lésbiques não-bináries, que respondem a partir de suas vivências e identidades: Bê Carobinieri, 30 anos, psicólogue, sapatão agênero; Adriana Azevedo, 34 anos, pesquisadore, sapatão não-binárie; Marte Wirthmann, 19 anos, estudante e membre do Arquivo Lésbico Brasileiro, sapatão não-binárie; e Formigão, 30 anos, estudante de história e poeta, sapatão trans-masculino e membro do Arquivo Lésbico Brasileiro. 

Mas antes de chegarmos às  respostas, sugerimos que, para ler a reportagem, você desapegue dos conceitos que acha que conhece e se abra para novas visões sobre sexo, gênero e orientação sexual. É hora de olhar para as sapatão, as caminhoneiras, não só como uma orientação sexual, mas como uma forma de ser e existir. Ah! E caso você não conheça a linguagem neutra, nessa reportagem usaremos pronomes como elu e adjetivos com o final neutro (e), seguindo o desejo de cada entrevistade.

SEXO NÃO TEM NADA A VER COM CULTURA?

Você já deve ter ouvido que sexo se refere à biologia, ao corpo de “fêmea” ou “macho”, enquanto gênero trata dos elementos sociais que identificam o homem e a mulher na nossa sociedade que se divide, no geral, entre essas duas opções. Assim, uma pessoa pode nascer com pênis (sexo masculino), mas se identificar com tudo aquilo que a sociedade considera feminino, sendo portanto uma mulher. As pessoas que não se identificam com  gênero atribuído a elas ao nascer são trans, já as que se identificam, são cis. 

Já a orientação sexual trata da forma como as pessoas se relacionam afetivamente, romanticamente ou sexualmente. Comumente, chamamos de heterossexual quem se relaciona com alguém do gênero oposto; de gay ou lésbica quem se relaciona com alguém do mesmo gênero; e de bissexual quem se relaciona com ambos os gêneros, etc. 

Mas tem muita gente que estuda esses assuntos e diz que as coisas são mais complexas que isso e que o sexo também é uma construção social e cultural, como a teórica Judith Butler ou a bióloga Anne Fausto-Sterling (nessa entrevista aqui, ela fala exatamente disso). 

Para nosses entrevistades, é essencial que a gente faça esse questionamento. “Sexo e gênero não são dados universais ou naturais, são categorias construídas e consolidadas em diversos contextos. Quando a gente pensa em sexo e gênero tem que pensar nos processos colonizatórios em que se construiram. O corpo também é inventado na cultura”, diz Marte Wirthmann. 

ENTENDENDO A NÃO-BINARIEDADE

Binário é aquilo que é definido por apenas dois critérios. Tanto o gênero, quanto o sexo, costumam ter uma definição binária: ou você é homem, ou mulher. “É essa forma de enxergar o mundo sempre entre opostos”, diz Bê Carbonieri. No entanto, as coisas não são simples assim. Do ponto de vista biológico, existem, por exemplo, as pessoas intersexo, que têm características físicas (genéticas, hormonais ou nos órgãos reprodutivos) de ambos os sexos. 

E no caso do gênero, existem muitas pessoas que não se identificam nem com o que a sociedade diz que é masculino, nem com o que é feminino. São as pessoas não-binárias, que ficam dentro do enorme guarda-chuva “trans”, e dentro da não-binariedade existem infinitas possibilidades de ser.

Entre as duas pontas, do ideal do masculino e do ideal do feminino, existem inúmeras formas não-binárias de existir. Formigão se identifica como trans-masculino. E apesar do “masculino”, sua identidade é não binária, ele não é um homem trans. “A transmasculinidade é a identificação com as masculinidade parcial ou total, ou até mesmo uma outra configuração de masculinidade”, explica. Isso quer dizer que ele foi definido como mulher ao nascer, mas não se identifica com o feminino. Por outro lado, a masculinidade padrão, a dos homens cis, também não são para ele. Assim, Formigão não é um homem trans, mas sim uma pessoa trans que se identifica mais com o masculino. 

Algumas pessoas ainda circulam entre essas possibilidades de identidade de gênero, o que é chamado de gênero-fluído. Isso quer dizer que essas pessoas não se fixam em uma identidade de gênero, mas variam entre duas, três ou várias possibilidades, de acordo com sua vontade. E outras pessoas se colocam completamente fora da lógica binária. É o caso de Bê, que é agênero, ou seja, não se identifica com gênero nenhum. “Eu não sinto necessidade de determinar gênero, eu estou totalmente fora disso, é uma total neutralidade”. 

Isso vai muito além da aparência física. Algumas pessoas não-binárias podem ter uma aparência andrógina, outras não. Assim como algumas podem optar por fazer cirurgias ou hormonização, ou não.

SER SAPATÃO É MUITO MAIS DO QUE SE RELACIONAR COM MULHER

Ok, até aqui tudo bem. Mas e a questão sobre ser lésbica e não-binárie? Para começar, vale contar que todes entrevistades mencionaram uma teórica feminista francesa, Monique Wittig, que disse nos anos 70 que: “As lésbicas não são mulheres”. 

“Hoje a gente entende que quando ela diz isso é sobre a existência política. Não ser mulher é escapar das relações de poder com os homens, escapar das relações subalternas. Os encontros afetivos entre essas mulheres têm uma potência política. Numa sociedade onde as mulheres são subalternizadas, se colocar de fora desses vínculos seria um ato político fundamental”, explica Marte sobre a lógica da frase de Wittig. Mas elu também diz que a frase da teórica foi questionada diversas vezes, por reforçar a binariedade e  uma ideia padrão e única do que é ser mulher.

Marthe Wirthmann, sapatão não-binárie. Foto: Arquivo pessoal

Para Adriana Azevedo, porém, a fala de Wittig traz outro significado e ela estaria falando que as sapatão (as lésbicas que não performam a feminilidade) não são mulheres. “[É sobre] A categoria sapatão como um conceito político que também diz respeito a uma identidade de gênero”, escreve. E ela dá como exemplo as “butches”, da cultura estadunidense, ou as caminhoneiras, do Brasil, lésbicas que se posicionam no mundo de maneira muito mais masculina, num lugar fronteiriço do gênero, do que seria mulher ou homem. 

Foi conversando sobre essa frase com seu orientador no doutorado que Adriana começou a refletir sobre a própria identidade. “Eu não me indetificava como uma pessoa cis, mas ao mesmo tempo eu me identificava ainda como uma sapatão não-binárie. Comecei a pensar essa não-binariedade como uma possibilidade de uma identidade que se acopla a outra. Por que uma coisa tem que anular a outra?”. 

Adriana explica que a identidade é indissociável da experiência, do corpo, da socialização que teve e de tudo que viveu. E suas palavras encontram eco com todes entrevistades. Como nesta fala de Bê: 

“Nos meus 29 anos, mesmo não sendo uma mulher, eu tive uma experiência na sociedade enquanto sapatão. Muitas pessoas reduzem sapatão a duas mulheres, ambas com vaginas, se relacionando afetiva e sexualmente. Mas na minha experiência pessoal eu vivi algo diferente. A sociedade me atravessou como sapatão desde criança. Muito antes de andar de mãos dadas com mulher na rua, as pessoas gritavam pra me ofender, me chamando de sapatão. Sapatão pra mim, muito mais do que com quem eu me relaciono, tem a ver com como eu fui socializada, minhas pautas políticas, a comunidade onde eu cresci e me formei”. 

O que se complementa com o que escreveu Adriana: “Sapatões não existem só em par, mas existem também em suas existências livres, que navegam no entre-lugar dos binarismos engessados. Daí violências nos banheiros, o estupro corretivo, a invisibilização se dar no cinema, na mídia, nas ruas, sobretudo em relação a esses corpos”. 

Adriana Azevedo, Sapatão não-binárie. Foto: Arquivo Pessoal

E Marte ainda lembra que, mesmo que você seja cisgênero (ou seja, se identifique com o gênero que escolheram para você), você passou por todo um processo de se tornar quem é.

Vale lembrar que a maioria das sapatão não-bináries viveram uma parte de suas vidas sendo reconhecidas e se reconhecendo como mulheres lésbicas. “Meu corpo foi construído socialmente como um corpo de mulher. Mas ao mesmo tempo, quando a gente passa a pensar ativamente sobre isso, a gente começa a ter uma percepção de que a socialização não é só uma coisa que chega de fora no meu corpo”, diz Adriana. 

SAPATÃO-NÃO-BINARIE

Ser sapatão é, portanto, mais do que falar da orientação sexual, da forma de se relacionar. No entanto, aqui no Brasil, o termo é usado não só como sinônimo dessa foram de se identificar, mas sim de maneira mais ampla e é comum que muitas mulheres cisgênero ou transgênero lésbicas se identifiquem como sapatão. Por isso, o uso do termo composto: sapatão não-binárie ou, no caso de Formigão, sapatão trans-masculino. 

São termos que trazem em si não só a identidade de gênero das pessoas, mas também algo de sua experiência de vida, de sua socialização e também de sua afetividade. Mas veja só, nem todes sapatões não-bináries ouvides pela reportagem se relacionam com mulheres. Bê, por exemplo, é casade com outra pessoa não-binária. 

O PROCESSO DE SE ENTENDER SAPATÃO NÃO BINÁRIA

No mundo binário em que vivemos, é claro que se entender não-binárie foi um processo para todes entrevistades. Ao nascer, Bê, Adriana, Marte e Formigão foram definides como mulheres. Depois, se entenderam como lésbicas. Mas todes sempre tiveram alguma questão com a identificação como feminino, apesar de por muito tempo nem conhecerem a não-binariedade como uma identidade. 

“Assim como quando eu me descobri sapatão e não encontrava informação em lugar nenhum, o mesmo foi com a identidade. Eu tinha duas opções: ou ser mulher ou um homem trans. E me sentia perdida”, conta Bê. 

Foi há um ano que uma pessoa lhe falou sobre não-binariedade e Bê foi pesquisar sobre o assunto passando a construir sua identidade. Para Marte, o processo foi parecido. Depois de um tempo de incômodo, entrou em contato com a não-binariedade e entendeu que se identificava. 

Já Adriana viveu um processo mais longo, pois estuda gênero. “Essa inquietação de gênero sempre esteve comigo e, quando a discussão sobre transgeneridade começou a se tornar mais pública no Brasil, eu comecei a me questionar sobre isso. Mas também nunca senti necessidade de passar por processos pessoais e identitários que se identificassem muito com uma transição binária. Nunca me reconheci como homem trans”. Quando o debate sobre não binariedade chegou ao Brasil, elu foi entendendo sua identidade e passando a se posicionar assim. 

Para Formigão, porém, o processo todo trouxe algo diferente: sempre houve uma identificação com algo do masculino, mas não com a masculinidade que predomina na sociedade. No começo, se posicionava como uma lésbica masculina. Depois, estudando sobre o conceito de butch, entendeu a possibilidade de se posicionar no masculino, ainda fora da binariedade. “E decidi me posicionar assim no mundo, como um sapatão e não uma sapatona”. 

Formigão, sapatão trans-masculino. Foto: Andreia Franco

IDENTIDADES E SEXUALIDADES SÃO MÚLTIPLAS 
Apesar das semelhanças nas trajetórias, as identidades sapatão não-bináres são múltiplas, afinal, qualquer identidade é única. Processos de hormonização ou procedimentos no corpo? Algumas pessoas podem querer fazer, outras não. Se relacionar com pessoas binárias ou não-binárias? Os desejos também são diversos. 

Adriana conta que se relaciona com uma mulher lésbica e que, quando se posicionou como não-binária no mundo, a sexualidade de sua companheira foi questionada. “Veio um debate, de que ela não podia mais se posicionar como lésbica, uma vez que eu não me identificava como mulher. Eu acho que isso vai muito de relação para relação, de pessoa para pessoa”, conta. Para ela, o debate sobre a sexualidade das pessoas não deve ser centrado em com quem elas estão se relacionando, mas sim em como a pessoa se define. “A gente tem que respeitar a identidade de cada um e acho que isso pode fomentar debates mais complexos sobre sexualidade. Sexualidade é uma coisa muito complexa. Seu desejo é muito pessoal, da mesma forma que o gênero é muito pessoal”. 

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Revista feminista independente, que respeita e valoriza a mulher em toda a sua diversidade. Nasceu em 2015 com um financiamento coletivo e também lançou as campanhas de conscientização e luta contra o machismo, como #MachismoNãoÉBrincadeira, Carnaval Sem Assédio e #VamosMudarOsNúmeros. O conteúdo d’AzMina é livre de direitos autorais e reproduzido aqui no site da Casa 1 com os devidos créditos.

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