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Tinder faz campanha contra LGBTfobia, mas continua a banir perfis de pessoas trans

Agência Pública ouviu relatos de pessoas que dizem ter tido suas contas bloqueadas pelo algoritmo do app de paqueras apenas por suas identidades de gênero

Dar match. Arrastar pro lado. Desfazer o match. Dar um super like. Marcar um date. Um vocabulário ‘descolado’, criado em aplicativos de encontro, que acabaram se popularizando e se expandindo pro dia a dia dos jovens. Assim como os neologismos, a prática de utilizar aplicativos de relacionamento para conhecer novos parceiros se tornou comum. O Brasil é o terceiro país do mundo em número de usuários do Tinder, um dos apps de relacionamento mais populares. Utilizado por pessoas de diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, o Tinder vêm sendo acusado por usuários de não oferecer o mesmo tipo de tratamento para todos. A Agência Pública ouviu relatos de pessoas trans que teriam sido banidas do Tinder por um único motivo: transfobia.

Estas exclusões estariam ocorrendo de forma compulsória, segundo os relatos, há pelo menos seis anos no Brasil, sem que a plataforma esclareça o motivo do bloqueio ou dê a chance da usuária ou do usuário apresentar algum tipo de defesa antes de ser banida. As pessoas ouvidas pela Pública relataram que foram excluídas automaticamente do aplicativo porque tiveram seus perfis denunciados por vários usuários apenas por suas identidades de gênero. Isso acontece porque o algoritmo do aplicativo permite a exclusão automática de um perfil que receba muitas denúncias.  

O Tinder não oferece atualmente nenhuma opção em seu app que impeça usuários de serem banidos injustamente. Não há no aplicativo, tampouco, opções disponíveis que permitam denunciar o perfil de um usuário por sua identidade de gênero. As “Regras da comunidade“, são claras: “Se você for honesto, educado e respeitoso com os outros, será sempre bem-vindo aqui. Se você decidir não ser, talvez não dure muito tempo. […] Se você violar qualquer uma dessas políticas, poderá ser banido do Tinder. Sério, não nos faça deslizá-lo para a esquerda — pois não há volta depois que o fizermos. Recomendamos que você denuncie qualquer comportamento que viole as nossas políticas, além de conferir as nossas Dicas de Segurança.”

As categorias sob as quais as denúncias podem ser apresentadas incluem: “Nudez/Conteúdo sexual; Assédio; Violência e agressão física; Discurso de ódio; Informações privadas; Spam; Promoções e convites; Prostituição e tráfico; Golpes; Falsificação de identidade; Menores [de idade]; Violações de direitos autorais e marcas comerciais; entre outros”. Apesar disso, segundo Adda Lygia Rissope, designer de moda que usa o Tinder há seis anos na cidade de São Paulo, não é preciso passar muito tempo no aplicativo para perceber que algumas regras como “Nudez/conteúdo sexual” ou “Falsificação de identidade” são frequentemente infringidas. “Eu vejo muitos perfis falsos, com descrições sexuais ou eróticas ou com fotos de homens “pelados”, insinuando órgãos sexuais “marcando” na cueca… e o perfil dessas pessoas não é bloqueado”, comenta.  

Segundo as mulheres trans ouvidas pela reportagem, as agressões e discursos de ódio proferidos por alguns usuários também são recorrentes. Todas relataram terem sido ameaçadas ou ofendidas com comentários transfóbicos. “Se eles [outros usuários] se comportam mal, por que nós é que somos banidas?”, diz Erika Banson, estudante em zootecnia na UFERSA, em Mossoró (RN). Usuária do Tinder há 7 anos, ela diz ter perdido as contas de quantas vezes teve seu perfil bloqueado sem qualquer esclarecimento da plataforma. “Eu nunca entendi o porquê. Tentava recorrer, mas não obtinha nenhuma resposta do Tinder. Só informavam que eu havia infringido as regras da comunidade. Que comunidade é essa, que não aceita pessoas trans?”, questiona.

A cada vez em que era banida, depois de perder todos os seus “matches” e conversas, Erika não tinha escolha a não ser a criar novos e-mails, comprar chips de celular ou até mesmo pedir o número de telefone de amigos e familiares para criar novas contas para usar o aplicativo. Com o tempo, a estudante passou a omitir a informação sobre seu gênero na descrição do seu perfil no Tinder. “Se eu colocasse essa informação, minha conta caía em poucos dias”. Erika explica que teve que aprender uma “técnica” com outras amigas trans, que também se queixavam do mesmo problema: após “dar um match” com um homem, ela mantinha conversas com o mesmo apenas por Whatsapp, e excluía o “match” do Tinder para só então revelar, fora do aplicativo, sua identidade de gênero. “Assim, não corria o risco do cara ficar bravo e denunciar minha conta”. 

Bruna Benevides, secretária política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), afirma que a entidade recebe, desde 2016, este tipo de ocorrência da parte de mulheres trans. “É um problema público, notório e recorrente”, diz. De acordo com relatos recebidos pela ANTRA, Bruna afirma que o Tinder “não tem atuado para coibir essas ações discriminatórias e também não tem assegurado que mulheres trans e travestis possam reaver os perfis após algum tipo de contestação”. “São banidas e acabou. Não há justificativa, apenas respostas automáticas”.

Em fevereiro de 2021, a ANTRA entrou em contato com o Tinder Brasil relatando o problema. A empresa prometeu ajustes e uma melhoria da plataforma, mas, por hora, os relatos de pessoas trans com contas banidas persistem. “Não acredito que estas empresas estejam interessadas em manter ativas as contas de pessoas trans, sobretudo das que reclamam e vão atrás de seus direitos. Essa automação de contas banidas tira a responsabilidade dessas empresas, é uma forma de blindagem. A culpa é sempre do algoritmo”, completa. 

Apesar de mulheres trans relatarem com mais frequência problemas com o Tinder, alguns homens trans não foram poupados do algoritmo apontado como discriminatório. “Tenho a impressão de que não somos um alvo tão forte quanto as mulheres trans, porque nós não temos que lidar como homens cis héteros e transfóbicos”, comenta Lucas*, professor de história em Porto Alegre. Ele conta que se inscreveu pela primeira vez no Tinder em 2017, antes de se assumir publicamente como um homem trans. Poucos dias após ter iniciado a transição de gênero e mudança de nome, seu perfil foi, segundo ele, injustamente excluído.

Após o ocorrido, Lucas optou por não usar mais aplicativos de encontro por alguns anos. “Fiquei com raiva, me senti frustrado e indignado. Já tem tanta gente nesse mundo nos dizendo que a gente não deveria existir. Esse foi só mais um recado. A raiva que eu sinto geralmente vem de outros lugares, e ser bloqueado num aplicativo por minha identidade de gênero só reforça uma raiva anterior”, explica. À época, Lucas escreveu um e-mail ao suporte da plataforma, mas obteve apenas uma resposta automática em inglês informando que sua solicitação havia sido recebida. Durante a pandemia, o professor conta que decidiu entrar no Tinder novamente, desta vez com um novo e-mail, e que até agora não teve problemas com denúncias ou bloqueio de sua conta.

Usuários relatam depressão e constrangimento após bloqueios no app

Para a jornalista Elli Cafrê, as experiências no Tinder como homem gay cis e, agora, como mulher trans, são totalmente diferentes. Ela começou a usar o app de encontro em 2015, antes de sua transição de gênero, na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Elli conta que a conversa não tomava rumos sexuais logo no começo. “Hoje mesmo, eu dei um match com um cara e as duas primeiras frases do cara foram: ‘Oi, você quer fazer um sexo gostoso?’. Eu respondi, brincando: ‘Caramba, que rápido! Eu queria pelo menos uma coca-cola antes!’. É comum eles perguntarem logo de cara onde eu estou, se moro sozinha ou se tenho um lugar discreto pra gente transar”, lamenta.

Adda Lygia conta que já teve doze perfis excluídos e que, em média, consegue ficar apenas duas semanas no aplicativo sem que sua conta seja banida. O último episódio teria acontecido em fevereiro deste ano, quando viajou ao Rio de Janeiro com amigas. “Pensei que ia morrer de angústia e tristeza quando vi que tinha acontecido de novo”, relata a designer, com a voz embargada. 

Assim como Elli e Adda Lygia, muitas mulheres entrevistadas nesta reportagem relataram continuar usando outros aplicativos de encontro pela falta de oportunidade de conhecerem parceiros em locais públicos, pela objetificação de seus corpos e pela falta de relações de afeto em seus cotidianos. “Por mais que a gente passe por situações violentas e discriminatórias no Tinder, ele ainda é nossa única possibilidade de talvez encontrar alguém que goste da gente e que nos respeite. É uma situação de dependência muito perturbadora”, desabafa Adda Lygia. A designer não tem usado mais o Tinder, e afirmou para a reportagem que pretende prestar queixa contra a empresa na Delegacia de Crimes Virtuais da Cidade de São Paulo por discriminação e transfobia.

Elli iniciou sua transição de gênero entre 2017 e 2018. Desde então, passou a informar em seu perfil do Tinder sua identidade de gênero: uma mulher trans. “Sempre tive medo de que a pessoa descubra no momento do encontro e que eu sofra alguma violência. Na verdade, mesmo colocando essa informação no meu perfil, eu tenho medo”. No início de sua transição hormonal, ela conta que teve seu perfil bloqueado três vezes. Na terceira vez, Elli decidiu entrar em contato com o aplicativo questionando o bloqueio de sua conta e denunciando a transfobia dos usuários do Tinder. “Muitos homens me denunciavam porque buscavam mulheres e se deparavam com um corpo, na concepção deles, de um homem. Eu ainda tinha o cabelo curto, o corpo muito masculino”, conta. 

Elli recebeu uma resposta da plataforma poucos dias depois da reclamação e teve seu perfil reativado. “Não adianta desbloquear nossa conta. O pior de tudo é a humilhação e o constrangimento de ser banida. Mesmo sendo educada e correta, eu fui bloqueada não por minhas atitudes, mas por quem ser quem eu sou. E é esse constrangimento que machuca tanto”, enfatiza a jornalista. “Se muitos homens me denunciam, por pura intolerância de gênero, e o Tinder me expulsa do aplicativo sem investigar por que motivo estão me denunciando, a empresa está concordando com o fato de que não sou uma mulher de verdade. E isso é uma questão grave de transfobia”.

Após cada episódio, Elli Cafrê conta que sofreu períodos de depressão e chegou a ter pensamentos suicidas. “A transição hormonal já mexe muito com a nossa cabeça. Eu já estava fragilizada, já me sentia uma ‘coisa’. E no mundo virtual, também ser tratada como uma aberração… isso me fazia muito mal”. Ela decidiu parar de usar aplicativos de encontro por alguns meses numa tentativa de recuperar sua saúde mental. “A solidão é uma constante na vida das mulheres trans, até mesmo para aquelas que se prostituem. Aplicativos de encontro acabam sendo como pequenas doses de droga. Parece que nos fazem bem, mas só nos afundam mais”, completa.

Nas redes sociais, Tinder faz campanhas contra LGBTfobia

Apesar do assunto ser pouco abordado no Brasil, o algoritmo do Tinder apontado como discriminatório não é uma particularidade brasileira. Reportagens publicadas pelo site The Independent, BBC News e Teen Vogue mostram que o problema vem sendo alertado por usuários trans desde 2017. Diferentemente da versão brasileira, o aplicativo em inglês informa ao usuário quais regras dos termos de uso foram violadas e o motivo pelo qual ele foi banido.

No Brasil, a artista performática Romagaga publicou um vídeo em seu Twitter em julho de 2020, relatando ter dificuldades para manter uma conta no Tinder por muito tempo e levantando a hashtag #TinderTransfobico. Ela afirma ter feito diversas publicações sobre a questão desde 2018 em suas redes sociais. “Ninguém me dava voz”, conta. “A gente já é apedrejada desde pequena. Não temos direito a nada. Estou cansada. Não é só sobre um aplicativo, é sobre ter direitos iguais”.

Diante da repercussão do vídeo na rede social, a hashtag #TinderTransfobico reuniu dezenas de relatos de pessoas trans passando pelo mesmo tipo de situação. Três dias após o desabafo da artista, a empresa se pronunciou pelo Twitter, reconhecendo que “as pessoas da comunidade de Travestis e Trans enfrentam desafios”, e prometendo “trabalhar duro” para melhorar a experiência do app para estes usuários. 

No trend da mesma publicação, o Tinder Brasil informou ainda: “Qualquer pessoa que acredite que sua conta foi removida indevidamente devido a denúncias por conta da sua identidade de gênero pode entrar em contato conosco pelo e-mail questions@gotinder.com e nossa equipe analisará a solicitação”.

O tuíte provocou a indignação de alguns usuários:

Usuárias e usuários do Tinder relatam transfobia nas redes sociais

A nota também anunciava o lançamento de ferramentas ampliando a orientação sexual e a diversidade de gênero de seus usuários, prometendo que o recurso ajudaria a “monitorar de perto as contas de pessoas da comunidade que estejam sendo alvo de denúncias infundadas”. Lançado em outubro de 2012 nos Estados Unidos e em 2013 no Brasil, esse recurso foi disponibilizado somente em 2020. Até então, a plataforma oferecia apenas duas opções — homem ou mulher. Ou seja, pessoas trans e não-binárias não podiam se identificar corretamente.

Apesar dos relatos de transfobia terem começado a vir a público em 2016, o Tinder só começou a criar campanhas sobre pautas LGBTQIA+ em suas redes sociais em 2020.  Desde então, fotos e vídeos sobre temáticas de gênero, orgulho LGBT e transfobia ocupam grande parte das postagens da página.

Em fevereiro deste ano, o Tinder Brasil lançou uma websérie de seis episódios com a artista trans Danny Bond, para a campanha de verão de 2022 do Tinder. Uma vez por semana, vídeos da rapper foram publicados abordando temas como padrões de beleza, segurança dos usuários, racismo e transfobia. Nos comentários de todos os vídeos e fotos publicados sobre a temática, a reportagem identificou mensagens de usuários acusando o aplicativo de transfobia ou relatando o bloqueio de suas contas. 

Campanhas do Tinder contra LGBTfobia no Instagram

Para Romagaga, as campanhas criadas nas redes sociais do Tinder Brasil são uma “atitude hipócrita”. “Eles usam nossa bandeira LGBT, pagam artistas trans pra fazer publicidade. Mas na prática, não fazem nada. É isso que me revolta. Falam que são a favor dos direitos LGBTQIA+ e continuam nos banindo da plataforma”, lamenta a artista.

Para Bruna, o fator discriminatório se configura na reação desproporcional dos usuários. “Essas mulheres estão sendo denunciadas por serem quem são. O único ‘crime’ que elas estão cometendo é ser trans. A identidade de gênero dessas mulheres é determinante para que usuários homens decidam, intencionalmente, que elas devam ser penalizadas e excluídas da plataforma”, explica a pesquisadora. Para Bruna, são homens que possuem “masculinidade frágil” e reagem de forma revanchista, como uma tentativa de afastar o desejo que sentem por mulheres trans. “Afinal, se ele deu match, é porque se sentiu atraído”, conclui.

É justamente este paradoxo entre desejo e ódio que posiciona o Brasil nas primeiras posições na lista dos países que mais consomem pornografia trans, e, paralelamente, o que mais mata travestis e transexuais no mundo. Em 2019, o site de pornografia PornHub apontou que os brasileiros são também 98% mais propensos a assistir vídeos pornográficos com pessoas trans, em comparação aos outros países. Um levantamento realizado pela ANTRA mostra que, somente em 2021, 140 pessoas trans foram assassinadas no Brasil. Com isso, o país ocupa o topo do ranking dos mais violentos para essa população pelo 13º ano consecutivo. Como não há dados oficiais sobre a população trans brasileira, a pesquisa foi construída com base em informações encontradas em órgãos públicos, organizações não-governamentais, reportagens e relatos de pessoas próximas das vítimas.

A Agência Pública entrou em contato com o Tinder Brasil que preferiu responder os questionamentos da reportagem por meio de nota. Apesar dos relatos ouvidos pela reportagem, a plataforma negou que o banimento por identidade de gênero ocorra. O aplicativo também compartilhou um formulário que pode ser preenchido por pessoas que acreditem que tiveram contas banidas indevidamente. Leia a nota publicada na íntegra:

“O Tinder não tolera qualquer forma de discriminação e não bane membros por conta de sua identidade de gênero. Se determinarmos que houve discriminação ou que uma denúncia mal-intencionada foi feita, tomaremos as medidas apropriadas nas respectivas contas.

As plataformas online estão suscetíveis aos preconceitos e estigmas que as comunidades em situação de maior vulnerabilidade enfrentam na sociedade, e o Tinder reconhece o papel que tem de ajudar no apoio à segurança de todos os seus membros. Temos trabalhado em conjunto com organizações líderes nesse espaço –incluindo a FONATRANS e a ABGLT no Brasil– em nossos esforços contínuos para criar uma plataforma equitativa, respeitosa e que promova um ambiente onde as pessoas possam se conectar e se conhecerem de forma segura. 

Qualquer pessoa que acredite ter tido sua conta no Tinder indevidamente banida pode entrar em contato com nossa equipe de atendimento ao cliente por meio deste formulário.”

Acesse o site da Agência Pública.

A Casa 1 é uma organização localizada na região central da cidade de São Paulo e financiada coletivamente pela sociedade civil. Sua estrutura é orgânica e está em constante ampliação, sempre explorando as interseccionalidade do universo plural da diversidade. Contamos com três frentes principais: república de acolhida para jovens LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) expulsos de casa, o Galpão Casa 1 que conta com atividades culturais e educativa e a Clínica Social Casa 1, que conta com atendimentos psicoterápicos, atendimentos médicos e terapias complementares, com foco na promoção de saúde mental, em especial da comunidade LGBT.

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