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A Biblioteca Comunitária da Casa 1 e a formação de pequenos leitores

Por Átila Morand, voluntário da Biblioteca

Fundada em 2017, a Biblioteca Comunitária Caio Fernando Abreu tem o seu acervo majoritariamente composto por doações de livros, revistas e DVDs. Nossa política de desenvolvimento de coleção visa dar espaço e voz para literaturas e produções audiovisuais representativas e/ou marginais, com destaque para LGBTQIAPN+, Feminista, Negra, Amarela e Indígena. Quaisquer que sejam as políticas de uma instituição, em bibliotecas comunitárias é comum encontrar uma estante ou mesinha reservada para doações de livros. São ali (re)distribuídos os títulos que já constam no acervo do espaço ou que não interessam aos recortes pretendidos. Na Caio, não é diferente e nosso cesto de doações esteve sempre à porta, como uma forma de convite para aproximação dos passantes: BALAIO LITERÁRIO. TÍTULOS PARA DOAÇÃO. UM ITEM POR PESSOA!  Também é comum em uma biblioteca que seus títulos estejam organizados por seções. Romance, direitos humanos, teatro, infantil, crônica, crítica literária, mangá etc. No entanto, e como o nome já diz, no Balaio os títulos tendem a ficar um tanto quanto misturados ao longo do dia, mas o tempo que as pessoas levam para achar uma publicação que lhes interesse acaba rendendo boas conversas com a equipe de atendimento. 

Em 2019, comecei a trabalhar como voluntário de atendimento na Caio. Atuei nessa frente por muito tempo e, nesse período, pude conhecer muitas pessoas que frequentam assiduamente o nosso espaço, incluindo crianças e adolescentes. A ideia de fazer o repasse de livros de uma forma mais direcionada para esse público já existia, mas foi em outubro de 2020, quando recebemos uma grande doação de histórias em quadrinhos e brinquedos, que tivemos fôlego para dar início à distribuição de kits de literatura infantojuvenis. O objetivo era facilitar as escolhas de leituras de um público que tem em desenvolvimento a autonomia de escolha daquilo que se quer ler. Para chamar de kit tinha que ter pelo menos duas coisas, então ficou estabelecido que uma delas seria um material de leitura, afinal, nós somos uma biblioteca! E a outra poderia ser um brinquedo (Mc Literatura Feliz!), ou um material de desenho, um acessório etc. Separamos os kits em grupos de faixas etárias. Sabemos que a idade não necessariamente é indicadora de níveis de alfabetização ou de letramentos literários, mas é preciso estabelecer alguns critérios. Importante dizer, montamos os kits em embalagens transparentes e as crianças e adolescentes podem escolher o que querem, desde que de acordo com sua faixa etária. Por exemplo, crianças muito novas não podem pegar kits com brinquedos pequenos ou materiais não adequados.

Em 2021, percebi que as crianças, que normalmente escolhiam os kits pelos brinquedos ou materiais de leitura (muitas delas adoram Turma da Mônica), passaram a pedir kits específicos, como “tio, tem kit com borracha?” ou “tem kit com caneta azul?”. Ficou evidente que elas precisavam de determinados materiais escolares no início do ano, mas não estavam conseguindo todos eles com o programa de distribuição da rede municipal de ensino. Em conversa com a equipe da Casa 1, estabelecemos um orçamento anual para compra desses materiais. A divulgação em redes sociais também impactou no crescimento de doações e, como sempre, mantivemos como critério a variedade de distribuição. Eles escolhem os kits com o item de leitura ou material complementar que mais interessa, mas muitas vezes, também com o que mais precisam. Claro, não damos conta de uma distribuição massificada: são três dias por semana e em horários variados, e isso garante atendimento para crianças e adolescentes que estudam em turnos escolares diferentes.

No início do trabalho, houve uma desconfiança de até onde esse projeto poderia surtir efeito no público, na comunidade do entorno, e de que forma. Neste mês de outubro, depois de três anos de distribuição, as experiências que tive me levam a crer que o projeto deu certo.  Uma das mais emblemáticas, e logo no início, foi quando não tínhamos material complementar para distribuir junto com os livros e recebemos uma doação grande de gizes de lousa. Depois de uma semana de distribuição o bairro estava coberto de desenhos das crianças feitos com giz: as ruas, as calçadas, as paredes… até caçamba de lixo tinha rabisco dos piás. Conforme fui conhecendo mais as crianças, pude perceber que algumas passaram a desenvolver aspectos importantes de letramentos literários, essenciais para o seu desenvolvimento como leitores. Elas agora têm preferências por títulos e franquias (já citei Turma da Mônica). Teve uma que antes não sabia o que gostava de ler, mas depois de um tempo chegou perguntando “tio, tem aqueles livros que a gente tem que descobrir a história no final?” Ela passou a gostar de narrativas de mistério! Uma vez recebemos folhas gigantes de papel e resolvemos distribuir dobradas junto com um potinho de tinta guache. No sábado seguinte, eu vi um grupo de crianças que praticamente interditaram uma calçada para a confecção de grandes cartazes de pinturas a dedo (não tínhamos pincéis daquela vez, mas eles se viram). Uma voluntária costuma fazer um mini kit para escrita de bilhetes, com papel, envelope, caneta e um textinho explicando o que é o gênero e como você pode mandar bilhetinhos para familiares e amigos. Depois de uns meses eu ouço uma criança comentando com a outra “vou usar o lápis de cor pra escrever um bilhete de desenho pra fulana”. Teve o pai que mora com dois filhos em uma ocupação vizinha nossa e chegaram juntos para devolver alguns livros que tinham retirado. Eu tentei explicar que os livros eram doados, que não precisavam devolver, mas ele me cortou dizendo “não, é que eles já têm muitos, não cabe mais. Eu tive que improvisar duas prateleiras em casa e agora cada um tem a sua biblioteca”. E completou “e agora também eles só dormem depois que eu leio uma história pra cada um”!

Em 2021, eu assumi a coordenação de trabalhos de base da Biblioteca. Não faço mais distribuição de kits, mas a equipe de atendimento me traz relatos importantes e, sempre que posso, acompanho o trabalho. Recentemente descobri que as massinhas de modelar são preferência de quase todas as faixas etárias, e eles pedem com frequência porque “ah, tia, estraga muito, não dá pra ficar misturando toda hora…”. Tem um menino que olha todos os kits, ele gosta de canetas coloridas e procura uma cor que ainda não tem. Desde o início, eu estou responsável pela triagem e curadoria de doações e compra de cada um dos itens dos milhares de kits que já distribuímos. Todos eles passam pelas minhas mãos e acho que isso me permite enxergar os kits pelo bairro. Eles estão na tiara de anteninhas na cabeça da criança que passa correndo; no estojo carregado junto com o material escolar; na pasta retirada da mochila pra guardar o novo kit e não amassar até chegar em casa; no mordedor da criança de colo que voltou com a mãe, dessa vez pra pegar um paninho de boca; na competição de bolhas de sabão; nos rabiscos nas calçadas; nas trocas de figurinhas e adesivos; no desenho pintado fixado no painel; e, claro, nos livros, na leitura. Ano passado eu estava no metrô Liberdade e reconheci uma adolescente que costuma pegar kits. Ela estava na plataforma, esperando o metrô, lendo um livro que pegou com a gente: “O diário da princesa”, maior sucesso da Meg Cabot. Eu trabalho presencialmente aos sábados e gosto de ir embora no final da tarde, depois da distribuição do dia. Tem sempre uma criança ou adolescente lendo pelo caminho. Eles simplesmente se sentam pelas redondezas, nas muretas, nas guias, nas calçadas e… leem!

PS. Este é um texto sobre trabalho voluntário. Na Biblioteca, temos muitas frentes de atuação, e a distribuição de kits é somente uma delas. O texto que escrevi destaca aspectos positivos do processo e que, em conjunto, nos fazem concluir que o trabalho vale a pena. A equipe que hoje atua na Caio é formada por 37 pessoas, todas elas voluntárias. Fui responsável pela formação e ingresso de cada uma delas no nosso grupo, assim como sigo responsável pelas formações daquelas que virão. Nesse sentido, considero importante fazer um contraponto e alerta: o trabalho voluntário não é gratificante! Não deve ser em princípio, não é em essência. Como disse, trabalho na Casa 1 desde 2019. Desde então, a Casa 1 permanece como centro cultural e profissionalizante, mas também seguimos como uma república de acolhida para jovens que foram expulsos de casa por serem LGBT+! Distribuímos kits de literatura
não porque queremos, mas porque vivemos em uma sociedade em que crianças e adolescentes não têm acesso a materiais de leitura, porque falta borracha no material escolar. Não devemos fazer trabalho voluntário porque é gratificante, porque crescemos como ser humano ou porque dá um quentinho no coração. Fazemos trabalho voluntário porque o trabalho precisa ser feito! Parafraseando o meu mago
preferido da literatura, vivemos em tempos sombrios e tudo o que nos cabe é decidir o que fazer com o tempo que nos é dado. 

PPS. A ironia de trabalhar em uma biblioteca representativa e ter como referência um escritor homem branco! Cher que me perdoe… Amém(?)!

A Casa 1 é uma organização localizada na região central da cidade de São Paulo e financiada coletivamente pela sociedade civil. Sua estrutura é orgânica e está em constante ampliação, sempre explorando as interseccionalidade do universo plural da diversidade. Contamos com três frentes principais: república de acolhida para jovens LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) expulsos de casa, o Galpão Casa 1 que conta com atividades culturais e educativa e a Clínica Social Casa 1, que conta com atendimentos psicoterápicos, atendimentos médicos e terapias complementares, com foco na promoção de saúde mental, em especial da comunidade LGBT.

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