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A Existência Trans, a Produção Literária e Audiovisual e sua Excelência Cultural

Por Daniele Gross, voluntária da Biblioteca Caio Fernando Abreu

Enfim chegamos a mais um janeiro, quando celebramos no Brasil, desde 2004, mais um mês da Visibilidade Trans. A data surgiu a partir de um ato nacional para a campanha “Travesti e Respeito”, movimento pela luta contra a transfobia, bem como por mais direitos a esse grupo brasileiro que, infelizmente, é o que mais sofre mortes e ataques no mundo: em 2019, 124 pessoas trans foram assassinadas; em 2020, outras 175, tornando-se o segundo período com maior número de assassinatos, que teve seu recorde em 2017, com 179. Esses e outros dados podem ser observados no Dossiê: Assassinatos e Violência Contra Travestis e Transexuais Brasileiras.

No Brasil, a média de vida da população trans, de acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) é de 35 anos — menos da metade da expectativa de vida das pessoas cisgêneras, que é em torno de 74,9 anos. E, segundo a associação, em 2019, 90% da população de travestis e mulheres transexuais se sustentavam por meio da prostituição, uma das poucas opções de sobrevivência das pessoas que não se identificam com o gênero que foram designadas ao nascer.

Para nos aprofundarmos mais a respeito, trazemos a produção de três mulheres trans, que passando ou não pela prostituição, são representantes dessas mulheres, assumindo seu protagonismo em suas histórias — e, ainda que colocadas no patamar da ficção, todas trazem uma grande dose de realidade em suas obras.

O Realismo Mágico e a Suavidade do Mundo das Travestis, existente em “O Parque das Magníficas”, de Camila Sosa Villada, traz a realidade do mundo travesti vivida em sua própria pele. O livro é bem mais do que um romance, é também uma autobiografia. Nascida na Argentina, a autora conta sua trajetória entre o menino efeminado, agredido pelo pai e repudiado pela família e pela sociedade de um pequeno povoado, à sua transformação em Camila, bem como sua formação em Comunicação Social e Teatro, ambos pela Universidade Nacional de Córdoba, cidade onde galgou sua transformação.

Em um primeiro momento, confesso ter estranhado o realismo fantástico tão presente na obra. Mas, assumo que esse estilo suaviza a dor, a tragédia, o preconceito e a extenuante realidade de quem teve que se prostituir, ainda que posteriormente conseguindo sair dessa função. A escrita de Camila é algo que toma a gente de um fôlego só e que faz com que não desejemos acabar nunca a leitura — como a sua personagem, que deseja que os gêmeos da única mulher do grupo, a “única que havia nascido com uma flor carnívora entre as pernas”, não nasçam, não venham a esse mundo violento, que fiquem para sempre no ventre materno, sendo protegidos da maldade do mundo exterior.

A literatura de Camila é extenuante e traz muita simbologia e luta, principalmente da não obrigatoriedade em se falar exclusivamente do universo trans — cobrança frequente que a autora recebe e que rebate alegando que deseja escrever ficção e que o fato de ser uma mulher trans não é passaporte para colocá-la exclusivamente nessa temática.

Ainda que o tema em si não deva ser tratado como obrigatório, é importante termos artistas trans como representantes culturais, em quaisquer temáticas. E é isso que vemos em duas obras audiovisuais, que têm em suas narrativas a possibilidade de ser uma mulher trans e não se prostituir para sobreviver.

Em “Manhãs de Setembro” (Prime Video, 2 temporadas), a cantora Liniker vive Cassandra, mulher trans, que durante o dia trabalha como motogirl e que, à noite, vivência seu maior sonho: o de se tornar uma cantora cover de Vanusa — intérprete e compositora dos anos 70 e que trouxe em sua carreira grandes sucessos como o título do seriado, além de Paralelas (Belchior), Sonhos de um Palhaço (Antônio Marcos e Sérgio Sá), entre outros. O seriado trabalha não apenas as dificuldades em se estabelecer profissionalmente, de se sustentar, mas também os percalços que a vida anterior ao processo transexualizador, quando uma ex-namorada de Cassandra apresenta à cantora um menino, dizendo ser seu filho.

O último produto audiovisual que aqui trazemos, Valentina (Netflix), traz a história da personagem homônima, vivida pela também mulher trans Thiessa Woinbackk. O filme conta a história de Valentina, garota trans, que tem em sua vida a rara felicidade de ser aceita pela sua mãe, podendo inclusive fazer seu processo de transição dentro de casa, acompanhada de sua responsável.

E bem sabemos: se nos grandes centros, ainda que em meio a certo anonimato, como em São Paulo, Rio de Janeiro, ou outras metrópoles, já é difícil vivenciar sua sexualidade “diferente” da estabelecida como padrão por nossa sociedade, imagine em uma cidadezinha no interior de Minas Gerais!

Apesar de não debater a violência pela qual muitas mulheres trans passam, Valentina aborda a violência de gênero, como a violência sexual que boa parte das mulheres (independente de sua sexualidade e/ou identidade de gênero) passam, pois é quando sonolenta em um baile de máscaras, durante o carnaval, enquanto descansa em um quarto vazio, é abusada por um garoto que coloca a mão por baixo de sua saia. E é a partir desse momento que o filme retrata a busca de Valentina por seu lugar ao sol.

Enfim, vemos que as três obras, que apesar de distintas conversam entre si, são amostras das conquistas de que pessoas trans estão ganhando espaço no campo das artes, bem como da política, como demonstram as deputadas federais Erika Hilton, de São Paulo, Duda Salabert, Minas Gerais; as deputadas estaduais, Dani Balbi, Rio de Janeiro, e Linda Brasil, de Sergipe; e também Symmy Larrat, que assumiu a inédita Secretaria de Defesa dos Direitos LGBTQIA + , no governo Lula, que se iniciou este ano.

E não se esqueça: além das produções audiovisuais disponíveis nos canais de streaming acima relacionados, você encontra também, além de “O Parque das Irmãs Magníficas”, outras obras da literatura trans lá na nossa Biblioteca!

Foto de capa: Divulgação/ Manhãs de Setembro

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