“Sábado, dia 15 de novembro, por volta das 23 horas, entrou novamente em ação o aparato repressivo comandado pelo delegado Richetti. Dessa vez o alvo das incursões noturnas de nossa polícia foram os bares Cachação, Ferro’s Bar e Bexiguinha. As mulheres que lá se encontravam, munidas de todos os documentos, inclusive de carteira profissional, foram levadas indiscriminadamente com o seguinte argumento: ‘você é sapatão’.”
O trecho acima é parte de um manifesto produzido em 1980 pelos grupos Terra Maria, LF e Eros. Ele integra o Acervo Lésbico Brasileiro (ALB), iniciativa de pesquisadoras de do país que querem reunir documentos históricos sobre lesbianidade no Brasil e disponibilizá-los ao público.
Entre eles, estarão trechos de documentos, como este, que mostram a repressão da ditadura militar direcionada a mulheres homossexuais e também a luta do movimento lésbico para incluir a criminalização da homofobia na Constituição de 1988.
“A maior parte das mulheres do grupo pesquisou questões relacionadas à lesbianidade, e a gente começou a se encontrar a partir de demandas das nossas pesquisas, percebendo o quanto a circulação desses materiais entre a gente facilitava o nosso trabalho”, diz Julia Kumpera, mestre em história pela Unicamp e diretora financeira do arquivo. Ela estuda as políticas sexuais da ditadura militar no Brasil e a história de ativismos lésbicos.
Parte do acervo foi doado pela ativista lésbica Marisa Fernandes. Nela, estão notas como a que abre esta reportagem, que trata de uma ação do delegado José Wilson Richetti contra redutos das lésbicas no final da ditadura, chamada, segundo a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, de “Operação Sapatão”.
“Temos notas que elas faziam chamando para atos, especificamente contra a violência policial. O Richetti promovia operações contra tudo que eles consideravam ‘vadiagem'”, diz Paula Silveira Barbosa, diretora-geral do ALB, que é mestre em jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.
O delegado Richetti é citado pela Comissão da Verdade paulista como perseguidor da comunidade LGBTQIA+ da capital. “Essas ‘rondas’ comandadas por José Wilson Richetti, chefe da Seccional de Polícia da Zona Centro desde maio de 1980, tinham por objetivo ‘limpar’ a área central da presença de prostitutas, travestis e homossexuais”, diz o texto da comissão.
Foi uma dessas operações que, em 1983, resultou no que hoje é lembrado como o “pequeno Stonewall brasileiro”, em referência à revolta LGBT+ após a invasão policial de um bar nova-iorquino em 1969.
Na versão brasileira, ativistas do Galf (Grupo de Ação Lésbica-Feminista) foram proibidas de vender no Ferro’s Bar, que entre os anos 1960 e 1990 foi um reduto lésbico no centro de São Paulo, o jornal que produziam, o Chana com Chana –nome que dispensa explicações. Em resposta, ativistas ocuparam o bar.
No jornal Folha de S.Paulo, o protesto saiu assim, em uma reportagem que ocupava duas colunas de texto em 21 de agosto de 1983: “A noite em que as lésbicas invadiram seu próprio bar”. O texto é parte dos documentos que farão parte do acervo.
Há outras reportagens, como a da Folha da Tarde, sem data, em cujo título lê-se: “Censura ameaça Hebe Camargo”. Por quê? É que a apresentadora havia chamado para seu programa, exibido à época na TV Bandeirantes, Rosely Roth, integrante do Galf e pioneira do movimento lésbico brasileiro.
Para viabilizar a manutenção dos materiais, o ALB lançou uma campanha de financiamento coletivo com a meta de arrecadar cerca de R$ 10 mil até esta segunda-feira (2).
Um dos planos é digitalizar exemplares do Chana com Chana, o jornal independente produzido pelo Galf e que circulou entre 1981 e 1987. Uma das funções do panfleto era a de organizar o movimento lésbico e LGBT+ de forma mais ampla para pressionar os parlamentares que elaborariam a nova Constituição.
Em uma edição, as autoras entrevistam candidatas para a Assembleia Constituinte. “A formulação de uma nova Constituição é um marco histórico importantíssimo que pode (ou não) garantir e ampliar os espaços democráticos através das leis que irão reger o país”, diz o texto.
Em outro, cobram de parlamentares a inclusão da criminalização da homofobia já na Constituição. Os grupos tentavam conseguir apoios.
Até hoje, o Brasil não possui uma lei que formalize que o preconceito contra LGBT+ é um delito, apesar da decisão de 2019 do STF (Supremo Tribunal Federal) que determinou que, na prática, ele possa ser punido pela Lei do Racismo.
BRASÍLIA, DF
Foto de capa: Reprodução/ Ato Público no dia 13 de junho de 1980 na frente do Teatro Municipal