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Caê Vasconcelos fala sobre transmasculinidade, jornalismo e aceitação

Por Thais Eloy, produtora de conteúdo freelancer da Casa 1

Caetano Vasconcelos entrou para a faculdade por pressão familiar. Escolheu jornalismo porque queria ser um profissional diferente do que ele via na tevê e nos noticiários. Escreveu também sobre as dificuldades de pessoas trans no mercado formal de trabalho no livro-reportagem “Transresistência”, seu projeto final de curso, com o qual entendeu que entraria em um novo processo na sua vida.

Atualmente, Caê é repórter da Ponte Jornalismo, um veículo referencial em segurança pública e direitos humanos. E em uma edição histórica do programa Roda Vida, foi o primeiro jornalista transexual a integrar a equipe de entrevistadores.

Vestindo a camiseta da Agência Mural de Jornalismo das Periferias, seu antigo local de trabalho e uma de suas paixões declaradas, ele falou para o site da Casa 1 sobre a invisibilização de homens trans, o tradicionalismo nas faculdades de Jornalismo, o desmonte das políticas públicas e os caminhos para construir uma masculinidade diferente da que observou durante sua vida.

Você encontrou alguma barreira na faculdade para produzir o livro-reportagem “Transresistência”?

Todas. (ri). Eu decidi que iria falar sobre pessoas trans em 2015, já estava bem pronto, se eu conseguisse ou não um orientador iria dar um jeito de fazer esse tcc. Fiquei dois anos pesquisando e estudando referências trans. Foi nessa época que conheci Jaqueline Gomes de Jesus que, para mim, é a maior referência acadêmica que temos entre pessoas trans e travestis. Fui tentando refinar o que eu queria.

Quando decidi que era esse tema foi quando vi aquele absurdo que fizeram com a Verônica Bolina. Meu sonho é que a Verônica saia, porque ela tá presa até hoje, não mais no presídio mas em um [hospital] psiquiátrico. Queria muito entregar um “Transresistência” para ela e falar “foi você que me ajudou a dar esse start e me entender trans” mas, ainda não tive essa oportunidade. Quando vi aquele absurdo, aquela travesti preta com o rosto desfigurado e as pessoas zombando daquilo, porque os policiais divulgaram a imagem para isso – para zombar e tirar a humanidade daquele corpo, falei “preciso que meu tcc seja para pessoas como a Verônica para que isso não se reproduza”. Fui refinar meu tema até que tive uma disciplina com um professor que era gay, não imaginei que ele seria o primeiro a barrar esse tema, ele simplesmente falou “você é lgbt e quer falar sobre lgbt? Não, troca de tema” aí na hora engoli a raiva, não discuti com ele e comecei a articular quais professores topariam ser meus orientadores e achei três professores dispostos a orientar esse tema. No fim das contas rolou uma briga entre os professores para me orientar. […]

Nesses quatro anos de faculdade tive muita dificuldade de achar a mínima oportunidade para exercer o jornalismo. Mandei currículo para todos os lugares possíveis me humilhando naquelas cartas de apresentação que você conta toda a sua vida e a pessoa nem te responde. Enquanto estava na faculdade só atuei como redator, foi nas agências de publicidade que consegui estágio, emprego e tudo o mais, e nada como repórter. Academicamente sempre era o aluno mais elogiado, sempre tinha as melhores notas e não conseguia nada profissionalmente. Não lembro quem foi, mas um professor falou para focar no tcc e isso seria a porta de entrada. Foquei muito nesse projeto e o Zibordi [orientador] me deu toda a bagagem que precisava nesse processo. Ele conseguiu me ajudar a fazer com que o Transresistência saísse desse meio acadêmico e foi isso que me fez entrar na Ponte. Ter investido no tcc e entender que não é só para a academia e que não poderia morrer ali, me fez ser o repórter que sou hoje.

O tradicionalismo das faculdades de Jornalismo impacta na forma que os profissionais abordam temáticas sociais?

No meu tempo de faculdade – entrei em 2013 e me formei no primeiro semestre de 2017, as professoras que tive, principalmente as professoras negras, traziam bastante questões para além da grade dura da faculdade mas não tinha uma disciplina de gênero por exemplo. Fico pensando quantas pessoas se formaram na mesma sala que eu e são o tipo de jornalista que reproduz transfobia escrevendo hoje. A gente não teve essa base. A Michelle Roxo, que foi a professora que pensei para ser a minha orientadora, dava aula sobre Teoria da Comunicação. Ela conseguiu trazer um pouquinho da questão trans, da questão LGBT, o meu grupo falou sobre isso em um trabalho, mas é muito o lead [abertura de um texto jornalístico]. Você fica quatro anos de faculdade aprendendo a fazer o lead, mas e aí Como você sai uma pessoa mais humana? O jornalista precisa ser mais humano para fazer pautas sensíveis.

Entrando na Ponte percebi que era uma pessoa muito sensível. Sensível de chorar, muito chorão e qualquer coisa me abala, mas sinto que esse é o meu maior dom como jornalista. Quando vou falar com uma mãe que acabou de perder um filho vítima de violência policial ou que o filho está preso você tem que ter essa sensibilidade. Acho que se forma muitos jornalistas que querem ter o lado bom, querem ser reconhecidos mas não pensam no lado humano. Tem que ter uma escuta mais ativa, tem que ser aquela pessoa que a sua fonte vai confiar mesmo, para poder contar esse momento de dor, mas não é a faculdade que forma a gente nisso.

Sinto que tenho essa formação por ser uma pessoa periférica e, por mais que, durante quase toda a minha trajetória ter vivenciado o mundo como uma pessoa cis – por conta da invisibilização das nossas vidas eu não sabia que podia ser trans até conhecer a história de meninos trans, vivenciei o lado do machismo e até a lesbofobia. Sendo uma pessoa periférica acho que o lugar de onde venho fala muito do jornalista que sou mas e esse jornalista que é branco cis hetero e é de uma classe média como a gente faz para ele não reproduzir preconceitos?

Em 2018 dei minha primeira palestra, em 2019 foi o ano inteiro e em 2020 também passei dando palestra em faculdade. Penso que essa nova galera de Jornalismo que se formou, ou está para se formar, está tendo uma bagagem que eu não tive. Fui para o Maranhão dar um curso de cobertura LGBT+ e jamais imaginei que isso poderia acontecer numa universidade. Às vezes na grade [curricular] não dá para colocar aquilo, mas a universidade pode achar alternativas. Quando sou chamado para dar palestra e contar como é ser um jornalista trans eu penso que quem assiste essa palestra vai sair um pouco pensando, refletindo os privilégios. Na minha época não existia isso. O máximo de jornalista que foi na minha faculdade foi o César Tralli e bombou, todo mundo queria ver ele. Eu não quis ver essa palestra e fui procurar outra. Porque eu vou querer ver um jornalista da Globo? A Globo nem me quer lá. E numa dessas, procurando outra palestra, conheci Angela Davis e mudou minha vida completamente.

De que forma trabalhar na Ponte te impactou como profissional e como pessoa?

Digo que o meu TCC e a Ponte me ajudaram a me entender trans. A primeira vez que conheci meninos trans fiquei confuso, acabou meu mundo e começou a construir um novo. Tinha certeza absoluta que era sapatão, achava que já tinha me entendido e que não tinha mais como a minha vida mudar. Quando eu conheço os meninos trans e ouço eles contando aquelas histórias fica confuso na minha cabeça. Talvez tivesse morrido ali se eu fosse um jornalista de qualquer outra área e não conseguisse conversar com outras pessoas trans. Foi o TCC que deu o “start”, mas entrei na Ponte para construir uma editoria LGBT+.

A Ponte já tinha uma credibilidade na área de segurança pública, que foi muito importante para mim me posicionar enquanto jornalista, e conheci pessoas maravilhosas que se tornaram fontes e amigas que me ajudaram cada vez mais a entender não só o meu lugar enquanto homem trans, mas como posso ajudar mulheres trans e travestis. São as mulheres trans e travestis negras que são as maiores vítimas dos transfeminicídios. Nunca tinha entrado para uma redação antes da Ponte. Tive uma passagem pela Agência Mural e fiquei um ano e meio. […] Hoje eles têm uma equipe fixa, que são pessoas que trabalham cem por cento para a Mural, mas quando eu entrei ainda era como colaborador, ganhava pelo texto que eu fazia, então tinha que trabalhar em outro trampo. Fiquei até abril de 2019 trabalhando em uma agência de publicidade, no horário comercial era redator e  no horário vago tentava ser jornalista. Nesse aspecto de colaboração na Mural eu escrevi dez matérias e na Ponte já estou chegando em 600 em três anos, por mês escrevo 20 matérias pra ponte. Querendo ou não ou pegava esse ritmo, ou eu não continuava na Ponte.

Até abril de 2019 estava nesse esquema de colaborador, não tinha vida. Todo horário vago tentava produzir alguma coisa para a Mural ou a Ponte. A entrevista com a Linn da Quebrada foi enquanto colaborador. Uma entrevista que marcou a minha vida foi como colaborador com a Mônica Benicio. Fui para o Rio de Janeiro quatro meses depois da morte da Marielle Franco, estava tudo ainda muito recente e a Mônica foi maravilhosa. Ficamos três horas na casa dela e ela abriu o coração e a casa para a gente. Uma coisa que  gosto muito na Ponte, como eles precisavam de uma pessoa para construir essa editoria LGBT+, sempre tive muita liberdade criativa, sugeria as pautas e eles abraçavam. Nessa matéria com a Mônica eu pude escolher qual era o tema e decidi que seria o amor dela. Ainda sou muito emocionado mas eu era cem por cento o rótulo da sapatão emocionada, então eu escolhi a história de amor, né? Como elas ficam 14 anos juntas e a mídia não presta atenção nisso?

Quando comecei a cobrir segurança pública em abril de 2019, quando fui contratado, mudou muito a minha vida também. Sentar com essas mães e ouvir esses relatos de dor. Ter a Débora Maria e a Rute Fiuza, que são as fundadoras do movimento Mães de Maio, me ligando e me chamando de filho às vezes, sabe? [pausa] As fontes mais importantes para eu conquistar não são os juízes, não são os promotores, são essas pessoas que estão colocando a cara a tapa. Elas correm risco de vida para fazer o trampo que elas fazem, para que outras mães não sintam a dor que elas sentem. Então vivenciar o mundo com essas pessoas e ter o carinho delas é muito importante para mim. Nunca imaginei que ia virar essa pessoa, esse jornalista e foi a Ponte que proporcionou tudo isso confiando em mim. Eu precisava de uma oportunidade só, que ninguém tinha me dado. E outras pessoas trans, outras pessoas negras, periféricas só precisam disso. A gente sabe que a gente tem talento, sabe tudo que a gente é, mas o mercado de trabalho não dá essa oportunidade.

Qual sua motivação para escrever o texto “Prazer, Caê”? Teve a repercussão que você esperava?

Nossa, foi uma repercussão que eu não imaginava. Foi muito doido meu processo de me entender trans, sabia que ia ter que abrir mão de muita coisa para poder ser quem eu sou. Tinha certeza absoluta que iria perder o carinho da minha família, tinha certeza que minha companheira na época ia terminar comigo. Não tinha certeza que seria demitido por ser um site de direitos humanos, o mínimo que eu esperava era um acolhimento, mas não sabia se eles estavam prontos para ter uma pessoa trans em transição na equipe porque teria que avisar. Não dá para aparecer um Caê sem contar quem é o Caê. A Ponte tinha que estar minimamente pronta para vivenciar isso comigo.

A gota d’água para mim foi quando assisti “Bixa Travesty” da Linn da Quebrada. Ela me deu uma surra. Sai daquela sala em 18 de dezembro de 2019 com uma angústia. Eu precisava contar para as pessoas, mas não sabia o que contar, não sabia o que estava acontecendo internamente. Achei que era mais prudente conversar com a minha companheira da época, a gente se separou em novembro do ano passado, somos muito amigos ainda e se eu estava compartilhando uma vida com ela, ela tinha que ser a primeira pessoa a saber. Já tomaria o primeiro baque ali se ela falasse “não quero isso, vou embora”. Ela me apoiou desde o começo. Sei que a transição não ajudou a gente a dar certo porque veio o começo da minha transição junto com uma pandemia. […] Tinha medo quando entendi que era uma pessoa trans das pessoas trans acharem que eu era uma farsa. Pensando no outro eu deixei de olhar para mim.

Quando contei para as minhas amigas recebi mais acolhimento e aí contei para a minha irmã, ela tem 15 anos mas é muito mais evoluída que eu em várias coisas. O que contei para as pessoas foi “olha, eu descobri que não sou cis, não sei se sou um homem trans ou uma pessoa não-binária, não sei se vou querer mudar de nome ou outro pronome mas quero que vocês me acolham”. Coloquei mais confusão na cabeça dos outros do que qualquer outra coisa, mas não dava para esperar entender tudo isso para contar, precisava contar para saber se eu teria o acolhimento. Contei para algumas pessoas da minha família, minha irmã contou na verdade, porque isso foi em março e a gente já estava na pandemia, não estava mais vendo a minha família. Aí chegou a hora de contar na Ponte, já estava em esquema de home office e contei por vídeo. Acho que assustei todo mundo no dia, falei “gente, eu preciso contar uma coisa para vocês, não dá para segurar e esperar acabar a pandemia”. Tenho certeza que todo mundo achou que eu ia pedir demissão [ri]. Falei que estava me entendendo uma pessoa trans e eles ficaram “ah, era isso? Todo esse negócio para contar isso? Estamos com você se decidir contar e como contar”. Isso foi em abril e eu tinha férias para tirar, fiquei uns dias fora em maio para entender também todo esse processo, como ia ser pra mim.

Eu estava com uma ansiedade porque eu esperei 28 anos, né? Esperei 28 anos para contar para o mundo porque minha transição começou em 2017, mas eu demorei para contar 28 anos então eu queria tudo de uma vez. Queria já começar a hormonização, começar a juntar dinheiro para a mastectomia, queria mudar o nome, retificar os documentos, tudo de uma vez, mas a gente está no meio de uma pandemia, tive que tirar o pé do acelerador.

Contei para a Tetê, minha ex-editora e uma das pessoas mais importantes desse processo, porque ela me apresentou o Jean. O Jean também é um jornalista trans, ele não trabalha como jornalista e não sei por quanto tempo ele está em transição. Ele me deu algumas dicas e me apontou um caminho, mas disse que tinha que fazer sentido para mim. A importância do Jean para mim foi ele ter falado que a gente não é igual e que os processos são sempre diferentes. Querem que a gente seja igual, mas a gente não é.

Eu não lembro se quando escrevi o texto já tinha começado a terapia hormonal – não gosto do termo “tratamento hormonal” porque eu não estou doente para fazer um tratamento. E aí nesses dias das férias fiz o texto. O pessoal da Ponte até falou que poderia ser em vídeo, mas eu já tinha feito um texto em primeira pessoa, que foi sobre o suicídio da minha mãe, e pensei no texto em primeira pessoa porque fico mais confortável em escrever. Fiquei quase 15 dias escrevendo esse texto, o tempo das minhas férias e decidimos que no dia que eu voltasse de férias já seria publicado. Estava no desespero de mudar o nome nas redes sociais, não aguentava mais meu outro nome.

Estava tudo ali, quem não estava entendendo que sou pessoa trans, ali estavam todas as respostas. Acho que foi menos doloroso. Fico imaginando mandar mensagem para todas as pessoas, ia ficar uma coisa muito cansativa. Foi só publicar e as pessoas já começaram a me tratar pelo meu nome, me mandaram prints delas trocando meu nome nos contatos. Muito acolhimento de todo mundo. A minha família mais distante ficou sabendo 100% pelo texto.

A parte que eu não esperava era que outros meninos trans fossem ler esse texto e me procurar e aconteceu isso com dois meninos. Lembro que um deles me perguntou “será que sou trans?” e eu disse “não sou eu que tenho que dar essa resposta, mas posso te falar o que fiz”. Fiz bastante tempo de terapia para poder entender até que ponto era eu e até que ponto era a LGBTfobia da minha família, comecei a conversar e ler sobre a trajetória de outras pessoas trans. Para ele foi super rápido, acho que dois meses depois
ele veio me contar que tinha escolhido o nome social e tal. Eu não imaginava. Queria uma coisa meio que eu contando para o mundo, mas não imaginava que poderia impactar outras pessoas que estavam também se entendendo trans.

Caê Vasconcelos pela lente de Olavo Costela

Como o teto de gastos e o desmonte do SUS impactam a vida de pessoas trans e o acesso a políticas públicas?

Eu, por exemplo, não consegui iniciar a minha terapia hormonal pelo SUS porque estamos em pandemia, fiquei pensando muito nisso também, é muito difícil. Cheguei a ir no CRT (Centro de Referência e Treinamento em IST/Aids) da Santa Cruz, só conhecia o CRT porque uma ex-sogra trabalhava lá. Não sabia que tinha outras UBSs (Unidade Básica de Saúde) para você fazer esse processo terapêutico da transição. Fui direto para o CRT e eles me falaram que, por causa da pandemia não estava rolando, mas, mesmo se tivesse em um momento normal, ficaria bastante tempo na fila. Na época estava com uma grana extremamente apertada. Tinha acabado de mudar de apartamento, tinha que pagar seguro, morando de aluguel que dividia com a minha ex. Mas não dava pra esperar. Tive que tentar achar algum outro jeito.

Eu pago um plano de saúde para mim porque fiquei muito mal um tempo atrás quando tirei um siso, cheguei a ter convulsão e não fui atendido na Santa Casa e fiquei com trauma. É uma grana que eu tenho que investir. Fiquei com trauma então essa grana do meu salário reservo para pagar o plano. Só que pelo plano os médicos e os profissionais não manjam do rolê. Cheguei a passar por um psiquiatra que falou “vou ser bem sincero com você, nunca conversei com uma pessoa trans então não acho que sou um bom profissional para te ajudar nesse processo”. Foi bom ele ter sido sincero porque ele poderia ter reproduzido várias coisas em mim se ele tivesse aceitado e eu teria ficado nesse lugar de trauma. O Jean me indicou o endócrino dele, que por sorte atendia meu plano, e não tive gastos a mais. Com a terapia você tem que pagar, não tem o que fazer, nenhum plano de saúde praticamente cobre terapia. Precisa de um psicólogo que realmente vá te ajudar nas demandas e eu teria desistido se fosse ficar na fila. “Deixa pra lá, já estou com quase 30 anos, porque vou ficar nessa fila?” e fico desesperado de imaginar a mastectomia, são aproximadamente dez anos na fila. Não dá para esperar dez anos, eu estou um ano já, desesperado.

Achei que não ia usar o binder mas comprei. Nunca tive uma disforia com o meu corpo, só que a sociedade me cobra que eu tenha um corpo “certo” para ser tratado no masculino. Ter seios para mim está sendo um problema por conta disso. Não dá para esperar a fila do SUS, mas também não tenho dinheiro pra isso agora. Já sugeriram uma vakinha, mas sei que tem outros meninos trans em uma situação de vulnerabilidade maior e eu não acho justo. Uma amiga deu uma ideia de aproveitar essa visibilidade, fazer a
vakinha e doar o resto, ainda estou pensando nessa possibilidade. É muito doido, né? Para a gente ser o que a gente é, ter que passar por tudo isso porque o SUS não dá conta.

Recentemente fiz uma matéria sobre a UBS da Santa Cecília que era um importante lugar e que tinha bastante acolhimento e agora está sendo esvaziada, como tudo. Todas as políticas públicas que a gente avançou na gestão Haddad como prefeito praticamente não existem mais. O Transcidadania (projeto que promove a reintegração de pessoas trans e
travestis em situação de vulnerabilidade por meio do incentivo à educação) está aí como referência e sendo super esvaziado e nada é feito. O Suplicy vai lançar um mapeamento sobre essas demandas para as pessoas trans, que ele fez em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos se eu não me engano. Ele começou a fazer isso porque questionaram para ele porque fazer política pública para pessoas trans se não existem pessoas trans em São Paulo. São Paulo é a cidade que mais tem pessoas trans.

Sempre falo na Ponte, como jornalista, em como o Estado é responsável por todos os assassinatos de pessoas trans. Não tem um campo no IBGE que tenha a opção para as pessoas LGBTs falarem que elas existem. Enquanto a gente não tiver esse número, a gente não vai conseguir política pública. O Estado não contabiliza nem os assassinatos, para as pessoas trans a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) tem que fazer e as pessoas ainda acham que os dados são mentirosos.

Nas eleições de 2020 tivemos um recorde de candidatura de pessoas trans, mas só tivemos um homem trans eleito (Thammy Miranda pelo PL), como você avalia esse cenário? Existe uma invisibilização de homens trans?

Estava falando sobre isso com um amigo meu que também se entendeu trans no mesmo período. A gente é a primeira geração que está conseguindo ser visível, acho que muito por conta da internet. A nossa terapia hormonal é tão forte que chega um momento que você só vai contar que é [um homem] trans se você quiser. Durante muito tempo pode ter tido homens trans e a gente não sabe. O próprio Tarso Brant tem uma passabilidade que ele poderia nunca na vida falar que ele é trans.

Tem pessoas desde as antigas, o João Nery e o Leo Moreira Sá sempre embarcaram nisso, mas é muito pouco. E onde eles estão? Não é na tevê. Agora que estamos construindo isso de pessoas trans fazendo roteiros, pessoas trans dirigindo e chamando pessoas trans. Acho que é muito lugar de invisibilidade. E é muito doido porque o primeiro homem trans eleito não me representa de jeito nenhum. Inclusive desde o dia que ele foi eleito eu tento uma entrevista e a assessora dele não me responde. Ele me respondeu no Twitter e me seguiu e parece ser uma pessoa minimamente aberta. Falei que a assessora dele não me responde e ele confirmou o número. Não sei se é porque sou de um veículo de “esquerda”, como as pessoas taxam a Ponte porque falar de direitos humanos é de esquerda. Óbvio que a gente é progressista, mas não é uma coisa partidária. Falo com as meninas [mulheres trans eleitas] porque o PSOL tem tudo que a gente precisa, independentemente se a pessoa é cis ou não, eles fornecem tudo para uma matéria. A assessora do Thammy não me responde e eu sou um homem trans em uma redação. Queria muito entrevistar o Thammy porque queria saber o que vai sair dali, queria provocar, queria entender o que passa na cabeça dele e ter esse lugar de escuta mas fui barrado.

A gente não produz academicamente. Quem são os homens trans um pouco mais em destaque são nas artes. Referência acadêmica para fonte tem a Jaqueline Gomes de Jesus, a Dodi Leal e várias outras mulheres trans e travestis. Eu não conheço um homem trans para indicar como fonte acadêmica. Estamos nesse momento enquanto corpos transmasculinos de construir, não diria construir porque vem sendo construído faz tempo, mas de visibilizar cada vez mais e de falar “sou um homem trans”. Por isso em qualquer entrevista, live, palestra faço questão de falar que sou um homem trans e depois vem o resto. É a importância política de me dizer um homem trans, outros meninos trans vão se sentir inspirados nisso, a gente tem que ter essas vozes. Tem o livro do João W. Nery, quantos se entenderam trans lendo esse livro, sabe? A gente ainda precisa estar nesse lugar. A gente tem esse péssimo exemplo, reprisada agora, a novela “Força do Querer” […] Detesto essa novela, mas a pior parte para mim é a forma que os dois personagens só falam desse lugar de dor e de invisibilização. As poucas referências que temos na grande mídia são essas. Tá na hora da gente ser essas referências, não só no jornalismo mas nas artes, na música e academicamente.

Tenho um psicólogo homem trans hoje, um homem trans negro. Demorou muito, meses para eu achar um psicólogo trans, mas eu achei, então a gente está por aí. Talvez a gente precise ficar mais visível. O homem trans não é o corpo mais matado, mas é o corpo mais suicidado. Os maiores índices de suicídios são entre os homens trans.

Tem esse espaço do medo também. Eu ainda não consegui usar o banheiro público porque imagina se descobrem que sou trans? Nesse espaço queria muito parecer uma pessoa cis, porque tenho muito de sofrer uma agressão sexual. Ainda não estou pronto. Não vou usar o banheiro público até que me sinta confortável, mas será que vou me sentir confortável um dia? É muito louco como a gente se nega um direito básico, como o banheiro. Hoje, na sorte, moro no centro e chego rápido em casa das pautas. Todas as vezes chego correndo para o banheiro. Na casa das fontes ainda peço para usar mas shopping, terminal rodoviário como eu usava antes, não vai acontecer tão cedo.

De que forma homens trans estão contribuindo para a construção de uma nova masculinidade?

Tenho conversado muito isso com uns amigos e foi outra parte muito difícil para me entender trans. Pensava “vou virar um homem branco”. Na época ainda achava que seria hétero. Olhando para a minha trajetória, eu tinha muita repulsa do que era masculino, dizia que era “uma sapatão não feminilizada”, então tinha o feminino ali mesmo na negação, mas não tinha o masculino.

Eu tinha um tio que era um exemplo de masculinidade tóxica, hoje ele super me aceita trans, é maravilhoso. Por isso acho que a educação resolve. Tenho um exemplo em casa de uma pessoa que foi educada e entendeu que não pode ser escrota, esse era o exemplo que eu tinha em casa e entendia que não era isso que queria ser. Pego todos os exemplos bosta que tenho e entendo que é tudo que eu não quero ser. Tenho conversado muito com o Pedro Pires, que é um homem trans psicólogo e que também vai estar no
meu livro [uma segunda edição do Transresistência]. O Pedro foi a primeira pessoa trans com quem conversei na minha transição, ele é muito importante na minha trajetória. Ele tem rodas de conversa, que por conta da pandemia não estão acontecendo, com outros meninos trans, para a gente entender esse lugar.

Uma coisa que a gente fala muito é que nunca vamos ser cis. Sabemos tudo que a cisgineridade e a masculinade é, então temos que ser o oposto disso. É muito doido porque tem umas coisas que a sociedade diz que é feminina e pronto, é dessa forma que acontece. Estou louco para pintar a unha mas sei que nesse momento vai ser foda porque vão me chamar no feminino. O Pedro me contou que ele comprou uma melissa e está amando usar o sapato, isso não faz ele ser menos homem. A gente primeiro tem esse
momento de odiar o que é feminino, o que foi imposto para a gente. Durante anos odiava rosa,  essa coisa bem clichê, agora já estou retomando que quem define que sou homem sou eu, não o que eu uso ou as coisas que eu gosto. O Pedro tem feito esse movimento, de conversar com meninos trans, e eu espero que volte logo porque quero participar dessas rodas de conversa.

Eu me percebi não mais como uma pessoa hétero e estou muito feliz de ter me entendido bissexual. Quando me entendi sapatão a minha mãe pediu duas coisas para mim, não ser “esse negócio de bissexual porque isso é putaria, se for para ficar com menina fica com menina e esquece menino”. Na época era exatamente o que eu queria, então foi ok [ri]. E a outra coisa foi “não vire homem”. Não “virar” homem [pausa]. Porque as mães acham que é assim que funciona? E hoje sou tudo que minha mãe não queria que eu fosse, um homem trans e bissexual e não tenho mais ela aqui para ver como seria isso.

Eu me interesso por homens trans e até homens cis – os que não são escrotos. A gente sabe que gays têm toda aquela questão em torno da genitália e que precisa desconstruir, assim como as mulheres lésbicas, a gente tá em um momento que não dá mais para deixar essas mudanças para depois, tem que ser agora. O Dennis Pacheco, que é uma fonte minha, pesquisador de um fórum brasileiro de segurança pública, fala muito isso. Eu tenho a ideia que o que estou construindo agora é para a geração depois de mim, não vou estar aqui para ver, e ele falou “caê, a gente tem que estar aqui para ver a mudança, não tem como esperar 50 anos para as coisas mudarem”. Acho que ainda vai demorar um tempo para as coisas melhorarem, mas a luta não tem que parar.

A Casa 1 é uma organização localizada na região central da cidade de São Paulo e financiada coletivamente pela sociedade civil. Sua estrutura é orgânica e está em constante ampliação, sempre explorando as interseccionalidade do universo plural da diversidade. Contamos com três frentes principais: república de acolhida para jovens LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) expulsos de casa, o Galpão Casa 1 que conta com atividades culturais e educativa e a Clínica Social Casa 1, que conta com atendimentos psicoterápicos, atendimentos médicos e terapias complementares, com foco na promoção de saúde mental, em especial da comunidade LGBT.

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