A Ordem dos Advogados do Brasil Seção de São Paulo, por meio do Observatório de Candidaturas Femininas da OABSP em parceria com A Tenda das Candidatas, promoverá na próxima segunda e quarta-feira a I Jornada sobre Democracia Gênero, Raça e Representação em Tempos de Reformas Políticas.
A iniciativa visa discutir como a paridade nos espaços de poder fortalecem a democracia e combatem a violência política de gênero.
O evento contará com seis mesas de discussão e ao final serão encaminhadas propostas de incidência legislativa para o combate à sub-representação de gênero e raça na política.
93 anos após eleição da primeira prefeita do Brasil, Brasil tem menos políticas eleitas que a Arábia Saudita e violência política contra candidatas cresce.
O Brasil ainda não tinha permitido o sufrágio feminino quando Alzira Soriano, 32, se tornou em 1928 a primeira prefeita do país em Lajes, pequeno município no interior do Rio Grande do Norte. Sua eleição, recebida com surpresa e repercutida internacionalmente em jornais como The New York Times, só foi possível devido à Lei Estadual 660, homologada em 25 de outubro de 1927, que, segundo registro do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE-RN), autorizava a participação de mulheres na política potiguar: “No Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei, dizia um trecho do texto.
Alzira ficou viúva aos 22 anos e, com seus três filhos, voltou para a casa dos pais onde começou a se interessar por política. Era filha de coronel – que já tivera participação na política – e pertencia a uma família tradicional da cidade. Quando resolveu entrar para a vida pública, teve sua candidatura apoiada pelo governador da época, José Augusto Bezerra de Medeiros, pelo seu sucessor, Bezerra de Medeiros, e pela bióloga e líder feminista paulistana Bertha Lutz, que chegou a visitar Rio Grande do Norte naquele mesmo ano para um almoço com o atual governador afim de certificar-se que de fato haveria candidaturas femininas nas eleições municipais de Lajes.
Em 2 de outubro de 1928, Lutz teve o prazer de escrever um artigo de meia página para o jornal carioca “O Paiz”, assinado também pelas feministas Orminda Bastos e Carmen Portinho, da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, anunciando a entrevista com “a senhora Alzira Teixeira Soriano, a primeira eleitora no município de Lajes para o qual foi eleita prefeita nas eleições”. As primeiras aspas de Alzira no impresso traziam uma mensagem da sensação de emancipação da mulher na política: “A mulher pode ser mãe e esposa amantíssima e oferecer ao mesmo tempo à pátria uma boa parcela das suas energias cívicas e morais”.
Mesmo alcançando o mais importante cargo municipal, a prefeita não deixou de ser vítima do machismo e de uma sociedade ainda mais patriarcal, que era regida pela República Velha. Dizem que seu adversário na eleição, Sérvulo Pires Neto Galvão, saiu da vida pública e mudou-se de cidade após perder a eleição para uma mulher. Outros adversários políticos de Alzira falavam sem pudor que mulheres na vida pública eram prostitutas e insinuavam que ela tinha um caso com o governador. Após tomar posse em janeiro de 1929, seu gabinete foi formado apenas por homens, salvo sua exceção.
Brasil na 133ª posição em representatividade feminina na política
93 anos após a eleição da primeira prefeita do Brasil e 89 anos depois da conquista do voto feminino no país, os avanços para combater a desigualdade de gênero na política e os assédios sofridos por mulheres eleitas não progrediram muito, ainda que parte da sociedade, sobretudo os movimentos feministas, continuem lutando e buscando ferramentas para monitorar essas denúncias.
Embora as mulheres tenham aumentado suas cadeiras no Poder Legislativo nas eleições de 2018, essa amplificação não foi suficiente para que o Brasil saísse de posições alarmantes. Que aumento foi esse que ocorreu em 2018? Na Câmara de Deputados, houve um aumento de 51% no número de eleitas em relação a 2014 – de 51 para 77 deputadas, do total de 513 lugares. Já nas assembléias legislativas, 161 deputadas estaduais se elegeram, um aumento de 35%. No Senado não houve evolução na representatividade de gênero, sete mulheres foram eleitas senadoras, mesmo número de 2010.
De acordo com o ranking da União Inter-Parlamentar, que reúne os Parlamentos do mundo inteiro, o Brasil ocupa apenas a 133ª posição entre os 191 países avaliados. A representação de mulheres parlamentares no Brasil atinge uma taxa de 15%, o que significa que está bem abaixo da média mundial, que foi de 24,3% em 2018.
Arábia Saudita tem mais mulheres na política que o Brasil
Segundo a Atenea, uma publicação da iniciativa da ONU Mulheres para acelerar a participação política das mulheres na América Latina e no Caribe, no Brasil as mulheres permanecem em condição de desigualdade também em outras dimensões da vida social, seja nas relações de trabalho, seja no lar. Por exemplo, em 2014, a renda das mulheres era equivalente a apenas 74% da renda dos homens. Porém, quando se compara o caso do Brasil em relação aos demais países em termos de dados gerais de paridade, o que mais sobressai é a condição precária da participação política formal das mulheres. “Nas demais dimensões houve avanços, mas é na política que a paridade está mais distante”, diz a publicação.
Para se ter uma ideia, segundo o ranking da União Inter-Parlamentar, a Arábia Saudita, que permitiu o voto feminino só em 2005, tem mais mulheres na política do que o Brasil. Aqui, além de todos os problemas que afastam as mulheres dos cargos políticos, a fragilidade da legislação de cotas partidárias, o machismo institucionalizado e a violência sofrida no ambiente de trabalho são os fatores que mais se destacam.
O TretAqui, uma plataforma que reúne denúncias sobre violência política durante o período eleitoral dentro e fora das redes, fez um levantamento durante as eleições municipais de 2020. Entre os que mais praticaram violência política estão os homens cisgênero, responsáveis por 83% das denúncias recebidas. As mulheres foram as que mais receberam ataques e denúncias de violência política.
Segundo o boletim trimestral do Observatório da Violência Política e Eleitoral no Brasil, o percentual de mulheres vítimas de violência política sobe desde o início de 2020. Entre janeiro e março de 2020, apenas 3,4% das lideranças vítimas de violência eram do sexo feminino. Esse percentual subiu para 7% entre abril e junho até alcançar o seu maior valor entre julho e setembro (9,8%).
Nas denúncias recebidas no TretAqui, as candidatas receberam 71% dos ataques, sendo 65% mulheres cis e 6% de mulheres trans.
O Instituto Marielle Franco também coletou dados sobre a violência política sofrida por mulheres. Para a diretora Anielle Franco, historicamente as mulheres negras que se colocam à disposição para concorrer ao pleito institucional foram recebidas por violências. As opressões costumam estar relacionadas a raça, gênero e classe. “Em nosso estudo, identificamos que 8 a cada 10 mulheres candidatas comprometidas com pautas antirracistas já sofreram algum tipo de violência virtual. Por outro lado, do total de mulheres que sofreram violência política anterior, apenas 32% efetuou denúncia, o que revela a exposição e risco que as candidatas negras sofrem com essa interseccionalidade”, afirmou.
Violência digital contra mulheres
As mulheres também não ficam de fora das fake news. A plataforma TretaAqui recebeu denúncias de violências e notícias falsas disseminadas nas redes sociais. A deputada federal Luíza Erundina (Psol) e a candidata à prefeitura de Porto Alegre (RS) Manuela D’ávila (Psol) foram os principais alvos das denúncias.
Em março deste ano, a vereadora Benny Briolly (PSOL), parlamentar mais votada nas últimas eleições em Niterói, denunciou uma dupla agressão do vereador Douglas Gomes (PTC). Segundo a vereadora, Douglas realizou ataques racistas e transfóbicos contra ela, tanto nas redes sociais, quanto em espaços políticos. As agressões teriam começado em 29 de dezembro de 2020.
O episódio mais recente foi relatado posteriormente por sua equipe nas redes sociais: “O vereador do PTC, que já acumula diversas polêmicas dentro da casa legislativa, quebrou mais uma vez o decoro parlamentar ao tentar agredir fisicamente a vereadora do PSOL. Antes do desfecho, Douglas foi ao microfone chamar a vereadora de ‘vagabundo, moleque, seu merda e mentiroso’. Professor Túlio, colega de bancada, precisou intervir na situação”.
Em dezembro do ano passado, o vereador estava em um carro de som quando incitou seus apoiadores a atacar fisicamente a vereadora, que só não foi agredida fisicamente devido à solicitação de escolta feita pelo presidente da Comissão de Segurança, Renato Cariello, naquele momento.
Benny Briolly ressalta que, não é a primeira vez que sofre agressão por Douglas. “Somos o país que mais assassina travestis e trans no mundo. O vereador usa de suas redes e espaços políticos para fomentar esses crimes, se legitimando na imunidade parlamentar, inclusive dentro do plenário”, disse.
No caso da vereadora, a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância indiciou o vereador Douglas Gomes por tentativa de homicídio, racismo e transfobia contra a vereadora Benny Briolly pela agressão ocorrida em dezembro. No entendimento da polícia civil, o fato ocorrido foi uma nítida tentativa de homicídio devido à tentativa de linchamento físico.
“Ao mesmo tempo que temos 133 anos da abolição do processo escravocrata, a nossa democracia e os direitos da população oprimida são direitos tardios. Não é fácil para uma mulher trans, negra e pobre ocupar o parlamento brasileiro. Se eles combinarem de nos matar, a gente se organiza para nos mantermos vivas”
Benny
A falta de ações concretas pelas instituições garantidoras da segurança política contribuem para que a violência política, sobretudo às mulheres negras e trans continuem aumentando. Poucas mudanças efetivas podem ser comemoradas nos quase 90 anos da conquista do voto feminino no Brasil.
Entender que o poder público é o principal responsável por diminuir essas estáticas por meio da promoção de ações e políticas públicas na sociedade civil talvez seja o grande desafio para que a desigualdade de gênero e a violência política sejam superadas, e assim, as mulheres consigam ter mais espaço e reconhecimento na política brasileira.
A cidade onde a população pegou em armas para expulsar portugueses e lutar pela independência do Brasil em 1822 elegeu sua primeira prefeita negra no ano passado, 490 anos depois da sua fundação.
Mas o caminho não tem sido fácil para Eliana Gonzaga (Republicanos), 52, eleita no ano passado prefeita de Cachoeira, cidade histórica do Recôncavo Baiano, derrotando grupos políticos tradicionais da região.
Na campanha eleitoral, ela foi alvo de ataques racistas em redes sociais. Dias após sua vitória, dois de seus principais aliados políticos foram assassinados em crimes com fortes indícios de execução. Por fim, ela passou a receber ameaças de morte e avisos para que renuncie ao cargo.
Filha de feirantes, Eliana começou a trabalhar cedo, ajudando os pais no mercado municipal de Cachoeira. Na juventude, aproximou-se da política por meio do sindicato de trabalhadores de agricultura familiar.
“Desde então, venho fazendo esse trabalho de formiguinha com políticas para evitar o êxodo rural e enfrentando fazendeiros para garantir do direito à terra”, afirma Eliana.
Disputou seu primeiro mandato eletivo em 2008, quando foi eleita vereadora. Reelegeu-se em 2012 e quatro anos depois foi candidata à vice-prefeita, sendo derrotada.
Em 2020, decidiu concorrer à prefeitura em uma ampla coligação de partidos de oposição ao prefeito Tato Pereira (PSD), que disputava a reeleição. A campanha foi agressiva e marcada por ataques racistas em textos que circulavam em grupos locais em um aplicativo de mensagens.
Mesmo assim, venceu as eleições para prefeitura de forma surpreendente, colocando fim a um ciclo de 16 anos de governos da família Pereira, um dos clãs mais tradicionais da cidade de 33 mil habitantes.
Mas não conseguiu sequer comemorar a vitória. Dois dias depois da eleição, seu aliado e cabo eleitoral Ivan Passos foi brutalmente assassinado em Cachoeira. “Ele foi abatido com dez tiros, mesmo número do meu partido. O recado foi dado”, afirma a prefeita.
Nos dias seguintes, começou a circular na cidade uma lista com possíveis novas vítimas, que incluía familiares da prefeita e seus aliados políticos mais próximos. Temerosa, tirou várias pessoas da cidade e as enviou para Salvador, onde ficaram hospedadas na casa de amigos.
Uma delas foi Georlando Silva, aliado que foi candidato vereador pelo mesmo partido da prefeita. Em vídeo gravado ainda em abril de 2020, ele conta que estava recebendo ameaças de opositores.
Georlando voltou para Cachoeira no dia 30 de dezembro, nas vésperas da posse de Eliana como prefeita. Foi nomeado coordenador de obras da prefeitura, mas acabou sendo assassinado no dia 7 de março com 19 tiros no rosto. “Foi um crime muito macabro, chocou toda a cidade”, lembra Eliana.
A própria prefeita já vinha recebendo ameaças veladas desde a sua vitória. Antes mesmo de tomar posse, recebeu um telefonema em que uma rajada de arma de fogo foi disparada do outro lado da linha. Desde então, passou a andar com escolta armada e carro blindado.
No início deste mês, ela foi intimidada por homens em uma motocicleta enquanto participava de uma ação de vacinação para Covid-19 em um drive-thru na cidade. Eles fugiram após perceberem a presença de policiais no local.
Nesta terça-feira (21), um grupo de 56 entidades do movimento negro e sindical emitiram uma nota de solidariedade à prefeita e cobraram apuração rígida do caso pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia.
“Consideramos um absurdo inaceitável que uma mulher negra democrática e legitimamente eleita seja mais uma vez alvo da violência de grupos autoritários e violentos que não aceitam a vontade de povo expressa pelo voto. Repudiamos as ameaças de mortes, os ataques racistas e misóginos”, diz a nota.
A Polícia Civil da Bahia informou que a denúncia de ameaça contra a prefeita foi registrada em dezembro de 2020. Depoimentos de suspeitos foram colhidos, mas o teor não foi divulgado para evitar interferências nas investigações.
Eliana afirma que não pode dar informações sobre as motivações das ameaças, mas lembra que estas nunca aconteceram até o momento em que foi eleita prefeita da cidade. Diz que permanece no cargo e não cogita renunciar.
“Continuarei de pé porque sei que essa luta não é individual. Essa é uma luta coletiva que remete aos nossos ancestrais. O povo de Cachoeira não elegeu uma covarde. Vou ficar e fazer uma gestão de excelência.”
Na última quarta-feira (14), o Projeto de Lei nº 504/2020 da deputada estadual Marta Costa (PSD) foi aprovado pelo Congresso de Comissões da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.
O projeto que “proíbe a publicidade, através de qualquer veículo de comunicação e mídia de material que contenha alusão a preferências sexuais e movimentos sobre diversidade sexual relacionados a crianças no Estado”, associa LGBT+ a “influências inadequadas” e práticas danosas”.
Base sólida da luta contra a LGBTFobia, a deputada Erica Malunguinho (PSOL) assim como a Frente Parlamentar LGBT+ está se mobilizando para barrar o projeto e publicou na segunda-feira (19), uma nota de repudio e realizou intervenções urbanas para ampliar o apoio da comunidade à luta para barrar o projeto.
Uma outra forma de mobilização é o envio de e-mail para os e as parlamentares que compõem a assembleia legislativa para votarem contra o projeto.
Abaixo, o modelo de e-mail preparado pela Frente Parlamentar LGBT+ e a lista de todos os deputados e deputadas:
Modelo de e-mail
ASSUNTO: Pela não aprovação do PL 504/2020!
TEXTO: Exmo. Deputados e Deputadas da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP)
Como evidenciado pela Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, nos últimos dois anos alguns parlamentares têm apresentado projetos que ferem os princípios sobre os quais se constituem a ALESP e tratam a população LGBTQIA+ de forma discriminatória, degradante e que violam a dignidade de uma parcela significa de cidadãos e cidadãs do Estado de São Paulo.
Essa prática institucional da ALESP precisa ser urgentemente combatida, não só pelas pessoas que compõem a comunidade LGBTQIA+, mas pelo conjunto da população, inclusive pelos seus representantes na ALESP, sob pena de que esta casa falhe em sua tarefa de zelar pela democracia plena no Estado.
A institucionalização da LGBTfobia pela ALESP não apenas constitui flagrante violação da Lei 7.716/2018, mas viola também os direitos fundamentais da população LGBTQIA+, de forma a agredir a própria cidadania e a existência. Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexuais e outras/os fazem parte da população do estado de São Paulo, recolhem impostos e tem direito a serem protegidas/os pelos Parlamentares desta Casa, e não vítimas de projetos segregadores.
O PL 504/2020 trata as pessoas LGBTQIA+ como uma má influência, como se a própria existência das pessoas LGBTQIA+ pudesse de alguma forma gerar desconforto e que por essa razão deva ser escondida, escamoteada. O PL deseja proibir que a existência e os direitos da população LGBTQIA+ sejam reconhecidas pelos meios de comunicação, que como bem público acessam a sala da “família brasileira”, tendo o preoconceito a discriminação como únicos argumentos.
Pessoas com expressão sexual divergente da heterossexualidade e aquelas e aqueles que se afirmam contra a designação compulsória no nascimento, também foram crianças e, seguramente, vivenciaram muito mais sofrimento.
Pessoas LGBTQIA+ não são inadequadas, não são má influência. São sujeitos plenos de direitos, iguais em dignidade, são familiares, vizinhas e vizinhos, trabalhadoras e trabalhadores da saúde, da educação, do comércio, da indústria, da construção civil. São juristas, garis, artistas, dentistas, motoristas de aplicativos, pessoas que contribuem diariamente para reprodução e manutenção da vida. Pessoas LGBTQIA+ também estão sofrendo com a pandemia, com a fome, com a miséria, com a solidão e merecem ser tratadas e tratados com respeito, e não discriminação.
Por isso, senhores e senhoras deputadas da ALESP, nós, como cidadãos e cidadãs do Estado de São Paulo, como organizações da sociedade civil organizada, no pleno exercício dos nossos direitos, demandamos que os senhores e às senhoras parlamentares votem contra a aprovação do PL 504/2020, bem como se posicionem públicamente contra este PL, denunciando a LGBTIfobia institucionalizada pelo mesmo.
Certos de sua atenção, estaremos atentos ao seu posicionamento em plenário e em suas redes sociais.
Respeitosamente,
ASSINATURA DA PESSOA/ENTIDADE
Lista de e-mails
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Talíria Petrone, Erica Malunguinho e Leci Brandão contam que Marielle inspirou mulheres negras a entrar para e seguir lutando na política: “Ela é a responsável por esse olhar para a política de forma séria”
Até hoje não se sabe ao certo os motivos que levaram os assassinos de Marielle a tirarem a sua vida, também não se sabe quem está por trás do crime que chocou o país e o mundo. Mas sabemos que a voz da parlamentar nunca foi silenciada, pelo contrário, só ecoou. E ecoou principalmente na política.
No mesmo ano em que Marielle Franco foi executada, outras mulheres negras foram eleitas para ocupar cargos de deputadas estaduais e federais. Três ex-assessoras de Marielle se tornaram deputadas estaduais pelo PSOL do Rio de Janeiro e entraram para a história da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro): Renata Souza, Monica Francisco e Dani Monteiro. Todas negras e faveladas.
À Ponte, a deputada federal Talíria Petrone, 35 anos, lembra como foi se tornar a vereadora mais vota de Niterói no mesmo ano em que Marielle entrava para a política. “Eu topei a tarefa de me candidatar a vereadora sem nenhuma expectativa de ser eleita”.
Talíria conta que ficou feliz ao ver que Marielle, quem conhecia da época que dava aulas de história no Complexo da Maré, favela onde Marielle foi criada, também havia topado se candidatar. “A nossa missão foi em conjunto”, se recorda.
“Marielle com mais de 40 mil votos no Rio e eu a mais votada de Niterói, para mostrar uma nova possibilidade de a gente fazer política: ocupar o espaço institucional, tão difícil para o nosso corpo, mas de forma de suporte pessoal e afetivo”.
Talíria (à esquerda) e Marielle (à direita) criaram uma amizade importante para aguentar as hostilidades dos espaços políticos | Foto: Reprodução / Instagram
Para isso acontecer, muitas violências precisaram ser travadas, denuncia Talíria. A mais grave foi o assassinato de Marielle. “Foi algo muito escandaloso. Até hoje”.
“Perder o que Marielle significava em vida me fez enfrentar muitos lutos. O luto da amiga, da confidente, da companheira de mandato e essa Marielle que se evidenciou gigante, porque ela já era gigante, e que fortaleceu a luta antirracista mundo afora”.
Para Talíria, a execução de Marielle reforçou a urgência que Franco já gritava no parlamento: “a urgência de enfrentar o genocídio de jovens negros, de ampliar as vozes das mães negras que perdem seus filhos assassinados, enfrentar a lesbofobia, a transfobia, a bifobia, colocar as favelas e periferias no centro”.
Com isso, avalia Talíria, houve uma reorganização da política brasileira. “Conseguimos ter mais corpos como o de Marielle ocupando esses espaços de poder. Mas isso não é uma vitória, não podemos falar em vitória com um corpo morto três anos depois sem respostas. Podemos falar em resistências como a de Marielle para fazer com que os nossos corpos fiquem vivos”.
Com a execução de Marielle, Talíria se candidatou como deputada federal. Foi eleita com 107.317 votos, mas, a cada dia que passava, começou a ser mais ameaçada de morte. Precisou sair do estado do Rio de Janeiro com o marido e a filha com menos de um ano.
“Não vim com a minha família para onde estou por opção, fomos obrigados a sair por conta das ameaças. Hoje eu ando com escolta parlamentar, não saio de casa sem escolta. Eu morava na cidade que eu nasci e cresci. É uma fratura na democracia, que já é frágil e nunca se consolidou”, lamenta.
Talíria assegura que toda essa onda de ódio contra ela e outras parlamentares negras, incluindo Marielle, tem a ver com o avanço do bolsonarismo, que “não só explicita um Brasil racista, patriarcal, colonial, escravocrata escondido nos porões, que nunca abandonou a ditadura, como fortalece e aprofunda esse Brasil”.
“Quando um presidente diz as coisas que diz, quando estimula o armamento da população e a violência, ele autoriza toda a população a usar o racismo de forma violenta. A principal tarefa do momento é derrotar o bolsonarismo para podermos seguir lutando pela democracia. Democracia é falar do povo negro, de nós mulheres. Democracia em que nossos corpos não cabem não serve”, completa.
Identidade como fator determinante
Quem também se candidatou a um cargo em 2018, impulsionada pela execução de Marielle Franco, foi Erica Malunguinho, 39 anos, que se tornou a primeira parlamentar trans do país, eleita com 54 mil votos pelo PSOL-SP para ocupar uma das cadeiras da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo).
Quando decidiu por essa batalha, de se tornar parlamentar, Erica sabia o que poderia enfrentar. “A gente tem uma condição histórica, enquanto mulheres trans e travestis, de um perigo constante, de saber que o seu corpo e a sua existência estão sempre em risco. Isso é uma questão de ordem estrutural e histórica que a gente conhece muito bem”, afirma em entrevista à Ponte.
Com mais visibilidade, mais o risco de atentados, físicos e morais, argumenta Erica. “As pessoas perguntam se eu sinto medo e eu digo que já nasci morta, então o medo não é um sentimento que se cultiva muito em mim. Marielle morreu em 2018, eu fui eleita em 2018”.
Logo nos primeiros meses de mandato, Erica Malunguinho enfrentou um ataque transfóbico de um colega de Alesp. O deputado Douglas Garcia, do então partido do presidente Jair Bolsonaro, PSL, atacou Erica durante uma plenária alegando que “se um homem que se acha mulher entrar no banheiro em que estiver minha mãe ou irmã, tiro o homem de lá a tapa e depois chamo a polícia”.
Esse ódio, que também é um ódio enfrentado por outras mulheres negras na política que vieram antes, como Benedita da Silva, Leci Brandão, Theodosina Ribeiro, define Erica, tem a ver com a história do país.
“Eu não vou dizer que [antes] era melhor do que agora porque não vivi, mas é muito nítido, para pessoas de esquerda, que o acirramento entre os campos ideológicos nunca foi tão grave como esse agora, com a potencialização das redes sociais que disseminam os discursos de ódio de forma muito mais rápida”.
Erica Malunguinho: “É sobre nós, mas para a emancipação coletiva” | Foto: Reprodução / Instagram
Erica avalia também que não dá para afastar os fatores identitários desse ódio. “O que fez Marielle ser tão grande é o discurso em relação à negritude, à lesbianidade, à favela. Acrescenta-se a isso a uma estrutura patriarcal de inúmeras opressões. Marielle está presente em diferentes marcos da discriminação: de gênero, de sexualidade e de raça. É inevitável que esse é o plus de Marielle”.
Erica também enxerga que o fato de Marielle ter sido eleita ao lado de Talíria Petrone e Áurea Carolina foi importante. “Isso já indicava para a sociedade brasileira que mulheres negras, embora sendo pouquíssimas dentro de um universo parlamentar gigantesco, estavam chegando e eram combativas em relação às questões de gênero, raça e sexualidade”.
Para a parlamentar, esse acirramento começou com mais força com o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016. “Com isso há uma autorização para que a direita repudie os corpos e o fazer político das mulheres de esquerda. Sendo lésbica e negra mais ainda. A morte de Marielle é fruto disso”.
Identidade, aponta Erica, é mais do que imagem, é “condição histórica, social e política. A afirmação dessas identidades está carregada de lutas históricas, está carregada com aquilo que nos faz identificar como mulher negra, travesti, trans, lésbica, periférica. Isso está carregado de processos históricos e políticos”.
Mas Erica aponta: “Não estamos aqui para reivindicar sobre si, mas reenvidar sobre uma coletividade saudável, que consiga agir sem violências. É sobre nós, mas para a emancipação coletiva”.
“Nossos corpos são intelectos e temos para oferecer para esses espaços [de poder político] o desatar dos nós das violências, que incidiram diretamente sobre os nossos corpos e compreendemos como isso se dá em uma ordem histórica, estrutural e institucional”.
Passos que vêm de longe
Seis anos antes de Marielle ser eleita, Leci Brandão, 76 anos, assumia o seu primeiro mandato como deputada estadual pelo PCdoB-SP. Em 2010, Leci foi eleita com 85 mil votos. Na eleição seguinte, em 2014, foi reeleita com 71 mil votos. No ano em que Marielle foi executada, em 2018, Leci chegava a seu terceiro mandato, eleita com 68 mil votos.
À Ponte, Leci faz questão de lembrar que a sua trajetória começou na música e não na política. “Eu sempre fui marcada como compositora e cantora, sempre foram as lutas sociais, até por causa disso eu tive alguns castigos. Fiquei cinco anos sem gravadora, censurada”.
Tudo isso, pontua Leci, por usar a música como instrumento de luta pelos mais desfavorecidos e das minorias. “Isso era complicado porque não havia nenhuma menina preta ligada às escolas de samba e de repente estava eu lá, fazendo música ligada a um contexto social”.
Antes de se imaginar ocupando um cargo político, Leci cantava em comícios de Benedita da Silva, ainda durante as campanhas como deputada federal em 1986 e governadora 2001 pelo Rio de Janeiro. “Não só nessas situações, mas eu sempre digo que nas encrencas brasileiras eu estive presente. Sempre cantei por essas coisas”, lembra Leci.
Até se filiar ao PCdoB e se candidatar em 2010, Leci fez um caminho artístico fora de partidos políticos. “Eu não era de nenhum partido político, nunca fui do movimento negro. A minha coisa é a música trazendo questões de todas as minorias. Cantei para as lutas indígenas, cantei para a luta dos professores, cantei pelas Diretas Já. Eu sou preta e cantava o que eu escrevia”.
Leci lembra que em 1988, no centenário da abolição da escravatura, muitas candidaturas negras foram lançadas, mas ninguém foi eleito. “Pensei ‘o que adianta se o país não é consciente para entender que o racismo sempre existiu?’. Mas os grupos continuaram a sua luta”.
Leci Brandão: “Marielle é um mártir” | Foto: Reprodução/Instagram
Na época da ditatura, em 1976 e 1977, Leci chegou a ter músicas censuradas, mas não chegou a ser presa nem apanhar da polícia, como gosta de destacar. “Era algo mais brando porque eu ficava em cima dos palcos”.
Quando foi eleita, mais uma vez Leci via sua música sendo perseguida. “Só se falava de eu ser do samba, da Mangueira, as pessoas perguntavam se teria samba no meu gabinete e eu dizia que estava aqui para construir projetos de lei para as pautas do povo que eu sempre fui muito ligada: as favelas do Rio de Janeiro e as periferias de São Paulo”.
Logo na primeira entrevista concedida a mídia, lembra Leci, sem recordar para qual veículo, foi questionada se haveria samba e malandros sem seu gabinete. “Respondi a altura. Falei que não tinha samba, tinha pessoas trabalhando para construir os projetos, que não tinham mulatas, mas negras e que eu era uma delas, e que o samba no samba não tem só malandro tinha compositores, velha guarda, a bateria”.
Para Leci, a potência de Marielle Franco mudou a história da política brasileira. “Eu não a conheci pessoalmente. Eu vim para São Paulo em 1985, pela minha carreira artística, e não voltei para o Rio e acabei me elegendo aqui”, lembra.
“Mas sabia que tinha uma vereadora no Rio de Janeiro que era oriunda da favela e que estava levando pautas de luta para dentro da Câmara dos Vereadores. Um detalhe que me chamou atenção é que ela lutava contra uma coisa chamada milícia. Ela foi uma pessoa que nunca escondeu as pautas sérias que lutava e acabou enfrentando tudo isso”.
A execução de Marielle, se recorda Leci, não chocou apenas o Rio de Janeiro, mas o país inteiro. “A partir daí, ficou nítido que era preciso tomar uma posição, responder a isso e as coisas foram acontecendo de uma forma mais afirmativa”.
“Muitas meninas negras, meninas mesmo, não só no Rio de Janeiro, mas em todo o país, se mostraram com vontade de entrar para a política. Foi um marco de luta, que infelizmente veio da morte cruel de Marielle. Ela é a responsável desse olhar para a política de forma séria. Foi para além dos partidos. Marielle é um mártir”, define Leci.
“[Depois de Marielle] podem não ter sido todas eleitas, mas que tiveram muitas candidatas em todos os partidos isso aconteceu mesmo. Eu tenho na porta do meu gabinete a plaquinha com o nome da Marielle”, revela.
Leci conta que nunca sofreu ameaças por ser uma parlamentar negra porque já entrou na política perseguida pelas coisas que cantava. “O meu trabalho discográfico, desde o primeiro LP, tem faixas que tem críticas sociais”.
“Eu trouxe muitas pautas que chamaram a atenção das pessoas por eu vir de origem humilde, sem nenhuma faculdade. Sempre trabalhei, como operária de fábrica, telefonista, servente de escola, tudo isso chamava atenção porque quem tinha a minha caminhada e cantava o que cantava, porque tudo tinha que ser como a sociedade e a branquitude pensam”, aponta.
A parlamentar conta que sofreu ameaças em 2014, logo depois da sua segunda eleição, mas o motivo foi outro: o fato de ser ligada às religiões de matrizes africanas. “Recebi algumas coisas pela internet, ameaças de morte. Na Alesp, me ofereceram segurança, mas eu disse que não precisava porque eu tinha muita fé nos meus orixás”.
Leci, que já viveu os piores momentos da história recente do país, conta que o atual está sendo “insuportável”. “Faz mal para a minha saúde e para a minha cabeça. O pior de tudo é que eu não vejo reação do povo brasileiro, isso antes da pandemia”.
“As pessoas ficam o dia todo ameaçando de um lado e um genocida armando a população de outro. Tudo de ruim essa pessoa tem, eu me recuso a dizer o nome dele. Ele é homofóbico, machista, negacionista, racista”, finaliza.
Foto de Capa: Da esquerda para a direita: Talíria Petrone, Erica Malunguinho, Leci Brandão e Marielle Franco | Fotos: Reprodução / Instagram
O Ministério Público do Rio de Janeiro anunciou nesta quinta-feira (4) a criação de uma força-tarefa para dar continuidade às investigações sobre o homicídio da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.
Perto de completar três anos de apuração, os investigadores ainda não descobriram quem foi o mandante do crime. Dois ex-policiais militares estão presos acusados de matar a vereadora e seu motorista. Eles serão julgados pelo Tribunal de Júri.
A força-tarefa terá três promotores, sendo duas que já atuavam no caso por meio do Gaeco (Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado): Simone Sibilio e Letícia Emile. Eles atuarão exclusivamente no caso, se afastando de suas atribuições.
A criação da equipe faz parte da reformulação dos grupos especializados no MP-RJ, conduzida pelo procurador-geral de Justiça, Luciano Mattos. Ele decidiu diminuir o volume de casos sob responsabilidade deles, criando forças-tarefas pontuais para investigações complexas, como é o caso Marielle.
Sibilio recusou o convite para permanecer na coordenação do Gaeco, mas aceitou continuar à frente da investigação sobre o homicídio da vereadora.
“Este caso sempre foi prioridade para o Ministério Público. E continuará sendo, razão pela qual aceitamos o convite de retornar para esta investigação, na certeza de que toda a estrutura será oferecida para que a elucidação do caso aconteça. Gostaria de ressaltar o meu total compromisso com a sociedade e com os familiares das vítimas no empenho e dedicação a este caso”, afirmou Sibilio, em nota.
Os três membros atuarão em 14 procedimentos abertos a partir da investigação do homicídio.
Um dos desdobramentos do caso Marielle foi a Operação Intocáveis, que investigou a atuação da milícia de Rio das Pedras. A apuração apontou como chefe do grupo criminoso o ex-policial militar Adriano da Nóbrega, homenageado pelo senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e defendido em discurso em 2005 pelo presidente Jair Bolsonaro.
A ex-mulher e a mãe de Adriano estavam lotadas no antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa. As duas foram acusadas de envolvimento no esquema da “rachadinha” na denúncia oferecida pelo MP-RJ contra o senador.
Foi na deflagração da Operação Intocáveis que os investigadores apreenderam o celular de Danielle da Nóbrega, ex-mulher de Adriano, com mensagens de Fabrício Queiroz, apontado como operador financeiro do esquema de Flávio. Nelas, os promotores afirmam haver provas de que ela era uma “funcionária fantasma” e contribuía para a “rachadinha”. A troca de mensagens, obtida num desdobramento do caso Marielle, é uma das poucas provas contra Queiroz que não estão contaminadas pela quebra de sigilo bancário e fiscal anuladas pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça). A prova pode ajudar os promotores do caso Flávio a embasar um novo pedido de quebra de sigilo bancário e fiscal, para reabrir as investigações.
Foto de capa: Tania Rego/ Agencia Brasil
Esta é uma matéria da Folha Press, a agência de notícias da Folha de São Paulo, serviço contratado pela Casa 1.
A remoção de cerca de 400 famílias de imóveis na região da cracolândia foi denunciada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo e pela ONG Conectas, nesta quinta-feira (4). A retirada dos moradores está marcada para ocorrer até o dia 10 deste mês, durante o pior período da pandemia do novo coronavírus. A preocupação da defensoria e da entidade é que boa parte dos moradores desses imóveis, muitos deles pensões, acabem indo parar na rua.
Pelo último censo do município, de 2019, 24.344 pessoas não tinham onde morar –11.693 estavam acolhidas em albergues públicos e outras 12.651 dormiam nas ruas.
Outros dados, do governo federal, indicam um número maior: pelo Cadastro Único, sistema do Ministério da Cidadania, em dezembro de 2019 havia 33.292 famílias sem-teto na capital paulista.
Com a crise causada pela pandemia, o número de moradores de rua vem crescendo, segundo entidades e voluntários que trabalham com essa população.
O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos e sujeito à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
No local em que os imóveis serão derruabados –duas quadras na Luz em que alguns deles já foram ao chão–, a Cohab, órgão da prefeitura, pretende fazer 700 unidades de moradias populares por meio do Programa de Parceria Público-Privada Casa Paulista, do governo do estado.
O local é uma Zeis (Zona Especial de Interesse Social), classificação da legislação municipal para áreas voltadas à construção de moradia social. Desde o final do ano passado, uma liminar obtida pela defensoria impedia a administração municipal de fazer a desapropriação dos imóveis e retirar os moradores. As famílias, obrigava a medida judicial, deveriam receber da prefeitura apoio em ações sociais e de saúde –o país e o estado de São Paulo vêm registrando recordes de mortes causados pelo coronavírus dia após dia.
No último mês, a liminar foi derrubada e a prefeitura autorizada a retirar os moradores dos imóveis, grande parte deles pensões habitadas por famílias de baixa renda.
Os dois quarteirões que serão derrubados, conhecidos por quadras 37 e 38, ficam ao lado da obra do Hospital Pérola Byington, previsto como parte da ação de revitalização da cracolândia. O projeto tem forte rejeição de moradores, entidades e ONGs que atuam no local.
De acordo com a defensoria, um dos problemas com a nova remoção é que apenas 190 das cerca de 400 famílias foram cadastradas pela prefeitura para receber o auxílio-aluguel de R$ 400 mensais.
“É uma região com uma dinâmica própria. Muita gente chega e sai. Os cadastros são de 2017, estão desatualizados”, afirma a defensora pública Fernanda Balera.
Os problemas não param por aí. O valor oferecido pela prefeitura é insuficiente para alugar qualquer imóvel na região central da cidade. “Tem gente que mora nesses locais há mais de 20, 30 anos, que têm a vida toda organizada no centro, escola dos filhos, trabalho, e que terão que ir para longe porque R$ 400 não paga nem um quarto por ali”, diz a defensora.
São pessoas como Juliana Ribeiro da Silva, 35, que trabalha na própria pensão em que vive com o marido e quatro filhos. “Meu marido teve um AVC e meus filhos todos estudam aqui, o que querem que eu faça com R$ 400? Onde vou morar?”, diz.
Para a defensora pública a resposta não é tão difícil de imaginar no caso de muitas famílias. “Alguns deles vão acabar indo pra rua, vão dormir na rua”, afirma.
A denúncia protocolada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos aponta que o tipo de assitência oferecida pela Secretaria Muncipal de Assistência e Desenvolvimento Social evidencia qual será o destino dessas pessoas.
“Salienta-se que a SMADS oferece políticas voltadas para a população em situação de rua. Com isso, a prefeitura está admitindo que irá remover 375 famílias sem atendimento habitacional, as quais passarão a ser consideradas como população em situação de rua”, diz o documento. Fernanda também contesta a retirada dos moradores durante a pandemia. “Se é para construir mordias populares, as pessoas que ali vivem deveriam ser incluídas. E por que fazer isso, colocar elas na rua, durante a pandemia?.”
Em julho do ano passado, o Ministério Público recomendou à prefeitura que paralisasse as remoções de moradores que vivem em hotéis e pensões na cracolândia tendo em vista a excepcionalidade desse período e por esses imóveis serem, de fato, a residência de muitas famílias e não apenas locais de passagem,
Para o psiquiatra Flávio Falcone, conhecido na região como Flávio Palhaço, e que atua em ações de redução de danos na cracolândia há quase 10 anos, a retirada dos moradores atende a uma lógica do mercado imobiliário praticamente impossível de ser freada.
“O prefeito Bruno Covas (PSDB) está retribuindo o apoio que recebeu das empresas desse setor durante a eleição”, diz.
A despropriação do quarteirão ao lado para a construção do Pérola Byington também foi cercada por polêmicas, em 2018. Até a véspera da saída dos moradores, cerca de 50 famílias, das 225 que moravam no local, resistiam a sair.
Desde o início da pandemia do novo coronavírus, a situação de moradores e usuários de drogas na cracolândia é alvo de atenção por parte de ONGs e entidades que atuam no local. A pressão da sociedade civil fez com que a prefeitura adotasse medidas de mitigação do contágio.
OUTRO LADO
A Prefeitura de São Paulo afirma que “cumpre rigorosamente todo o procedimento pactuado com o Poder Judiciário para atender as 190 famílias que moravam na região da Luz em 2017, quando foram cadastradas para receber moradia digna e definitiva.”
Em nota, informa que as famílias receberão o auxílio-aluguel até que recebam moradia definitiva. “O cadastro de todas as famílias que habitavam o local foi aprovado pelo Conselho Gestor da ZEIS-3 e ratificado pelo Judiciário. Todas as tentativas de reverter o atendimento a essas pessoas, seja por ação proposta pela Defensoria Pública ou pelo Ministério Público, foram rejeitadas”, afirma a nota.
Sobre a legalidade da ação, afirma que “o Tribunal de Justiça vem reiteradamente atestando a legalidade das ações do município e do Governo do Estado em prover habitação a pessoas em situação de vulnerabilidade e, consequentemente, adensar e requalificar a região central da cidade”.
A administração municipal diz que a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social “acompanha as ações relativas às desapropriações na região das quadras 37 e 38 a fim de identificar os casos não contemplados pela política habitacional e cadastrar os indivíduos e famílias com interesse em acolhimento na rede socioassistencial”.
A pasta afirma que “não é possível destinar unidades para as famílias que hoje moram no local, mas não foram cadastradas em 2017, pois isso implicaria em furar a fila dos programas habitacionais do município.”
Ainda sobre o destino dessas pessoas, a secretaria diz que “os centros de acolhida do município de São Paulo, na data de 03/03/2021, possuíam mais de 1.600 vagas disponíveis em suas diversas modalidades, número suficiente para englobar todos aqueles que manifestarem interesse por ocasião das ações de desapropriação”.
Foto: Patrícia Cruz / Fotos Públicas.
Esta é uma matéria da Folha Press, a agência de notícias da Folha de São Paulo, serviço contratado pela Casa 1.
Conhecido como “Padre Rebelde”, ele foi notícia por marretar, literalmente, a arquitetura hostil de São Paulo. Sua iniciativa fez com que outros grupos se organizassem para derrubar instalações antipessoas em situação de rua em outras cidades. Confira outros momentos exemplares de Padre Júlio.
Por Thais Eloy, produtora de conteúdo freelancer da Casa 1
Coordenador da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo e pároco da Igreja São Miguel Arcanjo na Mooca, bairro da zona leste da cidade, Padre Júlio é referência nacional na luta pelos direitos humanos. Atuou durante toda sua vida ao lado de refugiados, da população LGBTQIA+, dos portadores de HIV e da população carcerária. Recentemente, ganhou destaque midiático pelo seu trabalho com as pessoas em situação de rua na capital paulista.
Padre Júlio segue a Teologia da Libertação. Libertador em sua essência, o movimento defende que, para viver o Evangelho de Cristo, é preciso estar ao lado dos oprimidos e lutar em conjunto pelos seus direitos. Envolvendo várias correntes de pensamento, seus seguidores interpretam os ensinamentos de Jesus Cristo buscando combater as injustiças sociais impostas a grupos oprimidos. A doutrina entrou oficialmente para a história com um livro chamado “Teologia da Libertação”, escrito por Gustavo Gutiérrez, um padre peruano. Muito popular na América Latina, o movimento teve alguns de seus principais formuladores condenados pela Congregação para a Doutrina da Fé em meados dos anos 80, acusados de incentivar a luta de classes. O próprio Vaticano não abraçou formalmente a corrente até a nomeação do Papa Francisco. Outro praticante brasileiro da Teologia da Libertação é Frei Betto. Preso duas vezes durante a ditadura militar, ele foi coordenador de Mobilização Social no governo Lula, ajudando na estruturação do programa “Fome Zero”.
Contudo, lutar ao lado das pessoas em vulnerabilidade social cobra um preço alto. Padre Júlio foi alvo de ameaças muitas vezes. A mais recente foi em setembro de 2020, quando precisou registrar um boletim de ocorrência após virar alvo de ofensas de um candidato à prefeitura de São Paulo, Arthur do Val (Patriota). Conhecido pelo apelido “Mamãe Falei”, o candidato publicou em suas redes sociais vídeos nos quais chamava Lancellotti de “cafetão da miséria”. Os vídeos foram retirados do ar por determinação da Justiça Eleitoral.
Em um período no qual a ausência do Estado está cada vez mais sendo preenchida por voluntários da sociedade, a postura combativa de Padre Júlio é um respiro para um país que se acostumou a ver líderes políticos e espirituais usando o nome de Deus para justificar preconceitos e perseguir vítimas de injustiças históricas.
A seguir listamos 18 momentos em que Padre Júlio “fez tudo sozinho”:
Falou sobre o dever combativo do cristianismo.
2. Se mobilizou para cadastrar pessoas em vulnerabilidade extrema no programa de auxílio emergencial do governo federal.
4.Recebeu uma ligação do Papa Francisco, parabenizando-o pelo seu trabalho com os mais vulneráveis.
5.Beijou os pés da transexual Sheila que acompanhava a Via Sacra do Povo da Rua.
6. Brigou com os vizinhos do bairro que queriam retirar o Centro de Acolhimento Temporário (CAT) da Mooca.
7. Contestou os dados oficiais da prefeitura e falou sobre as mortes por frio das pessoas em situação de rua.
8. Diretor da Casa Vida, ele mantém sob sua tutela crianças órfãs e portadoras do vírus HIV.
9. Marretou as pedras instaladas para “expulsar” moradores de rua na zona leste da cidade e cobrou políticas públicas para essa parcela da sociedade. De acordo com o Censo da População em Situação de Rua de 2019, São Paulo tem aproximadamente 25 mil pessoas vivendo nessas condições.
10. Realizou o lava-pés ou “Mandamento da Humildade”, rito popular do cristianismo que simboliza a comunhão entre Jesus e seus apóstolos durante a última ceia, lavando os pés de moradores de rua.
11. Mencionou a importância do movimento antifascista em uma missa transmitida remotamente.
12.Venceu um processo contra Jair Bolsonaro.
13. Fez parte da campanha de vacinação de moradores em situação de rua.
15. Em uma cerimônia lavou os pés da transexual Viviany Beleboni, modelo que atravessou a paulista “crucificada” na 19ª Parada LGBT+ para simbolizar as violências contra mulheres trans.
16. Visitou os estudantes secundaristas na ocupação da Assembleia Legislativa de São Paulo.
17. Ofereceu a sede da “Casa de Oração do Povo da Rua” para acolher moradores de rua com suspeita de coronavírus.
18. Distribuiu e continua distribuindo alimentos para pessoas em vulnerabilidade social durante a pandemia.
Por Cyro Moraes, produtor de conteúdo freelancer da Casa 1
Lideranças de vários movimentos e associações de moradores do bairro do Bixiga, no centro de São Paulo, protocolam nesta quarta-feira, dia 10, um recurso contra a aprovação dos novos empreendimentos na grota do Bixiga. A área é tombada e abriga diversas nascentes de rios.
Marília Gallmeister, arquiteta e uma das representantes do Teat(r)o Oficina, localizado no bairro e famoso por travar uma luta de décadas com o grupo Sílvio Santos para impedir a construção de prédios no seu entorno, tem acompanhado esse avanço da especulação em diversos pontos do bairro. “Tem vários empreendimentos sendo propostos para a região da grota do Bixiga, que compreende a rua Rocha, a rua Almirante Marquês de Leão, a rua do Uma. É toda Uma geomorfologia, muito linda, com muitas nascentes e tem muitos empreendimentos que estão em fase de aprovação ali”.
O mais recente, aprovado pelo Conpresp há algumas semanas atrás, tem quase 30 andares, maior do que os propostos pelo grupo SS.
Esse movimento em defesa do bairro surgiu porque os líderes das entidades souberam que durante a pandemia houve muitos lançamentos aprovados após a criação pela Prefeitura de São Paulo no final do ano passado do Aprova Rápido, procedimento para acelerar a aprovação de empreendimentos, muitos no Bixiga.
Há cerca de 15 dias, houve o encontro do Fórum Social Mundial voltado para discutir a gravidade da situação do avanço da especulação imobiliária no Bixiga. O encontro contou com várias falas de representantes de organizações do bairro, entre elas, o diretor do Oficina, José Celso Martinez Correa. Ele avaliou que a união das diversas entidades que coexistem deixa o movimento mais forte.
“Não se trata mais das três torres do grupo Sílvio Santos do lado do Teatro Oficina. É todo um xadrez de torres que tá proposto pro bairro do Bixiga com o fim de fazer terra arrasada da cultura do bairro.” afirma, Marília.
A entrega do documento, que será protocolado no Conpresp e na Secretaria de Cultura, está prevista para as 14h30 com apenas alguns representantes das entidades para evitar aglomerações e aguarda a confirmação da presença do secretário de Cultura, Ale Youssef.
Artigo escrito por Lívia Lourenço Dias (Clínica Social Casa 1), Pamela Michelena (Grupo de Trabalho Jurídico da Casa 1) e Mariana Penteado (Grupo de Trabalho de Saúde da Casa 1)
Introdução
Em meio à maior crise sanitária em que o Brasil se encontra, desencadeada pela covid-19, que até agora já fez mais de cento e oitenta mil vítimas, e os consequentes debates sobre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde do atual presidente Jair Bolsonaro engendra mais uma proposta de destruição da saúde pública no país. O alvo agora são as políticas de saúde mental, fruto de anos de luta de diversos movimentos sociais e articuladas durante diversos governos do regime democrático brasileiro, entre os anos de 1991 a 2014.
Enquanto boa parte da esfera pública joga luz nas questões de saúde mental que acomete brasileiros e brasileiras e se acirra durante o período de quarentena e isolamento social, o governo federal planeja mais um sequestro de direitos e um ataque frontal à Reforma Psiquiátrica, pautada em pilares de respeito aos direitos humanos, autonomia, cuidado, territorialidade e um compromisso ético com os usuários, familiares e a sociedade.
O momento não é fortuito, visto que as revogações das portarias propostas pelo ministério da Saúde chegam em um período em que, caso executadas de acordo com as intenções do governo, coincide com o recesso do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, o que dificultaria eventuais questionamentos e barreiras para a sua realização.
Por isso, diversas entidades, conselhos de classe e movimentos trabalham em conjunto na organização de uma agenda que leve informação e dados científicos sobre a importância e eficiência dos atuais programas de saúde mental e na defesa da reforma psiquiátrica e luta antimanicomial.
O que é a Reforma Psiquiátrica
Antes de compreender a Reforma Psiquiátrica, é preciso entender a que ela procurou responder.
Basicamente, foi uma resposta ao modo de lidar com as pessoas em sofrimento psíquico que se construiu nos últimos 300 anos. Quando um processo social perdura por tanto tempo, comumente perdemos a referência de seu caráter construído e as relações que se produzem passam a parecer naturais.
Com a construção histórica da noção de transtorno mental não foi diferente. Pode parecer lógico, para as pessoas do século XX, que o eixo doença mental – internação – psiquiatria caminhe sempre junto. Mas nem sempre foi assim.
Os modos de sofrer e de lidar com as pessoas que sofrem são essencialmente culturais e políticos. Embora a figura da loucura tenha existido de maneira permanente na história da humanidade, suas formas, seus nomes e as maneiras de olhar para ela se transformaram ao longo dos séculos (Foucault, 1961). A loucura já foi vista como manifestação dos deuses na Grécia Antiga ou de forças da natureza na Idade Média.
A história moderna e contemporânea foi marcada pela loucura nomeada como transtorno mental, sobre o qual deve atuar o poder médico e o saber psiquiátrico e que deve ser tratada no âmbito manicomial.
Esse movimento de olhar para a loucura como desvio e como processo de adoecimento, ao mesmo tempo que possibilitou o direito à assistência médica, retirou o direito à cidadania.
Os manicômios, enquanto instituições, trazem em si a lógica do isolamento e do encarceramento da diferença. A internação manicomial foi sempre pautada pela perda de direitos e pela violência: para além da privação de liberdade e da perda da centralidade em sua própria história, as pessoas eram (e ainda são) submetidas a torturas e violências diversas. O trabalho da jornalista Daniela Arbex, em seu livro “Holocausto Brasileiro”, traz um relato detalhado das violações de direitos humanos e do genocídio acontecido no Hospital Colônia de Barbacena, que resultou em 60 mil mortes (para conhecer mais livros e filmes sobre a questão antimanicomial, clique aqui).
O uso do nome Holocausto não é uma coincidência, já que foi a partir do final da Segunda Guerra, com a constatação dos horrores dos campos de concentração, que foi gerado um padrão possível de comparação para as imagens das pessoas institucionalizadas em manicômios e a violência sistematizada que sofriam.
O período pós-Guerra trouxe a preocupação, em várias áreas (na Filosofia, na Sociologia, na Psicologia), de olhar para o ser humano como um ser em contexto: não como um ser biológico isolado, mas como multideterminado. Nas décadas de 50 e 60 começaram várias tentativas de superação dos asilos e manicômios ao redor do mundo: Maxwel Jones com as Comunidades Terapêuticas na Inglaterra, a Psiquiatria Comunitária nos Estados Unidos e a Psiquiatria Democrática na Itália. A experiência italiana, tendo por seu maior expoente Franco Basaglia (2005), passou a entender a loucura como um fenômeno humano, atravessado pelo contexto e, portanto, que deve ser lida dentro dos recortes da subjetividade, dos laços familiares e comunitários e pela sociedade como um todo.
No Brasil, a preocupação com a reconstrução dos modos de lidar com a loucura veio um pouco depois, já na década de 80, no contexto da redemocratização do país.
O Movimento pela Reforma Sanitária trouxe a ideia de saúde como direito de todos e como um dever do Estado, que resultou, após anos de luta, na instituição do SUS. Isso é importante porque os princípios organizadores do SUS valem para a rede de atenção em Saúde Mental, como por exemplo:
Regionalização e territorialidade: o cuidado deve ser localizado no território onde a pessoa vive, superando a lógica de exclusão e afastamento da comunidade;
Hierarquização: a atenção em saúde deve acontecer em diversos níveis, de acordo com as necessidades de assistência;
Descentralização: a administração e o controle da rede não devem estar em uma única esfera de poder, mas sim são de responsabilidade da federação, do estado e do município;
Assistência integral: direito à assistência independentemente das vulnerabilidades regionais;
Participação popular: o povo tem direito a controlar e opinar nas formas de assistência.
Em 1987 aconteceu a Primeira Conferência Nacional de Saúde Mental, que deu origem ao Projeto de Lei Paulo Delgado, que estabelece novos paradigmas de cuidado para as pessoas em sofrimento psíquico. Esse sistema cria novos equipamentos para substituir o hospital psiquiátrico, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura e os leitos de atenção integral (para casos de internação, deixando de lado os leitos em Hospitais Psiquiátricos e passando para Hospitais Gerais, e para os CAPS III).
Posteriormente, em 2011, a política nacional de saúde mental passa a ser sistematizada no modelo da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Por que a RAPS é considerada modelo internacional?
A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), pautada na atual política nacional de saúde mental do Brasil e, ameaçada pelo governo Bolsonaro, é reconhecida por diversos órgãos internacionais como a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), além de amparada por inúmeros estudos científicos.
Compreender sua abrangência, atuação no território e diretrizes pautadas na desinstitucionalização das diversas vivências, garantindo a livre circulação e a inserção ou reinserção dessas pessoas em suas comunidades e na sociedade e defender a RAPS é fundamental para a construção de uma sociedade estruturada no respeito aos direitos de todos os cidadãos e cidadãs ao acesso a um serviço de saúde justo, qualificado e integral.
O processo de estruturação e consolidação da RAPS ocorreu em vários eixos, de acordo com os já citados princípios do SUS, sendo os principais:
DESINSTITUCIONALIZAÇÃO
Processo de garantir o cuidado em liberdade, visando garantir o livre trânsito, a proximidade com a família e a comunidade, a inclusão e a participação.
Substituição de leitos em hospitais psiquiátricos para leitos em hospitais gerais;
Isso gera uma redução no tempo de internação, deixando de criar moradores de hospitais psiquiátricos (o critério para ser considerado morador de hospital psiquiátrico é que se passe de 2 anos ininterruptos de internação). Embora a maioria dos 25000 leitos no Brasil ainda estejam em hospitais psiquiátricos, a redução foi extremamente importante.
Criação dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT);
As residências terapêuticas seguem a lógica da assistência integral e aparecem como uma tentativa de reparação social pelo fato de que pacientes de saúde mental foram transformados em moradores de hospitais psiquiátricos (privados por anos de sua liberdade, institucionalizados e afastados da vida social).
Programa De Volta pra Casa.
Assistência e auxílio-reabilitação psicossocial a pacientes que tenham permanecido por longos períodos em internação. 4349 pessoas se beneficiaram do programa entre 2003 e 2015.
INTEGRAÇÃO COM A ATENÇÃO BÁSICA
A Atenção Básica é a porta de entrada preferencial no SUS e entender que a Saúde Mental é um tema que aparece em diferentes atendimentos no campo da saúde é essencial para a capilaridade do sistema. Isso permite lidar com as questões antes de que seja necessária uma intervenção médico-psiquiátrica, identificando possibilidades de acompanhamento em Saúde Mental de maneira mais integral, passando inclusive pela prevenção e pela identificação de momentos importantes da vida psíquica de pessoas ou grupos, fornecendo assistência antes de que os problemas irrompam (por exemplo junto a escolas e a jovens mães).
Criação de NASFs (Núcleos de Apoio à Saúde da Família) para o diálogo interdisciplinar e a proposta de clínica ampliada nos territórios;
Programa Consultório na Rua, para a atenção de pessoas em situação de rua, visando trabalhar a questão de acesso aos equipamentos de saúde.
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ESPECIALIZADA
Centros de Convivência e Cultura;
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS em suas diferentes modalidades). Foram implantados cerca de 3100 CAPS no Brasil, com altas taxas de sucesso segundo Tomasi (2010) (redução em quantidade de crises, menor quantidade de hospitalizações de usuários do serviço, redução no uso de medicação).
Além da preocupação com o reconhecimento de pessoas em sofrimento psíquico como cidadãos de direitos e com o aumento e desenvolvimento do cuidado em rede baseado na noção de comunidade, a reforma do sistema de saúde mental mudou também os padrões de financiamento dos equipamentos de saúde e assistência. Portanto, é uma ação essencialmente política e, quando ameaçada, devemos nos perguntar: quem ganharia com isso? A resposta é simples, quem perde dinheiro com o cuidado em rede são:
Os donos de comunidades terapêuticas ligadas a instituições religiosas (e portanto a Bancada da Bíblia também) e que sistematicamente violam os direitos das pessoas internadas;
Donos de hospitais psiquiátricos;
A indústria farmacêutica, já que o cuidado em rede reduz os processos de medicalização.
São esses os atores institucionais interessados em lucrar com o desmonte da RAPS.
O que é o Revogaço?
No início deste mês de dezembro, o Ministério da Saúde apresentou ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e ao Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasens) uma proposta que prevê a revogação de cerca de 100 portarias sobre saúde mental, editadas desde a década de 90 e que atingirão diversos programas e serviços oferecidos pelo SUS.
O chamado revogaço, pautado em um discurso de falta de eficácia, produtividade e obsolescência do sistema, se propõe a desmantelar a RAPS e, portanto, os serviços e equipamentos por ela ofertados como os já mencionados anteriormente: os CAPS, os Serviços Residenciais Terapêuticos, o Consultório na Rua e o De Volta para Casa. Soma-se a isso, a suspensão do Programa de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar do SUS.
A proposta também afrouxa o controle sobre as internações involuntárias, que hoje precisam ser comunicadas previamente ao Ministério Público.
A derrubada de todas essas portarias e seu consequente efeito nas políticas públicas em saúde mental trariam um efeito desastroso para toda a sociedade. Desmantelar serviços significa desassistir pessoas, pessoas que estão inseridas em uma comunidade, na qual todos nós fazemos parte. Além de abrir caminho para um retrocesso histórico no campo das lutas antimanicomiais e do encarceramento em massa.
É fundamental explicitar, que o revogaço atende a interesses de uma parcela única da população, que persegue a manutenção de um poder e saber único, pautados no domínio e controle dos corpos.
O que a população LGBTQIAP+ tem a ver com isso?
A Luta Antimanicomial não é de interesse apenas de profissionais de saúde e de usuários do sistema de saúde mental. A lógica manicomial não diz apenas de uma instituição ou de um lugar, ela é uma forma de pensar como lidar com a alteridade e com a diferença.
Os hospitais psiquiátricos atuaram historicamente como um meio de afastar das cidades (fisicamente, já que os manicômios eram construídos distantes dos centros, e simbolicamente, pois criam a ideia de que as pessoas em sofrimento psíquico não podem conviver em sociedade) os indesejáveis. Nessa lista de pessoas que não se enquadravam na norma, além de pessoas em sofrimento psíquico, estavam também aquelas consideradas como perturbadoras da ordem, como mulheres que desobedeciam seus maridos, crianças em conflitos com os pais e pessoas LGBTQIAP+.
A despatologização das identidades LGBTQIAP+ é absolutamente recente. Apenas em 1990 (particularmente no dia 17 de maio, que é também o dia nacional de Luta Antimanicomial) a OMS retirou a homossexualidade da CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde). E as transexualidades deixaram de ser classificadas como transtornos mentais pela OMS apenas em 2019. A luta é, portanto, muito mais próxima do que pode parecer.
Para além dos manuais classificatórios e de uma estrutura institucional, a lógica manicomial é uma ideologia que fundamenta a possibilidade de sistematicamente excluir e violentar a diversidade. Portanto, não é possível falar de combate ao machismo, ao racismo, ao classismo e à LGBTQIAP+fobia sem falar de Reforma Psiquiátrica.
Nesse sentido, a Casa 1 reafirma seu compromisso ético com a defesa do SUS e da RAPS, combatendo a lógica higienista e de extermínio de corpos e corpas diversas.
A Luta Antimanicomial é parte da luta por direitos da população LGBTQIAP+!
Por que o que está acontecendo é grave?
As portarias dos ministérios (como estas que estão sendo discutidas) são instrumentos de regulação para implementação de políticas públicas, para determinar o funcionamento mais específico das leis (assim como outras normas). Como elas são feitas dentro das estruturas dos ministérios, elas podem ser “excluídas” por eles também (por meio da revogação).
Como o Presidente da República é quem indica quem serão os Ministros, existe uma influência política clara no que acontece. Exemplo disso é lembrarmos das trocas constantes que ocorreram durante o ápice da Pandemia, por discordância do Presidente com as estratégias adotadas pelos vários Ministros da Saúde que ele demitiu.
O que não pode acontecer, e que está acontecendo, é a utilização destes espaços e poderes como formas de acabar com políticas e instituições que se provam mais do que necessárias para a sobrevivência da população brasileira.
O artigo 196 da Constituição Federal fala: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
Já temos raros espaços e programas públicos para atenção à saúde mental, especialmente em um momento delicado em que nos encontramos, observa-se ainda mais a dificuldade do sistema em dar conta de toda a demanda. Por isso, a intensificação do sucateamento do sistema público de saúde, e principalmente, a destruição do pouco que resta deste sistema para atenção à saúde mental, viola gravemente a Constituição Federal.
Como acompanhar o que está acontecendo?
Para acompanhar dados reais e concretos sobre o funcionamento das instituições e serviços que podem ser afetados pelo revogaço, vale sempre acompanhar o DATASUS . Contra o discurso infundado de ineficácia, a informação é sempre a melhor saída para alimentar um debate realista.
Como estratégia de luta contra o revogaço, foi criada a Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial , composta por profissionais de diversas especialidades atuantes na RAPS e outras instâncias, movimentos sociais, usuários do sistema de Saúde Mental e familiares. Vale acompanhar as Assembléias ou as postagens para entender como se articular.
Referências
Basaglia, F. (2005). Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond.
Foucault, M. A História da Loucura na Idade Clássica (1961). 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
Lívia Lourenço Dias é psicanalista formada pelo Instituto Sedes Sapientiae. Atua nas áreas clínica e social. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde do Centro de Acolhida e Cultura Casa 1 e da Clínica Social Casa 1
Pamela Michelena De Marchi Gherini – Advogada, formada em Direito pela USP, Sócia do Escritório Lang & Michelena Advogadas e Coordenadora do Grupo de Trabalho Jurídico da Casa 1.
Mariana Penteado é psicóloga formada pela USP. Atua nas áreas clínica e social. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde do Centro de Acolhida e Cultura Casa 1