A Gênero e Número revela como foram os primeiros meses das vereadoras trans em diferentes Câmaras Municipais do país
Por Vitória Régia da Silva
As eleições de 2020, marcadas pela excepcionalidade das restrições impostas pela pandemia, registraram um feito histórico: com 30 candidaturas trans eleitas, a representatividade desta parte da população nos legislativos municipais quase quadruplicou em relação a 2016, quando apenas 8 pessoas trans foram eleitas. Após seis meses de mandato, a Gênero e Número conversou com três delas sobre sua atuação nas câmaras municipais, os preconceitos e violências que sofrem e a dificuldade que encontram para levar seus projetos adiante.
Embora de regiões diferentes do país, as experiências de Linda Brasil (PSOL/SE), em Aracaju, Lins Roballo (PT/RS), em São Borja, no Rio Grande do Sul, e Duda Salabert (PDT/MG), em Belo Horizonte, são muito semelhantes. Ao ocupar um espaço ainda dominado por homens brancos e heterossexuais, elas enfrentam dificuldades para exercer o mandato e propor projetos. Segundo elas, a tentativa de deslegitimar suas presenças nas casas legislativas é constante. “O fato de estar na oposição e ser uma mulher trans leva a uma tentativa de silenciamento da nossa narrativa e distorção dos nossos discursos. Quando uma mulher fala, é sempre questionada. Tentam desqualificar e deslegitimar nossas pautas. Já ouvi que estava sendo desnecessária e reativa, tudo no sentido de minar nossa atuação”, afirma Linda Brasil.
Além disso, a violência política a que são submetidas as obrigam, inclusive, a mudar rotinas e repensar projetos de vida. A vereadora Benny Briolly (PSOL/RJ), a mulher mais votada de Niterói, no Rio de Janeiro, por exemplo, precisou sair do país durante um período por conta das ameaças de morte que recebeu. Já Duda Salabert considera até abrir mão do mandato municipal por mais segurança. “Recebi duas ameaças de morte. Se as ameaças aumentarem, eu terei que pensar ano que vem em uma candidatura a nível federal para ter o apoio da Polícia Federal e mudar de cidade, porque em Belo Horizonte eu fico muito exposta”, diz ela.
Para a secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Bruna Benevides, o legislativo se omite quando não toma atitudes contundentes para defender o mandato das vereadoras eleitas. “O que chama a atenção é o fato de que há uma insistência em não permitir o desempenho das funções para as quais as vereadoras foram eleitas, criando um ambiente altamente violento, inclusive dentro das próprias câmaras. O legislativo não tem tomado posição, no sentido de impedir demonstrações explícitas, diretas e públicas de transfobia vindas de outros parlamentares, assessorias ou da própria casa. Vemos que existe uma transfobia institucional e transfobia por omissão”, afirma.
Linda Brasil (PSOL/SE)
Mestre em educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e ativista dos direitos humanos, Linda Brasil foi a primeira mulher trans eleita à vereança de Aracaju e a parlamentar mais votada para a Câmara Municipal da cidade. Ela é membro da Comissão de Saúde, Direitos Humanos, Assistência Social e Defesa do Consumidor e suas principais propostas são relacionadas à comunidade LGBT+ e à questão racial.
Ela conta que é desafiador ser a primeira mulher trans no município e estar em um lugar de oposição e afirma que existe uma tentativa de silenciamento e de interrupção de suas ações. Um exemplo, diz, foi o que aconteceu com o projeto de lei nº 07/2021, de sua autoria, que incluiria a Semana da Visibilidade Trans no calendário oficial de eventos do município de Aracaju. Com oito votos contra, sete a favor e duas abstenções, o PL foi rejeitado sem discussão no plenário da Câmara Municipal.
Muitos parlamentares sequer justificaram o voto. E quem tentou o fez argumentando que não existe diferença de tratamento entre as pessoas – não custa lembrar que o Brasil lidera o ranking de assassinato de pessoas trans e relatório da Antra mostra que, só nos primeiros quatro meses deste ano, 56 pessoas trans foram assassinadas no país. A justificativa para a não aprovação do projeto, segundo Brasil, seria a transfobia institucional. Ela diz que no mesmo dia em que seu projeto de lei foi rejeitado, cinco outros foram aprovados em plenário por unanimidade, sem necessidade de voto nominal, como aconteceu com o seu. Por fim, ela foi informada que, por tornar pública sua insatisfação com a decisão, seu mandato poderia ser analisado pelo conselho de ética da Câmara.
A tentativa de incluir a Semana da Visibilidade Trans no calendário oficial de eventos da cidade também motivou a manifestação do Conselho Nacional dos Direitos da Cultura Cristã, que publicou uma nota em que critica Linda Brasil por se referir aos cristãos como transfóbicos, classificando suas palavras como um ataque à cultura e à democracia, e afirma que o fato de o projeto não ter sido aprovado não pode ser encarado como perseguição, mas como entendimento dos representantes do povo. Para a vereadora, a causa maior de sua indignação não é nem a rejeição do projeto simplesmente, mas a forma como foi feita e sem nenhuma justificativa. “Por questões moralistas, com base no fundamentalismo religioso, tentam inviabilizar nossas pautas”, afirmou.
Lins Roballo (PT/RS)
Única mulher e negra eleita em São Borja, no Rio Grande do Sul, a vereadora trans Lins Roballo (PT/RS) acredita que a resistência e as dificuldades que encontra para exercer seu mandato têm um fundo de preconceito de gênero, racial e LGBTfobia.
Presidente da Comissão de Juventude, Cultura, Transporte, Infraestrutura e Meio Ambiente e relatora de duas comissões especiais da Câmara Municipal de São Borja, ela diz que seu mandato enfrenta um grande desafio por conta da estrutura político-administrativa e da questão partidária e ideológica.
Leia o depoimento completo da vereadora à Gênero e Número aqui.
Duda Salabert (PDT/MG)
O cenário não é diferente em Minas Gerais. Parlamentar mais votada da capital mineira, Duda Salabert (PDT/MG) também encontra resistência na Câmara Municipal da cidade: “A nossa presença enquanto corpo e identidade já causa incômodo no setor conservador da câmara, e temos travado batalhas porque sabemos que o peso que carregamos é maior que o de outros parlamentares. O nosso trabalho é dobrado por haver uma estrutura social que não legitima nossa identidade.” Segundo Salabert, ao mesmo tempo que existe apoio popular, que a levou a ser a vereadora mais votada na cidade, também é grande o enfrentamento dos parlamentares que têm dificultado o avanço dos seus projetos.
Salabert afirma que quando se fala das pautas relacionadas à população LGBT+, a resistência é ainda maior, e cita como exemplo seu primeiro projeto de lei apresentado, o PL 53/2021, que tratava da criação do “Programa Municipal de Empregabilidade para pessoas em situação de vulnerabilidade social”, incluindo pessoas trans, mulheres vítimas de violência e pessoas em situação de rua. O PL foi rejeitado e arquivado com a justificativa de inconstitucionalidade, sem maiores discussões.
“Há setores mais reacionários que querem frear o nosso avanço. Por dois motivos: por eu ser a pessoa mais votada da história e por ser uma pessoa trans. Ao mesmo tempo, temos buscado o diálogo, consenso e fortalecimento porque nossas pautas são essenciais para a criação de uma cidade mais justa”, diz ela, que é presidente da Comissão Especial de Estudo sobre a proteção e defesa dos animais.
Avanços e pioneirismo
Apesar dos enfrentamentos e resistências nas Câmaras Municipais, as vereadoras trans têm conseguido ocupar lugares de destaque nas comissões das casas legislativas, principalmente nas relacionadas a direitos humanos. Além das três já citadas, Thabatta Pimenta (PROS/RN) é presidente da Comissão de Educação, Cultura, Saúde e Assistência na Câmara Municipal de Carnaúba do Dantas, no Rio Grande do Norte; Erika Hilton (PSOL/SP) preside a Comissão de Direitos Humanos na Câmara Municipal da capital paulista; e Benny Briolly (PSOL/RJ) é presidente da Comissão Permanente de Direitos Humanos, da Criança e do Adolescente, vice-presidente da Comissão Permanente de Fiscalização das Fundações Municipais, Autarquias e Empresas Públicas e da Comissão Permanente de Defesa do Consumidor e Direitos do Contribuinte de Niterói.
Segundo Bruna Benevides, secretária de articulação da Antra, embora o cenário seja adverso, as vereadoras trans estão fazendo uma diferença enorme e transformadora para dentro e para fora da política brasileira.
“A maior resposta que as parlamentares estão dando para as ameaças e dificuldades que sofrem é se organizar politicamente e demonstrar que não estão limitadas a sua identidade de gênero ou aos grupos aos quais fazem parte. Pelo contrário, elas trazem a interseccionalidade e coletividade na prática do dia a dia ao assumir comissões, audiências públicas e propostas de lei. Os estados e municípios têm muito a ganhar com a presença delas, e esses seis meses mostram seu compromisso com a sociedade”, destaca.
E aos poucos elas vão fazendo história. Em maio, pela primeira vez na história da Câmara de Belo Horizonte, a reunião da Comissão da Mulher foi presidida por Duda Salabert, uma travesti. Ela presidiu uma audiência pública sobre o impacto da pandemia para as mulheres. “É importante estarmos nesses espaços porque promovem o debate qualificado e técnico sobre esses temas . Eu tenho um bom contato com as outras parlamentares, a questão é que como a mulheridade (sic) também é plural, buscamos construir um diálogo respeitoso, que respeite as nossas visões diferentes sobre sociedade e políticas públicas.”
Mulheres trans e travestis nas Câmaras Municipais
A maioria das eleitas está no Sudeste e em cidades do interior do país
Disparidade de identidade de gênero
Pessoas trans representam menos de 1% do total de eleitos
Violência política
A violência política de gênero segue sendo um desafio aos mandatos das vereadoras trans. Em janeiro, Erika Hilton chegou a protocolar uma ação contra 50 pessoas suspeitas de fazer ameaças transfóbicas e racistas contra ela na internet, além de ter registrado um boletim de ocorrência por ameaça após ser perseguida por um homem dentro da Câmara Municipal de São Paulo.
No fim de maio, a vereadora Benny Briolly (PSOL/RJ) voltou ao Brasil depois de ter saído do país por conta das ameaças de morte que recebeu. As ameaças começaram ainda na campanha eleitoral e pioraram durante os primeiros meses do seu mandato. Ela chegou a solicitar proteção à polícia, mas nenhuma medida de segurança foi implementada.
“Segundo investigações da polícia, é um nome falso. E essa pessoa também se identifica como alguém que pertence ao mesmo grupo que mandou executar a minha amiga e companheira de partido Marielle Franco. Senti muito medo. Esse sentimento é recorrente, cotidiano”, desabafou a vereadora em entrevista ao “Fantástico”, da Rede Globo.
As ameaças de morte também tiveram impacto na vida da vereadora Duda Salabert. Professora há 21 anos, ela foi demitida em fevereiro deste ano da escola onde dava aula, em Belo Horizonte. Para a parlamentar, a demissão foi fruto de uma das ameaças que recebeu em dezembro de 2020, que chegou a citar a instituição de ensino, além da pressão dos pais que já reclamavam da sua presença na escola.
Ainda com três anos e meio de mandato pela frente, a vereadora pensa até em abrir mão do legislativo municipal em busca de mais segurança para exercer sua atividade política. “Temos que criar uma estrutura para nos mantermos vivas, mas não podemos baixar a guarda para que não aconteça novamente o que houve com Marielle Franco. Recebi duas ameaças de morte. Se as ameaças aumentarem, eu terei que pensar ano que vem em uma candidatura a nível federal para ter o apoio da Polícia Federal e mudar de cidade, porque em Belo Horizonte eu fico muito exposta. Não tem nenhuma estrutura de segurança nos defendendo”.
Apesar do afastamento provisório, ela conta que não vai desistir de dar aula. “Eu posso estar na política, mas sou professora, pretendo continuar dando aula. Há vários vereadores que têm dois ou três empregos, como advogados e radialistas, é comum. Eu quero continuar dando aula e voltar a esse espaço até porque minha atuação em sala de aula também é uma atuação política”.
Bruna Benevides alerta para a necessidade de garantir a vida das parlamentares trans e o cumprimento do mandato. Elegê-las simplesmente não é o suficiente para assegurar a diversidade na política. Por isso, cobra destinação de recursos para a segurança, denúncia e investigação de ameaças às vereadoras. “Elas precisam tomar medidas de auto-segurança e têm que se organizar entre si para se proteger. Precisamos de um plano de proteção e segurança para essas vereadoras porque elas estão muito expostas à violência política e uma omissão frente à violência é uma resposta de que elas poderiam ser assassinadas”, alerta a secretária de articulação política da Antra.
Este mês, o tema violência política contra vereadores foi discutido em audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e teve relatos de vereadores de todo o país. Uma das propostas sinalizadas pelos vereadores na audiência foi a criação de uma rede de proteção para que vereadoras e vereadores consigam denunciar essas violências, tenham acompanhamento institucional e que a Câmara Federal notifique as câmaras municipais sobre os ataques e que seja aprovado projeto de lei que criminalize a violência política de gênero.
A Câmara dos Deputados aprovou Projeto de Lei 349/15, da deputada Rosângela Gomes (Republicano/-RJ), que combate a violência política contra a mulher e prevê a prisão de quem assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar candidatas ou detentoras de mandato eletivo ainda em 2020. A proposta está em análise no Senado Federal. Além disso, o Projeto de Lei 78/21, do deputado Alexandre Frota (PSDB/SP), que proíbe a violência política eleitoral contra candidatos LGBT+ e acrescenta medidas para não permitir propaganda partidária que menospreze a condição do cidadão LGBT+, seja candidato ou eleito, está em análise na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM).
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