Por Fabio Leal, autor convidado da Casa 1
A transgeneridade como tema não é novidade no cinema brasileiro, tanto de forma jocosa e francamente transfóbica como, mais recentemente, com respeito (às vezes até demais, deixando claro que aquelas pessoas são “o outro”, mas isso é uma outra conversa). Portanto resolvi escolher abordar o assunto aqui não de forma temática apenas, mas movido pela vontade de mostrar o seguinte: pela primeira vez, pessoas trans têm a possibilidade de tomar as rédeas do poder de contar uma história no cinema. Quando elas estão no topo da hierarquia de um set de filmagem (que é, na imensa maioria das vezes, muito rígida), qual é a história que elas querem contar? E como?
Começando com uma ótima notícia: entre o primeiro post que fiz pra esse agora, um dos filmes que citei acabou ficando online. A distribuidora Vitrine Filmes disponibilizou no YouTube o curta “Tea for Two”, o primeiro filme dirigido por uma mulher trans a entrar em circuito comercial. No cinema, era uma sessão dupla Julia Katharine: o seu Tea for Two passava junto com o longa “Lembro Mais dos Corvos”, estrelado e co roteirizado por ela. Julia, antes de ser diretora, roteirista e atriz, é sobretudo uma mulher cinéfila. É difícil encontrar um filme que ela já não tenha visto – e tido uma opinião forte sobre. E essa paixão sobre o cinema está em toda a duração do curta.
Julia costuma dizer que o filme era pra ser uma comédia romântica, mas acabou virando um melodrama. E um melodrama sem vergonha de sê-lo, sem a preocupação com realismo, sem esquecer que além do cinema na bagagem de Julia há muita novela. É comum entre cineastas o repúdio pela telenovela – e, por consequência, o melodrama, base das novelas. Pois Julia abraça esse gênero e o transforma. Acho muito interessante também notar como esse marco do cinema brasileiro é não apenas um “filme trans” como também um “filme lésbico”. É como se Julia passeasse por uma antiga videolocadora e começasse a trocar as fitas das prateleiras, provando que o óbvio, a norma estão aí para serem embaralhados conforme as necessidades e vontades e desejos de cada um.
Pois então aqui vai:
Tea for Two – Julia Katharine
Ficção
2018
São Paulo
Você pode assistir neste link: https://youtu.be/IIIbsRUPqtY
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Ainda sobre rótulos e a necessidade das prateleiras, sempre me perguntei o que seria um “filme gay” (ou, pior ainda, o cacófato “temática gay”). Qualquer filme com qualquer personagem gay é um filme gay? Qualquer filme de qualquer gênero que tenha personagens trans é um filme trans? Pois todos os filmes de hoje são filmes trans, então. E que notemos o quão diverso pode ser o tal filme trans.
Preciso Dizer que te Amo é dirigido por Ariel Nobre, e é o primeiro filme dirigido por um homem trans que eu vi furar a bolha dos festivais temáticos LGBT. Inclusive foi premiado no Goiânia Mostra Curtas do ano passado como Melhor Filme.
“Nessa última agressão tive muito medo. Mas não foi medo de morrer. Foi medo de morrer sem dizer que te amo”. O curta é um documentário poético, ou um filme-ensaio, que surgiu de uma campanha de prevenção ao suicídio de homens trans. Narrado pela atriz Renata Carvalho, o filme é cheio de imagens belíssimas e a sensação que tive ao final foi de colo.
Preciso dizer que te amo – Ariel Nobre
Documentário
2018
São Paulo
13 minutos
Você pode assistir aqui: https://www.youtube.com/watch?v=uflTFLF7eHo
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Nossa sessão de hoje termina com Jéssika, curta que passou no Festival do Rio de 2018. É uma ficção sobre uma travesti que, anos depois de deixar o interior do Nordeste, retorna para sua cidade natal. Jéssika é o primeiro filme de Galba Gogóia como diretora, que possui muitos outros talentos: também é atriz, youtuber, e produtora audiovisual – além de militante.
Jéssika – Galba Gogóia
Ficção
2018
Rio de Janeiro
18 minutos
Você pode assistir aqui: https://www.youtube.com/watch?v=CDTsyEjQlGo
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Como extras, deixo aqui um bate-papo com Julia Katharine e a atriz Gilda Nomacce (protagonista de “Tea for Two”) feito pelo canal “Mulher no Cinema”. E um registro das falas de Ariel Nobre e Galba Gogóia na roda de conversa “Corpos Políticos” na “Mostra de Tiradentes, registrada pelo Cineclube Delas.
Bate-papo com Julia Katharine e Gilda Nomacce:
Debate: Corpos Políticos na 22° Mostra de Cinema de Tiradentes. Fala de Ariel Nobre
Debate: Corpos Políticos na 22° Mostra de Tiradentes. Fala de Galba Gogóia
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Fábio Leal é diretor, roteirista e ator. Dirigiu os curtas-metragens Reforma, de 2018, e O Porteiro do Dia, de 2016. É diretor, junto com Gustavo Vinagre, do longa-metragem VHS HIV, atualmente em pós-produção. Entre 2013 e 2016 foi Coordenador de Comunicação da distribuidora Vitrine Filmes. Desde 2013 faz parte da curadoria do festival Janela Internacional de Cinema do Recife, que terá – ou não – sua 13ª edição no final do ano.