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No Dia Mundial de Luta Contra a AIDS, qual a importância de um memorial?

Por Marcos Tolentino

O edifício Copan é um dos prédios mais emblemáticos da cidade de São Paulo. Em frente a ele, uma pequena praça costuma passar desaparecida por quem frequenta o bairro de Vila Buarque, no centro da cidade. Em outubro de 1991, a Câmara Municipal de São Paulo sancionou um projeto de lei que denominava Praça Darcy Penteado este logradouro público localizado na confluência da Avenida Ipiranga com as Ruas Araújo e Major Setório. A justificativa para a escolha do nome se relacionava com a contribuição artística e cultural de Darcy Penteado e com a sua participação nas primeiras respostas sociais à epidemia de hiv e aids na cidade.

Nascido em 1926, na cidade de São Roque, interior de São Paulo, Darcy tornou-se conhecido por seu trabalho como artista plástico, mas também atuou como retratista de personalidades internacionais como a atriz Audrey Hepburn, escritor, autor e cenógrafo de obras teatrais, trabalho que lhe rendeu alguns prêmios. Em 1976, ele publicou o livro de contos autobiográficos “A Meta”, quando assumiu publicamente sua sexualidade. Dois anos depois, Darcy participou dos debates que culminaram na fundação do “Lampião da Esquina”, tornando-se um dos editores do jornal. Em 1983, ele foi um dos principais articuladores de uma reunião realizada com o secretário de saúde de São Paulo, o médico Paulo Roberto Teixeira, para elaborar as primeiras respostas à epidemia de aids na cidade. Esse encontro resultou em uma série de palestras abertas ao público sobre a nova doença, organizadas no Instituto de Saúde, entre o final de 1983 e durante todo o ano de 1984. Em 1985, ele fez parte do grupo que fundou o Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS de São Paulo (GAPA-SP), considerada a primeira organização não governamental de combate à aids do Brasil. Darcy foi então o responsável pela arte final do cartaz “Transe numa boa”, com recomendações sobre a importância do sexo seguro para a prevenção. Em 03 de dezembro de 1987, Darcy Penteado faleceu em São Paulo.

Em 18 de setembro de 2017, foi exibido na Rede Globo o último capítulo da supersérie “Os dias eram assim”. A trama da novela com formato de série, que ocupava a faixa das 23 horas no canal, abordava o romance do casal de protagonistas que se conhecia no final da Copa do Mundo de 1970, em plena ditadura civil-militar, e se reencontrava em 1984, no período das Diretas Já. Entre as personagens da segunda fase da trama estava Nanda, a irmã da protagonista, interpretada pela atriz Julia Dalavia. Nanda foi apresentada aos telespectadores como uma jovem mulher heterossexual que vivia sua sexualidade livremente e que, ao regressar de Londres para o Rio de Janeiro, descobriu que vivia com hiv. No último episódio, Nanda falece por complicações de uma pneumonia. Em uma das últimas cenas, vemos seus familiares participando de um ato de exposição de uma colcha de retalhos em um gramado verde, em homenagem a pessoas que como ela haviam sido vítimas da aids.

Dois anos depois, em 11 de junho de 2019, estreou no canal norte-americano FX a segunda temporada da série Pose. No início deste episódio, Pray Tell e Blanca Evangelista viajam para a Hart Island, uma ilha próxima à cidade de Nova Iorque, em busca da lápide de um amigo que recentemente tinha morrido por complicações da aids. Este amigo, que morreu sozinho e não teve os seus restos mortais reivindicados por seus familiares, foi enterrado em uma sepultura coletiva. Aparentemente, apenas eles dois sabiam que ele tinha sido enterrado ali, um local que historicamente foi utilizado pela prefeitura de Nova Iorque para enterrar pessoas em situação de rua e corpos não identificadas. Pray Tell e Blanca encontram então uma cruz formada por pedras brancas com nomes de pessoas, à qual eles agregam uma com o nome do amigo em questão, e rezam, como se fosse o seu funeral.

O nome de uma praça. Um retalho em uma colcha. Uma lápide improvisada. Escolhi esses três exemplos para abrir o texto, pois eles têm em comum o fato de representarem distintas formas de se homenagear pessoas que foram vítimas da epidemia de aids. Em agosto deste ano, a Casa 1, o Acervo Bajubá, o Museu da Diversidade Sexual, a Associação da Parada
do Orgulho LGBT de São Paulo, o Grupo de Incentivo à Vida e o Grupo Pela Vidda/SP lançaram o Memorial incompleto da epidemia de aids. O projeto consiste na construção coletiva de uma colha de retalhos com recordações sobre pessoas vítimas da epidemia de aids, tanto as que faleceram por complicações da infecção pelo vírus hiv, como às que viviam com o vírus e
faleceram por outras causas. Para isso, realizamos uma chamada pública pedindo que as pessoas enviassem um áudio rememorando a vida e a história de alguém que se foi e vivia com hiv. Nossa proposta é que cada áudio resulte também na confecção de um retalho de tecido
para compor uma colcha de retalhos, que será exibida publicamente futuramente.

Uma das inspirações para o projeto foi o “Projeto Nomes”, criado em novembro de 1985 em São Francisco, nos Estados Unidos. O idealizador do “Projeto Nomes foi Cleve Jones, um ativista pelos direitos homossexuais que, desde 1978, organizava em São Francisco uma marcha anual com velas em homenagem ao ativista gay Harvey Milk e o prefeito George Moscone, assassinados em 27 de novembro daquele ano. Ao planejar a marcha de 1985, Jones soube que mais de 1.000 pessoas haviam morrido por complicações de AIDS até aquele momento. Ele pediu então que cada participante fizesse um cartaz com o nome de pessoas que elas conheciam que tinham falecido de aids. Ao final na marcha, os cartazes foram reunidos nas paredes do San Francisco Federal Building, formando o que se assemelhava a uma colcha de retalhos. Inspirados por essa imagem, Jones e um grupo de amigos começaram a planejar um memorial maior. Os seus planos coincidiram com o de outro grupo que começou a se reunir em São Francisco para documentar as histórias de vida de amigos, familiares e
amantes que morreram de aids, temendo que suas memórias caíssem no esquecimento. Esse encontro resultou na fundação do “Projeto Nomes”, uma iniciativa que, além de homenagear e celebrar as vidas perdidas, buscava conscientizar as pessoas sobre o impacto devastador da
doença.

Em 11 de outubro de 1987, a colcha de retalhos com 1.920 nomes foi exibida publicamente pela primeira vez durante a Marcha Nacional em Washington pelos direitos de Lésbicas e Gays. Em 2019, o National Aids Memorial em São Francisco passou a salvaguardar a colcha, que atualmente conta com cerca de 50.000 painéis, dedicados a 105.000 pessoas. O National Aids Memorial está localizado em um espaço do Parque Golden Gate, onde desde os primeiros anos da epidemia pessoas que viviam ou conviviam com hiv/aids se reuniam para relembrar aqueles que faleceram. Em 1996, “the Grove”, como era conhecido, se tornou um memorial nacional da aids por lei federal. Atualmente, ele possui uma série de instalações artísticas nas quais estão inscritos os nomes de milhares de pessoas. Em 2020, o National Aids Memorial lançou um site interativo onde os painéis produzidos pelo “Projeto Nomes” podem ser visualizados. No ano seguinte, duas exposições online foram produzidas para relembrar especificamente as pessoas que morreram por complicações da aids nas comunidades negras e indígenas dos Estados Unidos.

Antes da criação do “Projeto Nomes”, outras formas de homenagear as pessoas que morreram de aids nos primeiros anos da epidemia já tinham surgido nos Estados Unidos. Desde 1982, o The Bay Area Reporter, um jornal produzido em São Francisco desde 1971 e distribuído gratuitamente para outras cidades do país, publicou obituários, geralmente com fotos da pessoa, uma breve biografia e a causa da morte. Em alguns casos, os obituários eram acompanhados de uma carta de despedida ou de um poema ou um texto literário escrito em homenagem à pessoa que faleceu. Os obituários do The Bay Area Reporter distinguiam-se dos publicados em jornais de grande circulação por trazer informações sobre a orientação sexual da pessoa e sem utilizar-se do eufemismo “companheiro/a de longa data” (longtime companion) para se referir a suas relações afetivas mais duradouras. Além disso, o jornal se tornou uma das principais fontes nos Estados Unidos para acompanhar o desenvolvimento da crise gerada pela epidemia de hiv/aids. Em 1983, por exemplo, foi publicada uma matéria que
afirmava que 40% das pessoas diagnosticadas no país eram de alguma minoria racial e étnica, questionando o estereótipo de que a aids era uma doença que atingia apenas homens gays brancos. Em 1998, uma manchete do The Bay Area Reporter foi comemorada no mundo todo por apontar que pela primeira vez em dezesseis anos o jornal não tinha um obituário de
alguém que tinha morrido por complicações da aids para ser publicado.

Além dos obituários, em 02 de maio de 1983, quatro homens jovens que viviam com hiv – Bobbi Campbell, Bobby Reinolds, Dan Turner e Mark Feldman – coordenaram em diferentes cidades dos Estados Unidos uma marcha com velas para homenagear quem tinha falecido e apoiar os vivos. Este evento deu origem ao AIDS Candlelight Memorial, que, desde 1985, é organizado mundialmente no terceiro domingo de maio. Essa data não tem a mesma importância em todos os países, principalmente naqueles em que o 01 de dezembro tornou- se, desde a sua definição como o Dia Internacional de Luta contra a Aids pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o dia que reunia iniciativas de conscientização sobre a doença e para homenagens às pessoas que morreram por complicações da aids. Atualmente, alguns ativistas mais jovens e produtores de conteúdo digital questionam o uso do termo luta associada a este dia. Entretanto, reivindica-lo é importante para celebrar a memória das respostas sociais geradas a partir do avanço da epidemia e apoiar a continuidade das mobilizações do
movimento social de hiv/aids que em distintos países continuam colocando o tema como uma urgência na agenda pública, lutando pelos direitos das pessoas que vivem com hiv e pela ampliação de acesso às formas de prevenção e aos tratamentos, e combatendo o estigma e a discriminação contra quem vive e convive com hiv/aids.

No Brasil, o 1º de dezembro se tornou o dia primordial em que iniciativas inspiradas no “Projeto Nomes” se tornaram públicas. Em 01 de dezembro de 1988, para marcar o primeiro Dia Internacional de Luta contra a aids, os organizadores do projeto viajaram para seis continentes para expor a colcha de retalhos. Em 1989, parte dessa exposição foi trazida para São Paulo e exibida no saguão do edifício Gazeta, como parte de uma série de atividades organizadas pelo Centro de Referência e Treinamento (CRT-AIDS) para divulgar o “Projeto Nomes” no país”. No ano seguinte, ela foi levada para o Rio de Janeiro.

Até o momento, não encontramos referência sobre a reprodução do “Projeto Nomes” ou outras iniciativas de homenagens às pessoas que viviam com hiv e que faleceram no Brasil ao longo da década de 1990. Segundo parte da bibliografia sobre a história da epidemia de hiv/aids no Brasil, o “Projeto Nomes” e iniciativas similares não tiveram a mesma repercussão no país como ocorreu nos EUA e na Europa Ocidental. A explicação para isso seria o fato dele ter perdido força com a organização do movimento de pessoas vivendo com hiv, como por exemplo o Grupo Pela Vidda (Rio de Janeiro e São Paulo, 1989) e Grupo de Incentivo à Vida/GIV (São Paulo, 1990).

Porém, a partir dos anos 2000, encontramos ao menos três iniciativas que reproduziram a estratégia da colcha de retalhos. Em 2002, como uma das iniciativas do 1º de dezembro, o Pela Vidda e o GIV realizaram a exposição de uma colcha com 50 m² no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo. Dois anos depois, para comemorar os 21 anos de luta contra a aids o Grupo de Resistência Asa Branca (GRAB) promoveu uma manifestação inspirada no Projeto Nomes que consistia em confeccionar uma colcha com nomes de pessoas falecidas em decorrência da Aids. O evento reuniu em Fortaleza 21 ativistas que confeccionaram uma colcha composta por 21 peças e que foi coberta por 21 velas. Em 2018, o Grupo de Trabalho em Prevenção Positivo (GTP+) exibiu na calçada na frente da instituição em Recife o projeto “Colcha de Retalhos”. O ato, realizado no 1º de dezembro, foi uma resposta política ao então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que declarou na época que não acreditava na efetividade das campanhas de prevenção de hiv/aids.


Por que em 2021 é importante relembrarmos essas iniciativas? Se os tratamentos são eficazes e encontram-se disponíveis gratuitamente no Sistema Único de Saúde, qual a importância de um memorial da epidemia de aids? O primeiro argumento é que, apesar da epidemia de aids se encontrar em outro momento que não é mais aquele em que iniciativas como o “Projeto Nomes” sugiram, ela ainda é uma questão política e social no Brasil. Com o avanço de setores conservadores na política, as campanhas de prevenção e a distribuição de medicamentos sofreram significativos retrocessos. Em fevereiro de 2020, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em parceria com o Ministério da Saúde, lançou
uma campanha de educação sexual para adolescentes pautada na abstinência sexual. Essa campanha, além de utilizar o argumento da gravidez na adolescência, silenciando o debate em torno do hiv e das outras infecções sexualmente transmissíveis, foi um retrocesso nas políticas
públicas no Brasil e no reconhecimento da eficácia da prevenção combinada. Além disso, foram excluídos da campanha jovens LGBT+, que ainda se encontram mais vulneráveis a uma infecção pelo vírus hiv devido às escassas possibilidades que eles encontram de viver o início da sua vida sexual em segurança.

O segundo argumento é que um projeto como o memorial incompleto da epidemia de aids busca celebrar as vidas das pessoas que faleceram por complicação do hiv no Brasil, ou que viviam com hiv e faleceram por outros motivos. Partimos, assim, de um questionamento sobre quais rostos e experiências são recuperados quando narramos a história da epidemia de hiv/aids no país. Foi uma doença que atingiu apenas homens cis, gays, brancos e artistas? Quais os seus efeitos nas vivências das mulheres? De que maneira a epidemia de hiv/aids impactou as populações negras e indígenas no Brasil? E as mulheres trans e travestis? Nos primeiros anos da epidemia de hiv/aids no Brasil, elas representaram corpos ameaçadores,
responsáveis por infectar homens heterossexuais, tornando a aids um problema também dos casais heterossexuais. Entretanto, pouco sabemos sobre de que maneira as mulheres trans e travestis vivenciaram esse momento, para além das narrativas produzidas sobre algumas
delas, como Brenda Lee e Claudia Wonder.

Por último, lançar um projeto como o memorial incompleto de aids em 2021 busca celebrar as respostas sociais e as ações de solidariedade produzidas no Brasil, principalmente pelas pessoas e organizações que participaram do movimento social de hiv/aids, responsável pelas conquistas que permitem que hoje em dia uma pessoa com hiv tenha a possibilidade de
viver com qualidade de vida. Esse entendimento ganha uma importância especial para nós que nos identificamos como pessoas LGBT+ e somos forçados a conviver com representações negativas sobre quem nós somos na mídia, na imprensa e quando saímos nas ruas. Conhecer a
história do movimento social de hiv/aids no Brasil pode ser uma forma de reconhecermos que uma série de valores positivos como a solidariedade, a colaboração, a empatia e o acolhimento também fizeram parte da história das comunidades LBGT+ brasileiras e que aqueles que vieram antes de nós foram essenciais para o desenvolvimento deste movimento e de suas
conquistas. É importante reconhecer que essa participação não se restringiu apenas aos homens gays e bissexuais e às mulheres trans e travestis, pessoas que eram mais atingidas pelas infecções pelo hiv, mas também por mulheres lésbicas e bissexuais que tiveram uma
participação importante na formação de redes de apoio e no trabalho de acolhimento. Para as pessoas que como eu que vivem com hiv, conhecer essa história nos permite encontrar vida onde muita gente ainda hoje somente vê morte. Ou seja, que o diagnóstico positivo para hiv
não limita a possibilidade do que podemos fazer e viver, como aqueles e aquelas que entre meados dos anos 1980 e 1990 se encontraram, se reconheceram, se uniram, elaboraram de diversas maneiras o que estava acontecendo, lutaram e resistiram.

A Casa 1 é uma organização localizada na região central da cidade de São Paulo e financiada coletivamente pela sociedade civil. Sua estrutura é orgânica e está em constante ampliação, sempre explorando as interseccionalidade do universo plural da diversidade. Contamos com três frentes principais: república de acolhida para jovens LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) expulsos de casa, o Galpão Casa 1 que conta com atividades culturais e educativa e a Clínica Social Casa 1, que conta com atendimentos psicoterápicos, atendimentos médicos e terapias complementares, com foco na promoção de saúde mental, em especial da comunidade LGBT.

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