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‘Controle’: uma reflexão sobre o medo de se encontrar e o amor entre duas mulheres

Por Amanda Pickler, voluntária da Biblioteca Caio Fernando Abreu


Nanda perdeu o controle da bice, perdeu o controle da vida. Esta é a palavra-chave do
romance de estreia de Natalia Borges Polesso: controle. E não é à toa que seja também
seu título. Em “Controle” (2019), Polesso narra a história de Maria Fernanda, uma jovem
que tenta entender seu lugar no mundo, impedida por suas inseguranças de fugir de sua
solidão.
Antes, Nanda tocava violão mesmo não tendo o menor talento, brincava de lutinha com
a melhor amiga, fazia estripulias na rua com aquela coragem desenfreada de criança que
ainda não conhece os baques da vida. E é nesse destemor que sua vida muda. Após um
acidente de bicicleta, sofre uma contusão e desenvolve epilepsia. Torna-se então a “mina
do tremelico”, a menina medrosa, que vive a pedir desculpas quando sua língua pesa e
perde o controle dos membros, que prefere se esconder dentro de si mesma, dentro da
solidão de seu rancor, que se isola porque não suporta ser estorvo. Há um trecho do livro
que traduz com precisão o sentimento de Nanda: “Fiquei de fora olhando os eventos pela
janela, num aquário impossível ao lado do mar. Marcando presença e não aparecendo.
Marcando presença e desaparecendo.”


Incapaz de se encontrar na imprevisibilidade do mundo ao seu redor, Nanda refugia-se na
música de seus fones de ouvido, em especial da banda inglesa New Order. Aliás, as letras
musicais são presença constante na construção da narrativa. Polesso faz uso desse recurso
para descrever o que Maria Fernanda não coloca em palavras, é para isto que a música
serve na vida da personagem, exprimir tudo o que é reprimido por seu medo. Natalia
também não escolheu esta banda em específico ao acaso. Existe um paralelo sagazmente
aproveitado pela autora.
Como dito pela personagem, “New Order é uma banda que conseguiu se desenterrar do
peso de uma morte”. Foi formada pelos três integrantes restantes da banda Joy Division
depois da morte de seu vocalista, Ian Curtis. Joy Division acabou com uma morte, New
Order nasceu a partir da perda. O grupo de amigos de Nanda também era formado por
quatro: Nanda, Joana, Davi e Alexandre. Com a nova condição de Nanda e a forma em
que passa a encarar a vida, Alexandre pula fora. Não consegue lidar bem com a morte da
amiga que conhecia; Nanda agora é outra pessoa, alguém regida por suas inseguranças,
sem traquejo social.
Outra similaridade está no fato de que Ian Curtis também sofria de epilepsia, Maria
Fernanda nasceu no dia seguinte à sua morte. Aquele morre enforcado por uma corda,
esta nasce sufocada por um cordão umbilical. Curtis suicidou-se, não suportou viver com
a espera constante de seu próximo ataque epiléptico. Já Nanda quer, sim, viver. Quer, mas
não consegue. “Quem quer morrer não se apaixona, Maria Fernanda, são vontades
opostas.”

Este é outro ponto importante do romance de Polesso: a sexualidade de Nanda. A
personagem é apaixonada por Joana, sua melhor amiga de infância. A relação entre as
duas não monopoliza a história, contudo é intrínseca na construção da persona da
protagonista e a evolução de sua trajetória, é a linha condutora por trás de tudo o que a
autora tem a dizer. As duas amigas pendulam em aproximação e afastamento, afastamento
e aproximação, ao longo dos anos. O amor é recíproco, ele nunca deixa de existir, porém,
o problema nessa narrativa sempre foi a coragem. A falta de. O excesso de. Nanda chega
ao ponto de entrar em um relacionamento de quase dois anos com um homem que nunca
chegou a ver fora da tela de um computador. Faz de tudo para se esconder das exigências
dos outros e de si própria.


Ao ler “Controle”, o leitor precisa saber que se sentirá frustrado. Frustrado não pela falta
de talento de Polesso, isso ela tem de sobra, essa é a questão. A descrição da estagnação
de Maria Fernanda, escrita em primeira pessoa, é feita de forma tão imersiva que a
vontade que se cria é de dar um chacoalhão na personagem para ver se ela acorda e se
livra de seus temores, para que vomite suas palavras há anos entaladas e saia do casulo
construído por seus pais superprotetores. A autora tampouco poupa esforços para brincar
com os sentimentos de seus leitores. São muitos os momentos nos quais parece que Maria
Fernanda irá enfim sair do lugar, lutar contra seus demônios, e então volta à estaca zero.
E é nessa inércia eterna que Nanda chega aos 34 anos sem se sentir adulta, sem nunca
sequer ter dado um beijo de língua. Decide que não aguenta mais, e nós leitores finalmente
soltamos junto a ela o ar preso decorrente de uma vida inteira de resignação. É hora da
tão esperada libertação. É no descontrole que ganha o controle de sua vida. Precisa viver
a inconsequência juvenil para aprender a ser adulta. Mente para seus pais e foge para São
Paulo. Foge em direção à Joana, ao Davi, à sua banda favorita. Usa drogas, bebe cerveja,
fuma cigarros, beija mulheres que mal conhece e volta a subir em uma bicicleta. O medo
ainda existe, mas o que Polesso nos mostra é que a coragem não é a ausência do medo.
Coragem é o embate ao medo. O romance termina com um novo acidente, porém,
diferente do primeiro, este serve para recuperar aquilo que foi perdido. “Eu quero viver”,
Nanda chega à conclusão. É no medo da morte, no descontrole, que sua vontade de viver
— de amar, de voar — torna-se clara.


A escrita de Natalia é direta, não faz pompa, não tem medo de trabalhar com a
informalidade. Faz poesia, mas não de modo pretensioso; às vezes é preciso brincar com
as palavras, com o abstrato, para exprimir a complexidade do sentimento humano, a
autora deixa isso claro. E a música, é preciso se jogar na música também. “And life has a
funny way of helping you out when you think everything’s gone wrong and everything
blows up in your face.”
Natalia Borges Polesso, conhecida por retratar em suas obras relações homoafetivas entre
mulheres, é respiro em um contexto no qual ainda se clama por maior representatividade
LGBTQIAPN+ na literatura brasileira. É doutora em teoria da literatura e vencedora do

prêmio Jabuti pelo livro de contos Amora (2016) e o romance Corpos Secos (2021), este
escrito em parceria com Luisa Geisler, Marcelo Rocha Ferroni e Samir Machado de
Machado.


Esse e muitos outros títulos fazem parte do acervo da Biblioteca da Casa 1. Venha
conhecer nosso espaço, localizado na Rua Condessa de São Joaquim, 277, Bela Vista –
SP. Nosso horário de funcionamento é de segunda a sábado, das 10h às 19h.

A Casa 1 é uma organização localizada na região central da cidade de São Paulo e financiada coletivamente pela sociedade civil. Sua estrutura é orgânica e está em constante ampliação, sempre explorando as interseccionalidade do universo plural da diversidade. Contamos com três frentes principais: república de acolhida para jovens LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) expulsos de casa, o Galpão Casa 1 que conta com atividades culturais e educativa e a Clínica Social Casa 1, que conta com atendimentos psicoterápicos, atendimentos médicos e terapias complementares, com foco na promoção de saúde mental, em especial da comunidade LGBT.

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