Em meio a pandemia do coronavirus todas as emissoras de televisão tiveram que fazer ajustes em suas programações e reprises foram colocadas no ar enquanto a produção de conteúdo inéditos estão paralisadas.
No caso da Rede Globo, o grande acervo permitiu escolhas muito bem acertadas como a re-exibição das tramas “Malhação – Viva a Diferença” como uma espécie de “esquenta” para o lançamento de “As Five”, série com o quinteto de protagonistas que se passa seis anos depois do fim da novela e vai ser exibida pelo Globoplay, plataforma de streaming do grupo, “Novo Mundo”, também uma prévia antes da sua continuação “Nos Tempos do Imperador”, que estrearia no dia 30 de março e “Totalmente Demais”, vinda na esteira do sucesso da recente “Bom Sucesso”, dos mesmos autores.
Além do acervo, conteúdos até então exclusivos da plataforma de streaming foram para o canal aberto, como a série “Aruanas” que começou a ser exibida na terça-feira, 28 de março, quase um ano depois da estreia no GloboPlay.
Porém a sociedade e o mundo mudou muito, e muito rápido: as pautas identitárias ganharam força e alguns conteúdos não fazem mais sentido. Erro grotesco por exemplo foi a reprise de “Fina Estampa”, que com uma trama completamente rasa traz uma série de estereótipos falidos, verdadeiros deserviços em tempos em que a teledramaturgia caminha cada vez mais para a representatividade e vem abraçando a pluralidade e a diversidade enriquecendo suas tramas.
Porém é no humor que o problema se agrava, se os conteúdos da emissora mudou drasticamente com a criação do novo” Zorra”, “Tá no Ar” e “Fora de Hora”, todos focados em fazer rir do opressor e não do oprimido, escalar o sitcom “Toma Lá Dá Cá”, do sempre equivocado Miguel Falabella, no lugar da nova “Escolinha do Professor Raimundo” a partir do dia 16 de maio, segundo o colunista Piero Vergílio, é caminhar para trás.
Não que a escolinha seja lá um bom exemplo, no entanto, houve certa preocupação em “ajustar” o tom de alguns personagens e dar destaques a outros mais atemporais, sempre lembrando se tratar de homenagem e de um determinado tempo.
Agora no caso de “Toma Lá dá Cá” o buraco é mais embaixo por não se tratar de uma nova versão e sim um conteúdo produzido em 2007, ano não tão longinquo mas época onde o debate ainda não tinha chegado com força. Além dos personagens estereotipados e caricaturais, é no texto que moram os maiores perigos: a quantidade de “piadas” de cunho LGBTfobico e de violência contra a mulher são muitos, porém nada que alguma pequena edição não resolva, algo que espero que aconteça e tenho certeza, não interferir em nada o produto final.
O produto já passou por uma edição para ser liberada pelo Ministério da Justiça para ser reexibida no horário da tarde, por conta da classificação indicativa, provavelmente eliminando o conteúdo mais ligado à sexo, fazendo com que a edição de cunho de representatividade talvez seja inviável prejudicando a continuidade ou entendimento da trama, por isso vale lembrar da prática adotada pela Disney em seu serviço de streaming, o Disney+, ainda não disponível no país, que optou por inserir todo o conteúdo original porém com um anúncio nas sinopses:
“Este programa é apresentado em sua criação original. Ele pode conter representações culturais desatualizadas”.
No entanto, há um episódio que não tem salvação: no 23º episódio da segunda temporada exibida em 2008 todos os personagens passam por um processo de regressão levando a trama para o período imperial do país e a decisão criativa para a empregada doméstica da família foi pintá-la de preto (imagem em destaque no começo do post), prática chamada “Black Face”, Esta matéria da BBC explica a prática e todo racismo que ela acarreta.
Não existe justificativa para o episódio ter sido escrito, feito e colocado no ar (e agora na plataforma online), tendo em vista que ao contrário de debates recentes sobre representação de pessoas LGBT, as representaçõe raciais são pautadas a décadas e a própria emissora sofreu duras críticas ao exibir a telenovela “A Cabana do Pai Thmás” em 1969, onde o protagonista, um escravo idoso que terminou espancado até a morte por se negar a colaborar com seu dono e contar o paradeiro de escravas fugidas, era interpretado pelo ator branco Sérgio Cardoso.
Vale ressaltar que a própria trama de Pai Tomás, escrita por Harriet Beecher Stowe em 1852, sofreu uma grande distorção para caber na narrativa branca e hegemônica. Neste texto sobre estereótipos racistas na mídia norte-americana, a historiadora Suzane Jardim fala sobre este e outros casos.
Não estamos falando aqui de uma patrulha do politicamente correto que condena completamente a totalidade de uma obra por alguns erros. “Toma Lá da Cá” tem muitos méritos, boas sacadas e até certo avanço no campo da diversidade e liberdade sexual com muitas críticas aos opressores e mesmo com personagens estereotipados ganha muito pontos por trazerem dois grandes artistas: Ítalo Rossi e Norma Bengell, ele gay e ela bissexual, não só dando vida a personagens LGBT, mas se divertindo e muito como Seu Ladir e Dona Deise.
ERRAMOS: A novela exibida no horário das sete de Rosane Svartman e Paulo Halm foi “Bom Sucesso” e não “Sangue Bom” conforme constava no texto original. O texto foi corrigido. 30 de março – 17:08.