A atriz Ana Hikari, 26, ficou nacionalmente conhecida por sua personagem Tina na novela “Malhação: Viva a Diferença”, que foi um grande sucesso e fez com que as personagens principais ganhassem seu próprio seriado na GloboPlay, “As Five”.
Ela foi a primeira atriz de ascendência asiática a protagonizar uma novela na Rede Globo.
Formada em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo, ela já fez parte da remontagem de muitos clássicos, participa da companhia de teatro Núcleo Sem Querer de Tentativas Teatrais e já enfrentou muitos obstáculos para exercer plenamente sua profissão antes da fama: “Enquanto artista, a gente vive uma relação de resistência nesse país. A arte sempre resistiu e sempre vai resistir, mas é muito triste olhar para a nossa profissão todos os dias como uma luta por sobrevivência, sabe?”
Vinda de uma família que valoriza a arte — seu pai é Almir Almas, renomado professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da USP — ela diz que os pais não desencorajam sua entrada nesse ramo, mas não esconderam dela as dificuldades que enfrentaria.
“Desde pequena minha mãe sempre apoiou muito todos os meus desejos artísticos. Sempre me levava às aulas de dança e canto e amava me ver cantando. Quando a gente saía com os amigos dela, às vezes ela falava ‘vai, dança, canta uma música aí’ . Eu ficava até com vergonha”, conta aos risos.
Quando ela decidiu que prestaria o vestibular para artes cênicas seus pais perguntaram para ela se não preferiria fazer algum outro curso, mas ela já estava decidida. Os pais entenderam sua decisão e ela também compreende o medo que eles sentiram no momento em que ela decidiu seguir uma carreira artística: “Escolher uma carreira artística em um país que não tem incentivo para a arte é muito complicado […] Eu queria poder simplesmente ser artista e ter meus projetos contemplados e reconhecidos como uma profissão de verdade. Eu queria isso para mim, mas a realidade é que eu passei muito tempo da minha vida pagando para poder trabalhar”.
O que a ajudava financeiramente para conseguir realizar as peças de teatro com a companhia eram trabalhos que fazia como bartender em baladas e como vendedora. O dinheiro que conseguia era para pagar figurinos, cenários e transporte. “É muito triste que as instituições públicas não reconheçam o valor da arte. A minha companhia levava teatro para crianças que nunca tinham frequentado um. As pessoas acham que arte é lazer, e que isso é uma coisa supérflua, mas não é. Eu acredito que a arte é muito potente, muito transformadora e eu só acredito em arte dessa maneira”, finaliza.
Além dos obstáculos citados anteriormente, ela também passou pelos estigmas que uma pessoa não branca sofre.
“Eu também fazia muito teste de publicidade nessa lógica de fazer trabalhos para poder trabalhar com teatro e eu só era chamada quando estava no briefing “atrizes orientais” ou então “atrizes de todas as etnias”. Na segunda opção só ia eu e meninas negras. Não tinha uma modelo branca porque acham que branco não é etnia. Eu só era chamada quando eram esses testes e tenho certeza que isso me fez perder muitas oportunidades, por falta de reflexão da produção. A diferença principal entre atores e atrizes não brancos e atores e atrizes brancos é a falta de oportunidade”.
Isso também impactou sua vida pessoal e em diversos momentos a atriz teve sua identidade brasileira negada. Por parte de mãe, ela tem ascendência japonesa e por parte de pai ascendência negra e indígena e pelo seu fenótipo as pessoas sempre esperam que ela tenha referências e tradições do leste asiático. Contudo, as referências culturais de Ana vem da cultura negra.
“Acho que essa foi uma maneira de responder um pouco a essa tentativa de tirarem minha identidade brasileira. Eu consumia tudo que era tido como cultura popular brasileira. Cresci tendo essas referências e sempre tive muito orgulho dessa cultura. Isso se deve muito à parte da minha família que é negra e indígena, e também era uma resposta para quando tentavam me dizer que eu não era brasileira. Eu não tinha vocabulário para responder e falar que aquilo era errado, então passei muito tempo sem falar sobre isso. Hoje em dia tenho vocabulário para poder me expressar e falar que pertenço a esse lugar. Sou brasileira, asiática-brasileira mas tão brasileira tanto quanto qualquer outra pessoa que nasceu aqui”, enfatiza.
Os ataques direcionados a comunidades amarelas só crescem ao redor do mundo, inclusive no Brasil, principalmente pela ligação errônea e racista entre pessoas amarelas e a pandemia do coronavírus. As agressões físicas e as microagressões por meio de piadas sobre higiene e alimentação de pessoas do leste asiático acontecem sem que esse tema seja tratado com a devida seriedade. “Acho que ainda se dá muita pouca atenção sobre esse tema e me preocupa porque o fato da gente enxergar como algo pequeno, um detalhe, faz com que a gente menospreze uma coisa que já está acontecendo e que pode explodir a qualquer momento no Brasil como já está explodindo nos Estados Unidos”.
Recentemente, no país norte-americano, uma senhora chinesa de 65 anos foi espancada enquanto ia para a igreja. Depois desse episódio, o movimento “Stop Asian Hate” (“Pare o ódio contra asiáticos” em tradução livre) ganhou forças nas redes sociais e nas ruas. Até Rihanna foi filmada nas manifestações.
“Isso já acontece aqui em uma escala um pouco menor, mas já tem relato de agressões físicas no Brasil. Quando eu tento falar sobre microagressões é sobre não banalizar uma coisa que é violenta. Se a gente aceita e começa a naturalizar, ela vai escalando degraus até chegar na violência física. A questão do coronavírus atenuou essas violências, mas elas já existiam. São violências com fundamento racial e a gente tem que refletir sobre isso. A violência é histórica. Quando você pega a história do Brasil, já tem relatos de discriminação racial [contra pessoas amarelas] desde 1800. Tem uma história bizarra sobre Dom João. Ele queria produzir chá no Brasil e simplesmente foi até a China, parou no porto e pegou meia dúzia de pessoas chinesas que estavam nesse porto. Ele pensou que todo chinês produziria chá, né? E esses imigrantes foram trazidos de forma ilegal e coercitiva. É histórico, mas as pessoas ainda acham que é só um detalhe. Essas coisas alimentam algo muito maior no fim das contas que é a hegemonia branca que acaba matando pessoas negras”, pontua.
O debate racial é um assunto que ela sempre coloca em pauta em suas redes sociais. Um fenômeno também nessas plataformas, Ana Hikari conta com mais de 1 milhão de seguidores em seu Instagram, e foi por lá, em uma live, que ela falou abertamente pela primeira vez sobre sua bissexualidade, assunto que ela sempre tentou evitar por conta da fetichização: “Acho que nunca falei sobre isso, mas [a fetichização me] dificultou a falar abertamente sobre a minha sexualidade porque eu sentia que se eu falasse era como se eu tivesse trabalhando em função da heterossexualidade. Parece que é uma coisa que está em função do cara que um dia vai querer ficar comigo porque eu também beijo mulheres e na cabeça dele poderemos fazer um a três, sabe? Isso me atravancou um pouco na hora de falar abertamente sobre a minha sexualidade, mas não foi o único fator. […] Eu passei muito tempo de minha adolescência com [um casal de] amigas que namoravam e eu via o que acontecia com elas por elas terem uma relação assumida e me deixava muito angustiada porque é uma coisa muito constante e muito violenta”.
Isso também foi de encontro com a fetichização que já existe de mulheres asiáticas. As opressões acabam se somando. Se durante a adolescência e início da juventude isso foi um problema, hoje ela diz que encara essas questões com outro olhar.
“Quando você é adolescente você acha que não vai conseguir lidar [com as questões de raça e sexualidade] e por conta disso passei muito tempo reprimindo essas relações e a minha maneira de ser. Ainda bem que depois eu tive contato com esses debates. Eu li um livro da Winnie Bueno que fala uma coisa muito bonita, eu esqueci a frase exata mas é algo como ‘ter vocabulário sobre as questões de opressão é uma ferramenta muito potente de empoderamento’. Quando consegui entender que o que acontecia comigo tinha nome, eu entendi que podia assumir ser quem eu sou e tudo certo”, diz.
Seus planos agora estão focados em seu papel na nova novela da Rede Globo “Quanto mais Vida melhor”, que teve suas gravações atrasadas e a estreia adiada por conta da pandemia. Vanda, diferente da personagem Tina, não tem sua trama atrelada às questões raciais: “Fiquei muito feliz de ter conseguido esse trabalho e é para mostrar para todas as pessoas [que trabalham com] audiovisual que é possível todos os tipos de recorte estarem na mídia e não é preciso uma justificativa para esses corpos estarem lá, essa personagem simboliza isso para mim. […] Eu não quero que as pessoas se identifiquem comigo fisicamente, mas a história não ter nada a ver com a nossa realidade enquanto brasileiros-asiáticos. Eu quero que as pessoas possam, independentemente da etnia, olhar para a minha personagem e se identificar também. Esse é o próximo passo”.
Fotos: Giselle Dias e beleza por Walter Lobato