Por Jesser Ramos, bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos e mestrando em Antropologia pela Universidade de São Paulo. Voluntário da Biblioteca Caio Fernando Abreu, a biblioteca comunitária da Casa 1.
Janaina1 contava à Teresa como estava difícil morar no albergue devido à relação conflituosa que ela tinha com outra moradora do mesmo quarto. Segundo Janaina, essa moradora chegava todos os dias tarde da noite e fazia muito barulho antes de dormir, além de não limpar suas coisas do modo que Janaina julgava pertinente. Teresa, que morava no mesmo albergue mas em outro quarto, disse para Janaina que já teve problemas muito parecidos e que era para ela tentar mudar para seu quarto porque suas colegas de lá eram gente boa2 . Atento à conversa das duas, eu pendurava as roupas que estavam no chão dentro de um saco preto. Janaina, que chegou ao paliativo um pouco antes de Teresa, contou que estava esperando sua aposentadoria sair para poder deixar o albergue. Assim que sair vou alugar um lugar pra morar, enquanto isso venho buscar roupa aqui porque não tenho dinheiro suficiente para comprar. As roupas aqui são ótimas. Vocês não sabem o quanto isso me ajuda, disse ela. Teresa procurava calças pretas lisas para trabalhar: menina, essas calças são ótimas para trabalhar, disse ela. Janaina concordou e mostrando blusas de alças finas e tecidos finos disse: essas são ótimas para trabalhar nesse calor. Uso sempre.
O encontro de Janaina e Teresa aconteceu no espaço do paliativo. Esse é o lugar onde a Casa 1 distribui roupas e produtos de higiene pessoal. Num outro espaço da Casa 1, a biblioteca Caio Fernando de Abreu, conheci Vivi, Aline e Patrícia. Era próximo do meio dia quando Vivi entrou na biblioteca e perguntou que horas abriria o paliativo. Respondi que abriria por volta das 14h. Vivi pediu se eu não deixava elas esperarem na biblioteca, ao que eu respondi positivamente.
Aline: Posso deitar nesse puff?
Eu: Claro, pode sim.
Vivi: A gente veio de muito longe a pé. Vamos pegar roupas, se tiver né. E depois vamos tomar um banho na minha amiga que mora aqui perto. Precisamos da roupa para trabalhar hoje, não dava pra vim outro dia.
Ficamos conversando até que paliativo abrisse e depois de ali pegarem as roupas, elas me agradeceram e foram embora. Esses encontros aconteceram em dois espaços do centro cultural da Casa 1. A biblioteca Caio Fernando de Abreu e a sala do paliativo são configurados como espaços visíveis e abertos para todas e todos aquelas/es que os frequentam diariamente. Janaina e Teresa são duas mulheres cisgênero, brancas, moradoras de um albergue localizado perto da Casa 1. Vivi, Aline e Patrícia são mulheres trans, negras e em situação de rua. Todas elas frequentam os espaços da Casa 1 e, com eles, estabelecem distintas formas de relações e apropriações.
Essas relações e modos de apropriação são efeito da política de portas abertas praticada pela Casa 1. Relações e apropriações que são multiplicadas no mover cotidiano de pessoas, desejos e afetos. Nesse mover cotidiano os espaços da Casa 1 não só são implicados em relações com seus frequentadores, como também são produzidos pelos envolvimentos estabelecidos neles. Num artigo recente (Ramos, 2019) aproximei essa política de portas abertas da “política de alianças” sugerida por Judith Butler (2017, 2018). Ao fazer essa aproximação, argumentei que “essa política da Casa 1 é menos uma política de acolhimento para os jovens LGBTQIA+ e mais uma “política de alianças” que a entrelaça com uma multiplicidade de pessoas, desejos, expectativas, necessidades e afetos” (Ramos, 2019: 44).
No entanto, é importante dizer que compreender a política de portas abertas como uma “política de alianças” não significa separar o espaço da república de acolhimento das outras espacialidades do centro cultural. Ao contrário, o espaço da república de acolhimento está entrelaçado com outros espaços e também é produzido nos movimentos e envolvimentos cotidianos da Casa 1. A política de portas abertas nos mostra um exercício de alianças, de fazer junto, que não é exclusivo para pessoas LGBTQIA+. Nesse sentido,como podemos pensar numa política que produz associações e ligações com uma multiplicidade de gentes, desejos e afetos? Como compreender essa política de portas abertas junto com uma “política de identidade” exclusiva para as/os jovens LGBTQI+ expulsos das casas de seus familiares? Parece-me que é justamente na ocupação do cotidiano que podemos perceber como, por um lado, os diferentes espaços da Casa 1 estão imbricados em dinâmicas e funcionamentos específicos, e, por outro, como essa ocupação prolifera as relações estabelecidas entre a Casa 1 e seus coabitantes.
Ao ocupar esses espaços visíveis e abertos as pessoas fazem e desfazem relações e modos de apropriação diariamente. É por meio dessa ocupação que a biblioteca se torna um lugar de descanso para Vivi, Aline e Patrícia, ao mesmo tempo que o paliativo é um lugar buscado para conseguir roupas para trabalhar. Biblioteca que se torna um lugar de divertimento para as crianças da vizinhança ou então um lugar de acesso a livros para aquelas/es que frequentam esse espaço. Paliativo que gera uma possível troca de quarto para Janaina ou que propicia a procura de calças pretas para o trabalho de Teresa. Assim, é a partir dos encontros diários promovidos por esses espaços abertos e sutis que as ligações entre Casa 1 e seus frequentadores são feitas. A feitura dessas distintas ligações nos espaços é o que produz as alianças entre eles e aquilo lhes que é exterior.
Ao permitir que inesperadas alianças sejam estabelecidas em seus espaços, a política de portas abertas escapa dos limites impostos por uma “política de identidade” que estabiliza e homogeneíza seu “sujeito político”. Butler em sua crítica à “política de identidade” do feminismo argumenta que:
“a tarefa política não é recusar a política representacional, uma vez que as estruturas jurídicas da linguagem e da política constituem o campo contemporâneo do poder […] A tarefa é justamente formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (1990: 24)
Dessa forma, tentando escapar de uma política que imobilize as possibilidades de ação política do feminismo, Butler diz que alguns esforços feministas têm formulado um “política de coalização” (1990: 39). Uma política cuja “forma – uma montagem emergente e imprevisível de posições – não pode ser antecipada” (ibidem: 39) e, como consequência disso, cujas coalizões “devem reconhecer suas contradições e agir deixando essas contradições intacta” (ibidem: 40). Assim, nessa “política de coalizões” não se pressupõe ou se objetiva uma “unidade”, mas “unidades provisórias” que “podem emergir no contexto de ações concretas que tenham outras propostas que não a articulação de identidade” (ibidem: 41). Coalizões que estão permanentemente abertas a “múltiplas convergências e divergências, sem obediência a um telos normativo e definidor” (ibidem: 42).
Nessa política que se alia a um outro estranho, a liberdade e a igualdade são exercidas de modo compartilhado. Só é possível pensar a existência individual em relação ao direito de existir de outras vidas. Segundo Butler (2017: 44), “sobrevivemos por meio de uma existência extática da socialidade” justamente porque nosso corpo está implicado nesse modo compartilhado da vida. Por estar “fora de si e no mundo dos outros”, o corpo assume um risco “de um contato involuntário e indeterminado que pode ir em direção de dor insuportável e ferimento; na direção de descoberta súbita, apaixonando-se, solicitude imprevista” (2017: 48). Mas é justamente o caráter relacional “da condição do corpo de ser afetado pelos outros, e é apenas por sermos afetados, que temos alguma chance de exercermos nossa liberdade”. Nesse sentido, risco e liberdade estão em relação contínua pois “não há exercício de liberdade sem nenhum risco” (2017: 48). Assumir o risco da imprevisibilidade das relações é o que faz da política queer um exercício radical de democracia.
É então nas afecções e no mover do cotidiano que as alianças e coalizações são produzidas entre a Casa 1 e seus frequentadores. Alianças e coalizações que não perdem de vista a “política de identidade” criada para aquelas/es que são violentadas/os e excluídas/os diariamente devido suas sexualidades e identidades de gênero. Ao invés de restringir as ações e dinâmicas da Casa 1, essa política de identidade a implica em relações com outros modos de existir no mundo. Em sua reflexão sobre a política sexual de minorias sexuais,
Paul Preciado (2011: 12) entende a política como uma “potência de vida” em que “os corpos e as identidades anormais [são] potências políticas” (2011: 12) que por meio de ligações formam uma “multidão queer”. A política da multidão queer não deve ser compreendida “em oposição às estratégias identitárias” (ibidem: 15). As estratégias de identificação são primordiais para uma ação política efetiva dessa multidão. Não obstante, e esse é o ponto atraente de sua análise, a política dessa multidão não pode ser pensada apenas “como um lugar de poder mas, sobretudo, [como] um espaço de criação” (2011: 13).
Como um “espaço de criação”, a política da multidão queer pode criar formas de alianças [im]possíveis com aqueles/as que não compartilham das mesmas identidades sexuais. Assim como essa política da multidão queer, a política de portas abertas cria múltiplas alianças imprevisíveis com o que está externo aos seus espaços. Uma multidão que ocupa seus espaços por meio de relações íntimas e cotidianas. É na potencialidade da criação que o pertencimento e identidade aparecem. Ao invés de restringir e limitar essas relações íntimas e cotidianas, o pertencimento e a identidade, como princípios políticos, as multiplicam. Longe de estabilizar as coligações estabelecidas nos espaços abertos e visíveis, o fazer parte da Casa 1 é ampliado pelos modos como os envolvimentos cotidianos são feitos pelas pessoas. Como espaços de criação, os espaços do centro cultural e da república de acolhimento são produzidos através de afetos, desejos, necessidades, conflitos e tensões.
É por meio dessas dinâmicas de visibilidade e abertura que a Casa 1 se relaciona com sua vizinhança. Como disse Bruno, organizador da ONG, um dos objetivos da política de portas abertas é garantir que os vizinhos reconheçam a Casa 1 como parte da comunidade. Reconhecer os espaços da Casa 1 é também um modo da vizinhança reconhecer as/os jovens LGBTQI+ como parte daquele lugar. Assim, nos envolvimentos cotidianos com a vizinhança, a política de portas abertas “estabelece ligações de confiança, consideração, ajuda e afeto” (Ramos, 2019: 49). Ligações essas que são costuradas nos movimentos imprevisíveis de uma política de alianças no bojo da qual, no caso da Casa 1, Dona Rosa – uma de suas organizadoras e moradora da vizinhança há anos – exerce um papel fundamental ao fazer contado direto com os/as vizinhos/as.
Na ocupação diária da vizinhança, as relações e apropriações também são multiplicadas em suas formas e modos. A relação de Débora com a Casa 1 é um bom exemplo das formas de ocupação do cotidiano. Numa conversa comigo no paliativo, Débora me contou como gostava que seus filhos frequentassem a Casa 1:
Eu gosto que eles vão lá. Melhor do que na rua. Eu sei onde eles estão, com quem estão. Na rua a gente nunca sabe com quem eles estão. Lá eles aprendem computação, brincam, comem. E eu nem sabia que eles davam comida lá. Uma vez desci pra chamar Jonatas pra comer e ele me disse “de novo”. É ótimo eles estarem lá (Caderno de Campo, 17 de maio de 2019). (Ramos, 2019: 50)
Em meio à nossa conversa, Dona Rosa chegou e Débora foi falar com ela (Ramos, 2019: 51):
Débora: Dona Rosa, eu queria pedir uma coisa pra senhora. Perdi o emprego esses dias e agora estou correndo atrás de outro, queria saber se a senhora não tem papel higiênico, sabonete, sabão pra me doar, eu estou até com vergonha de pedir isso.
Dona Rosa: Não precisa ter vergonha não. A gente tá aqui pra ajudar no que for possível. Eu não vou ter algumas coisas pra te dar porque também to tendo que comprar ali pra cima. Mas vou ver o que tenho e te dou.
Débora: Obrigado Dona Rosa, qualquer coisa vai ser de grande ajuda.
Dona Rosa subiu até a sala onde se guardam os alimentos e trouxe alguns produtos para Débora. Assim como nos encontros descritos acima, a presença de Débora produz uma relação específica entre ela e a Casa 1. Do mesmo modo, muitas outras relações são costuradas diariamente nos espaços da ONG pela sua vizinhança. Relações que se expandem para as atividades desenvolvidas no Galpão e para os atendimentos na Clínica Social.
Nas costuras sutis feitas pela ocupação do cotidiano, os espaços visíveis e abertos se tornam lugares de potencialidades e possibilidades. Potência de criação e possibilidade de ligações. Lugares que promovem formas de socialidades para as crianças do bairro durante a realização das atividades culturais e educacionais; lugares de descanso para aquelas que andaram uma longa distância atrás de uma roupa para trabalhar; lugares de atendimentos psicológico e médicos para pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social; lugares de acesso a formas de expressões artísticas e culturais ou então um lugar de acolhimento para quem passou por violências e exclusões constantes. Desse modo, é na ocupação desse cotidiano constante que ligações imprevisíveis são feitas e desfeitas, produzidas e reproduzidas.
Dona Joana, também vizinha da Casa 1, disse-me uma vez depois de pegar duas peças de roupas: “parece pouco, mas vocês não sabem o quanto isso me ajuda”. Essa frase ressoa em muitas histórias que ouvi todos os dias que estive na Casa 1 e mostra de modo preciso o efeito da política de portas abertas: os espaços do centro cultural e da república de acolhimento são lugares de possibilidades. Possibilidades que são expandidas, proliferadas, modificadas e desmanchadas à medida que as relações cotidianas ocupam essas espacialidades. O cotidiano, ao ocupar e aliar-se à esses lugares, torna visível outros modos de existência. Assim, os espaços visíveis e abertos não só visibilizam as existências das/os jovens LGBTQIA+, mas também visibilizam outros corpos, desejos, violências e exclusões. Nesse aliar-se, um fazer junto é criado na e pela Casa 1.
Nesse sentido, esse lugar voltado para acolher pessoas LGBTQIA+ não aglutina suas formas de ação política em torno de uma política de identidade estável. Ao contrário, essa política de acolhimento juntamente com a política de portas abertas implicam a Casa 1 em uma multiplicidade de afetos, desejos e necessidades. O reconhecimento desse espaço LGBTQIA+ não foi produzido em torno daquilo que Butler diz ser o perigo das políticas de identidade: a construção de ações e reconhecimentos políticos baseados em um sujeito político homogêneo e estável. A autora argumenta que (2017: 45) “às vezes, as normas de reconhecimento nos ligam de formas que põem em perigo nossa capacidade de viver” precisamente porque “as categorias que parecem tornar a vida possível na verdade tiram as nossas vidas”. Criar esses lugares de possibilidades por meio de sua política de portas abertas faz com que a Casa 1 assuma os riscos e afecções imprevisíveis e inconstante da ocupação do cotidiano. Ao assumi-los, as coalizações e as alianças inesperadas que o fazer junto enseja são expandidos e potencializados, proliferando. Diferentes modos de existência que se aliam e passam a viver em conjunto. Um viver que não se faz, evidentemente, apenas nas convergências, mas, sobretudo, nas divergências, nos riscos e nas tensões.
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1 Todos os nomes contidos no meu texto são nomes fictícios. Apenas os nomes do/as organizadores/as não serão trocados.
2 Ao longo do texto colocarei em itálico enunciados, falas e expressões ditas pelas pessoas que habitam e frequentam a Casa 1. Em aspas duplas, usarei conceitos teóricos.
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Referências Bibliográficas
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminino e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018 [1990].
———————-. Alianças queer e política anti-guerra. Bagoas, n. 16. p. 29-49. 2017.
——————— . Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens ; revisão técnica Carla Rodrigues. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2018.
PRECIADO, Paul. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011.
RAMOS, Jesser R. de Oliveira. “É só pra pessoas LGBTs isso daqui?: a produção de espaços visíveis e abertos como formas de fazer política pela Casa 1. EntreRios – Revista do PPGANT -UFPI -Teresina • Vol. 2, n. 1 (2019).
Casa 1 A Casa 1 é uma organização localizada na região central da cidade de São Paulo e financiada coletivamente pela sociedade civil. Sua estrutura é orgânica e está em constante ampliação, sempre explorando as interseccionalidade do universo plural da diversidade.
Contamos com três frentes principais: república de acolhida para jovens LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) expulsos de casa, o Galpão Casa 1 que conta com atividades culturais e educativa e a Clínica Social Casa 1, que conta com atendimentos psicoterápicos, atendimentos médicos e terapias complementares, com foco na promoção de saúde mental, em especial da comunidade LGBT.