BBB 22: Vigiar os gastos de pessoas pobres é concordar com a falácia da meritocracia

Um dos assuntos — dentro e, principalmente, fora — da casa é a diferença entre a realidade financeira dos participantes desta edição. De um lado temos participantes como Jade Picon e Tiago Abravanel, que tiveram uma vida repleta de privilégios e do outro temos Vyni Fernandes e Jessilane Alves, que têm uma história completamente diferente dos endinheirados. 

O buraco entre essas duas vivências ficou ainda maior quando, em uma conversa com o ator e cantor Tiago Abravanel, Jessi explicou o que era o FIES (Programa de Crédito Educativo do governo federal) e como o programa permitiu que ela conseguisse concluir sua graduação em Biologia para o artista, que não conhecia o fies. 

A professora já mencionou na casa que está com boletos do financiamento atrasado e, em entrevista, a irmã Caroline Alves explicou que a dívida começou quando Jessi foi mandada embora e passou de um salário de R$2.800,00 para um de R$800,00. 

Essa diminuição na renda fez com que o pagamento das parcelas ficasse inviável. Ela planejava pagar o que ficou pendente com o salário de um concursado que prestou antes de entrar no reality. Jessi passou para o cargo que desejava em primeiro lugar, mas optou por tentar mudar a vida radicalmente participando do programa. 

Muitos questionamentos foram gerados aqui fora apontando a desvalorização dos profissionais da educação, e até o perdão da dívida de bilionários e de igrejas, mas não de alunos oriundos das classes mais baixas que devem para o programa de financiamento estudantil. Dentro dessa cacofonia da internet, uma opinião se sobressaiu e causou reações diversas nas redes sociais: uma usuária do twitter printou uma foto do perfil da participante no Instagram com um Iphone 11 com o seguinte texto “Jessi disse essa manhã para o Thiago que não paga o FIES desde agosto de 2019 por falta de condições, mas tem um iPhone 11 que foi lançado em setembro de 2019. Essa conta não fecha, se tá devendo o FIES foi por escolha dela e não por falta de dinheiro, iPhone 11 R$5.000,00 #BBB22”. 

Muitas pessoas concordaram com esse posicionamento enquanto outras discutiam contra esse tipo de opinião nos comentários. O tweet gerou até uma resposta da equipe que administra o perfil da participante nas redes e de Caroline, que disse que a irmã comprou o Iphone parcelado, depois de vender o celular antigo, como um presente para si mesma e como forma de melhorar a qualidade de suas aulas remotas. 

Em outra edição, a participante Gleici Damasceno também foi julgada por falar de dívidas fora da casa e ter um (isso mesmo) guarda roupa em casa. 

Essa tendência de “vigiar e punir” os gastos da classe mais baixa não acontece só com pessoas em grande exposição, como as participantes no reality, mas aconteceu recentemente com ativistas do MTST por distribuírem marmitas com camarão seco. 

Esse tipo de discurso acontece porque as pessoas continuam vendo as classes mais altas como detentoras de todos os poderes, os únicos que podem ter uma vida mais confortável. Veem a compra de produtos mais caros como um merecimento e não um direito. Isso é um pensamento forjado na falácia da meritocracia: se ela não trabalhou para pagar as parcelas, ela também não merece, na cabeça dessas pessoas, desfrutar de um Iphone (que é visto como um item de luxo e um objeto de valor social, mas isso é conversa para outro texto). 

A colunista da Elle Brasil, urbanista, arquiteta e ativista, Joice Berth, em um post no Instagram comentou o caso e disse que as pessoas continuam acreditando e replicando a “lógica da meritocracia” porque “não quer[em] encarar a conversa sobre sua própria exploração histórica, sobre estruturas de poder consolidadas e os truques capitalistas para acúmulo de riquezas”.

É importante também acrescentar aqui que esse discurso, alimentado pela elite que reverbera na classe média, que diz que o trabalhador esforçado também consegue mudar de classe e que essa mudança depende apenas da vontade e não de heranças e de bons contatos (e um pouco de passar a perna na justiça tributária) é falacioso e cruel. 

A indignação de quem vive em um país dolorosamente desigual e acha que pessoas mais pobres deveriam trabalhar apenas para sobreviver, sem se permitir um agrado, ou o consumo de algo que não foi “destinado” para eles não aparece quando ricos fazem compras extravagantes: Jade Picon comprou dezenas de calcinhas “descartáveis” para não precisar lavar roupa no programa e não rendeu tanto assunto quanto o celular da professora.  

Na postagem criticando a compra, outros professores se manifestaram. “Não precisa ficar se explicando não. Professor pode sim ter vida digna e consumir as coisas, vamos parar de ficar reforçando esse estereótipo de que professor é sempre um miserável que não pode consumir nada, fazer nada”, disse um internauta, e outro completou “Mesmo que não fosse para dar aula. Ela tem o direito de ter o que pode pagar. Não trabalhamos só para comer, estão descobrindo isso só agora?“. 

Pandemia do preconceito

Ativismo gorde garante direitos quando gordofobia mostra cara

Por Agnes Arruda

Começou tão logo as medidas de isolamento e restrição de circulação por causa da pandemia de Coronavírus tiveram início: a ideia de que as pessoas gordas só têm esse corpo porque ficam em casa o dia todo e comendo tudo o que veem pela frente ganhou força, e o medo de engordar na quarentena virou assunto. Ser gorda é, em primeira instância, ser julgada pela imagem, a partir do que essa imagem representa socialmente e, no caso, preguiçosa e descuidada com a própria saúde. Não foi como se as pessoas precisassem se preocupar com um vírus mortal sobre o qual pouco se sabia, para o qual não havia cura e nem vacina até então. O mais importante era saber como não ganhar uns quilos a mais durante um momento tão atípico de nossa história… Porque, né?; Deus me livre engordar!

Não demorou muito e foi a vez de obesidade ser apontada comorbidade associada à Covid. É a sentença de morte que vem quando seu IMC, obtido a partir da relação do seu peso com sua altura, está fora do que é considerado normal. Não tem muita explicação tirando a associação da obesidade com diabetes, pressão alta e cardiopatias, essas sim quantitativamente relacionadas às complicações da Covid-19. No entanto, nunca é demais ressaltar que não é regra que todas as pessoas gordas desenvolvam essas doenças, e que elas também acometem pessoas magras… Mas que o tratamento estigmatizante só vai para quem habita o corpo gordo, e os olhares julgadores, dedos apontados e longos discursos sobre ser pela nossa saúde surgem de todos os lugares.

Antes ainda de descobrirem a vacina, circulou que ela não funcionaria em corpos gordos. É o que consta nesta matéria do VivaBem UOL, ilustrada com a imagem de um homem gordo, de feição triste, sentado na cama em um quarto escuro, bem ao gosto da estereotipização da pessoa gorda. O estudo só demonstra o quanto a medicina, de partida, já considera o corpo gordo como doente a partir de um critério extremamente subjetivo como é o IMC, que apesar de numérico, não dá conta da diversidade dos corpos e das condições às quais esses corpos estão sujeitos; condições essas que interferem no peso corporal e que não há dieta, nem exercício no mundo, que sejam capazes de alterar tal cenário.

Foi quando começamos a ver pessoas gordas morrendo com Covid e não de Covid. É o caso de Renan Ribeiro Cardoso, de 22 anos, que morreu à espera de um leito, prolongada porque os equipamentos de saúde disponíveis não comportavam o seu corpo. Essa falta de equipamentos, que vão de simples aventais passando por macas e aparelhos para realização de exames, é uma das faces da gordofobia médica, que insiste em negar tratamento adequado às pessoas gordas, culpabilizá-las e puni-las por seus corpos. Assim, quando pessoas classificadas com obesidade grau 3, também chamada de obesidade mórbida, entraram na lista de prioridades para vacinação – ignorando ainda o questionamento sem qualquer fundamento dos fiscais de comorbidade alheia -, que outra expressão desse preconceito veio à tona: a privação do direito à vacina.

Sendo o IMC superior a 40 a única exigência para a vacinação pelo SUS, uma balança e uma fita métrica no próprio local de aplicação da vacina bastariam. No entanto, exige-se das pessoas gordas um laudo médico que constate a condição. Foi preciso superar o trauma gerado por anos de violência em clínicas e consultórios, reconhecer o privilégio que é ter acesso ao atendimento médico nos dias de hoje e ir em busca do tal laudo, mas isso não foi suficiente para muitas pessoas gordas; esta autora inclusa. Os relatos de que os médicos estavam dificultando o acesso ao documento sob uma pretensa problematização do uso do IMC como critério para definir a condição de saúde de alguém começaram a surgir, como consta nesta matéria de O Globo e também nesta da Folha de S.Paulo

Quer dizer: Agora, doutor, o senhor resolve implicar com isso?

Justamente agora que o que foi condenado em mim esse tempo todo pode fazer a diferença na hora de salvar minha vida?

Foram palavras que passaram pela minha cabeça quando o médico com o qual eu me consultei me encaminhou para um hemograma completo e um teste ergométrico. Confusa com o que havia acabado de viver, me calei, mas depois entendi que o que ele não queria mesmo era que eu me vacinasse, não sob o seu aval.

Foi um mês nessa novela, me expondo ao risco da contaminação ao ter que ir a consultas, postos de saúde e clínicas para a realização dos exames solicitados. Entre vergonha, confusão e sentimento de culpa, foi com uma dica do projeto Saúde Sem Gordofobia que eu finalmente consegui o laudo médico no qual meus 113 kg, meu 1,62 m e meu IMC 43 estão lá registrados. Não teve vantagem, não teve jeitinho, não teve truque; teve a superação de muitos conflitos, internos e externos, uma vez que ser gorda também é questionar se você merece algo que, por direito, já é seu.

Com tanto barulho, no entanto, alguns municípios, como Mogi das Cruzes, em São Paulo, já têm alterado seus protocolos de vacinação, diminuindo a faixa do IMC e realizando a pesagem na hora de se vacinar. Uma grande conquista depois de tanto perrengue. Vitória. E sim, eu entendo que lutar contra a patologização do corpo gordo e me vacinar justamente pela faixa do IMC soa contraditório. No entanto, a compreensão de que meu corpo é preterido pelo sistema, mesmo ele estando saudável, é latente… E para lutar é preciso estar viva. Que todas possamos estar.

Acesse o site AzMina.

A amizade e o amor queer

Por Florence Belladonna Travesti para o Laboratório de Linguagens e Diversidade Sexual

O amor das amizades queer, em comunidade…  É nessa comunidade que forma-se ao meu redor, e que eu também formo em outras pessoas, que eu gostaria de tratar hoje. Aqui eu disponho, exatamente, da crença entre verdades e existências mútuas, da amizade enquanto uma estética da existência, como aquela que nos ensinou Michel Foucault.

Numa perspectiva marginal, ou pelo menos que não tem referências hegemônicas, poder dizer “te amo, amigo”, “estou aqui contigo”, e saber que neste amor fraternal está um pacto de força, de ativismo, de posicionamento político, que não tem preço, em um tempo que o amor anda fraquejado, vítima de conturbações políticas.

Obviamente o amor, enquanto uma estética da existência, é algo construído. O “eu te amo, amigo”, banalmente dito à torto e direita, como quem diz “eu gosto de você”, não é a mesma coisa de quem diz, “eu gosto de você e estou aqui contigo, por isso, eu te amo”. Aqui, há uma tonalidade diferente de crença no que se pode fazer, sempre à frente, com a amizade e com a política.

Às vezes, eu ouvia de familiares que “amigo” mesmo é a “família”, que está ao nosso lado em tempos ruins. É contraditório, se pensarmos que em muitas famílias de pessoas LGBTs, há enrascadas sentimentais que são colocadas por pessoas consanguíneas e que, deparando-se e tentando lidar com isso, é a nossa família de amigos que nos ampara.

Nessa relação entre amizades enquanto família, têm algo de bonito que a gente aprende: a espontaneidade. A espontaneidade é um traço das relações sociais afetivas que se consolidam quando a gente tem total confiança em quem nos vê. É como estar totalmente desnuda, indefesa e naturalmente forte ao mesmo tempo.

A espontaneidade das relações afetivas também tem algo de descolonial, de indomável, é não deixar que a docilização sobre os corpos triunfe. É não auto-docilizar-se.

Durante algum tempo da minha vida, quando as amizades queer ainda eram escassas, havia especulações do tipo “será ela carente?”. Não…  Acho que é porque, entre o amor e a política, ou o amor enquanto política, ou mesmo a política bondosa enquanto amor, a amizade é forjada em situações limites… O próprio ativismo que permeia o amor e a política entre pessoas queer, é o forjo entre a sobrevivência e o gozo. Há uma diferença aí, em não banalizar a palavra amor, e cultivar respeito às diferenças, mesmo que seja-nos dito a todo momento que ninguém ama as diferenças.

O amor queer da amizade é como o amor de uma criança, enquanto existência estética que não passa pelo crivo de olhares nem de provas, mas da crença pura da vontade de fazer, daquela que tínhamos só quando éramos pequenos, como quem diz “eu acredito em você e também estou aqui. E agora, vamos brincar?”. Em contrapartida, o “prove-me que ama-me” é uma invenção dos adultos, dos políticos e dos que se deixaram convencer pelas más políticas.

Crianças, assim como amores queer, não provam nada umas às outras, elas só andam juntas e brincam. E quando cansam, vão para casa descansar, e depois voltam. O amor da amizade enquanto estética da existência é isso, é o que se diz sem necessidade de provas, sabendo-se que a outra pessoa jamais teria coragem de fazer uso de fontes incertas, com crenças que ali estão duas pessoas em referências de apoio e confiança. Tudojunto.

Parece estranho e confuso, esse retorno, e realmente é, porque o que está se colocando é a confiança nas palavras enquanto ação transformadora, no ativismo e na luta incessante, em um país que refina a morte.

O que não se perde com isso? Não se perde o vigor, a força e a beleza de lutar, de acreditar, de passar pelos piores furacões, mas mesmo assim olhar para o lado e saber que há alguém contigo, e que nenhuma dor é sozinha, assim como a alegria é conjunta.

A estética da existência de uma amizade é um privilégio compartilhado por duas ou mais pessoas que compreendem e constroem uma ética de existência política, e aí o amor verdadeiro, com palavras vasculares e suculentas, que só existem e estão, como quem diz de alguém que só existe aí, que está aí, e torna-se os próprios fios de ouro de tecido bordado, onde um só consegue dar o ponto se o outro conseguir laçar a linha. Este é amor em amizade recíproco, forjado em sorriso, apesar de uma terra de choros.

Em algumas metáforas, que dão suculência às intenções, também dão suco aos motivos da permanência, da ação de garantia da integralidade física, intelectual e cultural de um povo. É o amor o próprio suco da crença em uma série de ações, ativismos, que mantêm em pé toda a nossa família, para dizer que logo menos estaremos bem. E aí, então, continuaremos fortes, de nutrientes que não fazem sentido para pessoas normais, mas todo o sentido para quem foi socializado enquanto estranha, e descobriu que na realidade não é.

Acesse o texto no site Lalidis.

[Artigo] Retrospectiva: como anda a educação em direitos humanos no Brasil?

Por Talitha Paratela[1], mestre em Linguística Aplicada, com foco em Educação e Linguagem, pela Unicamp e bacharela em Letras pela USP. É voluntária da Casa 1.

Não é incomum ouvir uma parte da população dizer que os direitos humanos são “privilégios de bandidos”. O contexto da formação de direitos no Brasil, que aconteceu na redemocratização do país depois de mais de duas décadas de regime militar, influenciou a associação entre direitos humanos e cárcere no imaginário popular, especialmente em São Paulo, que teve altos índices de criminalidade entre 1983 e 1985 (CALDEIRA, 1991), mesmo período em que os movimentos sociais estiveram à frente da conquista de direitos básicos, muitos deles também direitos humanos, como acesso à educação, saúde e moradia. Para muitas pessoas, os direitos humanos se restringiam ao direito ao acesso à justiça. No entanto, visam a mais do que isso, sendo norteadores das relações humanas e da dignidade em sentidos amplos. A opinião pública distorce, então, qual é a importância dos direitos humanos e em quais áreas da vida social incidem, concentrando-se em poucos parágrafos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU).

No Brasil, a criação de leis e normas educacionais que abarcam os direitos humanos na educação começou há quase duas décadas e meia. Com isso, debates como o direito à livre expressão de gêneros, raças-etnias, orientações sexuais e religiões ganharam mais espaço nas salas de aula, o que gerou a resistência de grupos políticos conservadores. Um dos movimentos que se posicionam contra as teorias sobre as quais são construídas os atuais conteúdos curriculares é a Escola sem Partido. Suas ideias se tornaram um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados e ameaçam um ensino, de fato, voltado para os direitos humanos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, é assinada por países do mundo inteiro – inclusive, o Brasil – e estabelece regras que privilegiam a dignidade em múltiplos aspectos da vida social, a igualdade de direitos, o progresso e as condições de vida adequadas. Seus parágrafos defendem o direito à igualdade, à liberdade (de raças, orientações sexuais, culturas, religiões, opiniões políticas etc.), à vida, à segurança pessoal, ao trabalho digno, ao fim das torturas, à livre circulação, à migração, à propriedade e à liberdade de pensamento, entre outros direitos. O respeito aos direitos humanos deve ser transmitido às diferentes gerações por meio da educação, conforme dispõe o preâmbulo.

O início da implementação dos direitos humanos na educação brasileira foi no fim dos anos 90, com os Parâmetros Nacionais Curriculares. No documento, que contém diretrizes educacionais instituídas pelo Ministério da Educação, em 1997, propõe-se o amplo entendimento dos direitos e deveres nas relações sociais por meio da inclusão dos temas transversais na grade curricular, cujo foco é a ética, a pluralidade cultural, o meio ambiente, a saúde e a sexualidade. Esses temas não devem ser abordados em disciplinas criadas especialmente para debatê-los, e sim ser integrados às disciplinas já oferecidas, como língua portuguesa, matemática e ciências biológicas e naturais. 

Os temas transversais se subdividem em eixos. O estudo da ética nas relações humanas abrange o respeito mútuo, a justiça, o diálogo e a solidariedade. A pluralidade cultural diz respeito à diferenciação dos grupos sociais, em especial, dos migrantes. O meio ambiente transforma o debate sobre a natureza em humano, tirando-o de suas dimensões física e biológica. A saúde prioriza o conhecimento sobre o corpo, o autocuidado, o cuidado com as pessoas que nos cercam e o cuidado como dever do Estado. A orientação sexual concerne à educação sexual e às relações de gênero. Cada um desses temas deve atender às urgências nacionais e locais, sendo competência, também, dos estados e municípios a determinação de medidas educativas que privilegiem as características e necessidades regionais.

Eles se ancoram na interdisciplinaridade, que permite o estabelecimento de relações entre os campos do saber, integrando-os, já que os mesmos objetos de estudo podem ser observados através de várias perspectivas. Além da interdisciplinaridade, baseiam-se na transversalidade, que proporciona uma estreita relação entre os saberes e a vida social e atribui aos sujeitos a produção do conhecimento. Com isso, amplia-se o debate sobre os valores e as normas, em consideração às diferenças e aos vários sistemas normativos. Esse tipo de ensino estimula a aprendizagem e o respeito aos direitos básicos, atendendo aos artigos 1º e 3º da Constituição de 1988 ao incluir seus princípios nos conteúdos ministrados nas escolas (MEC, 1997).

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; […]

V – o pluralismo político.

[…]

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988).

A transversalidade na educação surge sob a influência da consolidação de um Estado democrático de direito, cujo documento mais importante, o da Constituição Federal, busca proporcionar aos brasileiros e às brasileiras uma vida e um trabalho dignos, liberdade para se posicionar politicamente, justiça, solidariedade e o fim das desigualdades e discriminações, como pode ser observado nos excertos anteriores, extraídos dos artigos 1º e 3º. Embora a Constituição tenha tal finalidade, desde 1988, questões como essas, que são centrais na democracia, continuam a ser grandes desafios.

A falta de dignidade, a censura e retaliação política, as injustiças sociais, o preconceito e a apatia dos governos e das elites diante das mazelas da sociedade perpetuam depois de mais de cinco séculos de colonização e, mais recentemente, de uma ditadura militar. A opressão está nas raízes do Brasil. Em vista da história, os Parâmetros Curriculares Nacionais propõem uma educação baseada na Constituição de 1988, que ser deve orientada à dignidade, ao reconhecimento da diversidade, à igualdade de direitos, à participação popular e à corresponsabilidade da população e do Estado de manter os princípios da democracia como elementos basilares da vida social (MEC, 1997).

A educação em direitos humanos começou a ser delineada através do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, cuja versão final é de 2006. Esse documento tem abrangência em diferentes níveis de ensino: educação básica, educação superior, educação não formal, educação de juristas e profissionais de segurança pública, e educação e mídias. Entre os seus objetivos, estão o fortalecimento do Estado democrático de direito, a constituição de uma sociedade ancorada na justiça, igualdade e democracia, o cumprimento dos compromissos firmados pelo Brasil com outros países, a transversalidade da educação em direitos humanos nas políticas públicas e a implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos, mais conhecido pela sigla PNDH, iniciado em 1996 (BRASIL, 2006, pp. 26-27).

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos norteia as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, de 2012, que surgem para incorporar à educação uma das garantias constitucionais do artigo 4º, a prevalência das regras e dos princípios estabelecidos internacionalmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. As diretrizes asseguram que, desde o ensino básico, os assuntos relativos aos direitos humanos sejam discutidos nas salas de aula, proporcionando a discussão sobre direitos humanos nas instituições educacionais e implicando a responsabilidade dos sujeitos com os outros. A dignidade humana, a igualdade de direitos, o reconhecimento da diversidade, o Estado laico, a sustentabilidade socioambiental e a defesa da democracia também são centrais no documento de 2012.

Tais leis educacionais de direitos humanos são amparadas e estimuladas pela ONU e por seus tratados internacionais, conforme estipula a própria declaração e a Convenção de Paris de 1960. Na educação brasileira, sua implementação traz uma série de mudanças, como a inclusão das noções dos direitos humanos em projetos políticos-pedagógicos, regimentos escolares, planos institucionais de desenvolvimento, grades letivas das instituições de ensino superior, materiais didáticos e paradidáticos, modelos de ensino e pesquisa, gestão escolar e processos de avaliação (BRASIL, 2012). 

As políticas públicas educacionais de direitos humanos em vigência no país são minadas por projetos populares como a Escola sem Partido, que se inspira em uma organização dos Estados Unidos denominada No Indoctrination. Conservadores, esses movimentos têm ganhado força nos últimos anos, propagando a ideia de que existe uma “doutrinação” (ESCOLA SEM PARTIDO, s/d) nas escolas. Eles transformam o discurso sobre liberdade e multiplicidade de perspectivas no ensino em um manifesto em favor do fim das discussões promovidas pelos programas de educação em direitos humanos.

Numa sociedade livre, as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade (ESCOLA SEM PARTIDO, s/d).

Nessa visão, embora as escolas devam se abrir a múltiplas visões, elas precisam propor uma reflexão neutra e equilibrada. Porém, a realidade não pode ser refletida, já que, nós somos sujeitos – singulares, cada qual com a sua trajetória de vida e seu próprio modo de interpretar o mundo –, e não um espelho. Sendo assim, um discurso que se diz neutro nunca é um discurso, de fato, neutro. Não existem discursos neutros, pois todos são produzidos por sujeitos. Ao incentivar a censura a educadores e gestores escolares e a repressão a grupos políticos estudantis, a Escola sem Partido é contrária a diversas liberdades garantidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, confrontando-a e, assim, posicionando-se contra as igualdades de direitos e a dignidade humana. 

O movimento põe na conta de grupos políticos que qualifica como hegemônicos uma suposta falta de diversidade de ideias nas salas de aula, já que haveria uma imposição de certas “correntes políticas e ideológicas” (ESCOLA SEM PARTIDO, s/d), apesar de os programas de educação em direitos humanos terem sido elaborados em governos de partidos diferentes, considerados como oposição um do outro. Os temas transversais e as primeiras modificações das normas de educação brasileiras em prol da diversidade e dignidade humana foram feitos no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), nos anos 1990, e a continuidade dessas políticas de educação ocorreu em governos posteriores, no de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nos anos 2000, e no de Dilma Rousseff (PT), nos anos 2010. 

As pautas defendidas pela Escola sem Partido se tornaram o projeto de lei nº 246/2019, que tramita no Congresso Nacional, sendo de autoria de deputados do PSL, Novo, DEM e Pode. Entre os principais artigos, está a proposta de acabar com a obrigatoriedade de ensinar religião e princípios morais nas escolas e transferir a responsabilidade e autonomia de ensino para tutores e responsáveis por crianças e adolescentes. Ou seja, defende-se uma troca de instituições em pontos basilares da educação em direitos humanos, que passa da esfera da escola para a família, o que causa o enfraquecimento das políticas de educação, que, atualmente, incorporam os direitos humanos em diretrizes, planos pedagógicos e produções didáticas e paradidáticas – sem contar o fato de que os direitos humanos são fundamentados por estudiosos de diversos campos do saber, como as ciências sociais, o direito e as relações internacionais, e não são especialidade das famílias.

Outro destaque é o artigo 2º do projeto de lei, em que se afirma que “o Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero” (BRASIL, 2019). Se o Estado, por meio de suas instituições, como a escola, não intervir na educação sexual de jovens, quem o fará? A família? Essa é uma proposta problemática porque mais de 70% dos casos de abuso sexual acontece na casa da própria vítima, sendo que 40% deles são cometidos pelo pai ou padrasto, segundo um balanço de 2020 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

É dever do Estado brasileiro, que assinou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e precisa ratificá-los por meio da criação de leis – como o fez na educação –, inibir o abuso sexual por meio de uma educação sexual efetiva nas escolas. Também não se sabe o que os autores do projeto de lei entendem como uma abordagem dogmática ou proselitista de gênero. A desigualdade de direitos entre os gêneros não é (nem deveria ser) uma questão de um só partido ou uma só vertente política, e sim de todas as pessoas do poder público que nos representam politicamente. Não somente o gênero como também todos os direitos universais devem ser de interesse dos governos, prezando efetivamente pelos princípios da declaração.

O artigo 7º do projeto de lei da Escola sem Partido assegura aos alunos e às alunas o direito de gravar seus professores e professoras, a fim de proporcionar a seus responsáveis terem “ciência do processo pedagógico e avaliar a qualidade dos serviços prestados pela escola” (BRASIL, 2019). Com isso, a perda de autonomia profissional e a vigilância dos profissionais de educação seria liberada por lei, ferindo a Constituição de 1988, que garante, pelos incisos II e III do artigo 206, a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (BRASIL, 1988) e o “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino” (BRASIL, 1988).

A Escola sem Partido, além de defender uma falsa neutralidade do ensino, mascara-se como um projeto que defende o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (BRASIL, 2019) e a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (BRASIL, 2019) – como se estivesse em consonância com a Constituição Federal –, mas promove uma guerra ideológica contra esse pluralismo e essa liberdade que fingem defender ao polarizar docentes e estudantes, eximir as escolas da educação moral, religiosa e sexual, coibir o debate de ideias, estimular o envolvimento da família em temas que deveriam ser de caráter escolar, proibir a manifestação política de estudantes e adotar uma política de vigilância, submetendo a educação a uma patrulha ideológica.

A aprovação da Escola sem Partido seria um retrocesso sem tamanho para o Brasil. As políticas educacionais de direitos humanos levaram muitos anos para serem estabelecidas nas instituições de ensino, considerando que ainda há melhorias a fazer. A aprovação desse projeto de lei seria um obstáculo à continuidade da educação para a diversidade, minando discussões nas quais a ordem e o status quo são questionados, e à própria democracia, violando pontos da Constituição e confrontando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora se afirme o contrário. Além disso, comprometeria a transmissão dos princípios da dignidade humana através das gerações. O discurso falsamente neutro do movimento Escola sem Partido é, então, um discurso conservador contra o pensamento crítico.

A ideia de um ensino livre de “doutrinação” é de interesse do atual governo, cujo representante máximo, o presidente da República, Jair Bolsonaro, elegeu-se por sua campanha favorável ao preconceito contra o público LGBT[2] e ao autoritarismo da ditadura militar[3], sendo contrária à expressão de gêneros, orientações sexuais, raças-etnias e religiões que desviem do padrão cisgênero, heterossexual, branco e cristão – e se enquadrem na chamada “ideologia de gênero”. A “ideologia de gênero” é parte da agenda de partidos e movimentos políticos, como a Escola sem Partido.

Os pesquisadores Miskolci e Campana (2017) atribuem uma das origens da expressão “ideologia de gênero” à igreja católica. Segundo eles, as reações dos líderes católicos às políticas reprodutivas e sexuais e sua adesão ao argumento biológico[4] sobre os sexos foram centrais no papado de Bento XVI, quando a “ideologia de gênero” foi mencionada no Documento de Aparecida, de 2007. Na seção no 40, define-se “ideologia de gênero” como um conjunto de comportamentos que ferem os dogmas religiosos, relacionados, principalmente, às questões de sexualidade e gênero.

Com o tempo, a noção de “ideologia de gênero” deixou de se restringir à igreja católica e foi adotada por outras vertentes religiosas – como a evangélica –, pelo poder público e pela sociedade civil organizada. Graças a ela, busca-se espalhar um pânico social por meio de ações políticas, jurídicas e midiáticas que pressionam pelo veto às leis e medidas reprodutivas e sexuais (MISKOLCI; CAMPANA, 2017). Nessa onda, surfa a Escola sem Partido, que se posiciona de modo conservador contra os direitos humanos no campo educacional, apesar de se considerar neutra – o que não é, pois, como vimos, os discursos sobre “ideologia de gênero” não surgem do nada: formam-se em vários campos do saber, entre eles, a religião.

O que se espera, então, é tirar a educação em direitos humanos de cena e implementar um novo tipo de educação – retomada das épocas de autoritarismo da ditadura –, que sofrerá com a censura de temas sociais e políticos na grade curricular, nos planos pedagógicos e nos materiais didáticos e paradidáticos. Para os grupos conservadores, a educação em direitos humanos é de interesse de uma corrente política ameaçadora que supostamente tomou conta do Brasil. Os discursos desses grupos são contraditórios por defenderem leis, técnicas e procedimentos retrógrados para a educação, mas, ao mesmo tempo, o pluralismo de pensamentos e o embasamento científico.

O verniz do livre pensamento de projetos como a Escola sem Partido visa esconder as desigualdades, a discriminação e o preconceito e é um perigo para a democracia de um país, que, depois de mais de três décadas, continua à prova. Por isso, é imprescindível que os direitos humanos sejam, de fato, conhecidos e entendidos como princípios em prol da dignidade humana, os quais abrangem inúmeros aspectos da vida (social, econômico, ambiental etc.) e valorizam todos os seres. Eles se ancoram nos valores democráticos e são a base do combate ao autoritarismo que ronda de tempos em tempos.

Notas

[1] Gostaria de agradecer à Roberta Cerqueira Borges pela revisão e pelas inúmeras contribuições a este texto.

[2] Esta reportagem da Agência Pública mostra como as eleições presidenciais de 2018 foram influenciadas por disparos massivos de mensagens em redes sociais, como o WhatsApp. Merecem destaque o boato sobre o “kit gay” e a onda de preconceitos contra o público LGBT que gerou na internet.

[3] De acordo com a Agência Lupa, em 1999, Bolsonaro deu uma entrevista à TV Bandeirantes, na qual afirmava ser a favor da tortura e do fechamento do Congresso Nacional, heranças da ditadura. Já eleito presidente, em 2019, declarou que o coronel Brilhante Ustra, condenado por ter cometido crimes de tortura e ocultação de cadáveres no regime militar, é um “herói nacional”.

[4] Esse argumento sobre os sexos, vistos de forma binária (homem-mulher), volta-se para o determinismo biológico, em que as atribuições sociais dos homens e das mulheres dependem exclusivamente das características de seu corpo. Sendo assim, opõe-se a várias teorias de gênero, nas quais os gêneros são construções sociais mutáveis e seus significados dependem do contexto sócio-histórico em que inserem.

Referências bibliográficas

BRASIL. Constituição Federal (1988). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

BRASIL. Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (2006). Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/2191-plano-nacional-pdf/file. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

BRASIL. Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (2012). Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/educacao-em-direitos-humanos/DiretrizesNacionaisEDH.pdf. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

BRASIL. Projeto de Lei nº 246/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190752. Acesso em: 15 de outubro de 2020.  

CALDEIRA, Teresa. Direitos humanos ou privilégios de bandidos? Desventuras da democratização brasileira. Novos Estudos, São Paulo, n. 30, jul/1991.

ESCOLA SEM PARTIDO. Apresentação. Disponível em: http://www.escolasempartido.org/quem-somos/. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

MEC. Parâmetros Nacionais Curriculares (1997). Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/introducao.pdf. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. Ideologia de gênero: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo (2017). Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922017000300725&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

[Artigo] Defenda o SUS: O que é o Revogaço?

Artigo escrito por Lívia Lourenço Dias (Clínica Social Casa 1), Pamela Michelena (Grupo de Trabalho Jurídico da Casa 1) e Mariana Penteado (Grupo de Trabalho de Saúde da Casa 1)

Introdução

Em meio à maior crise sanitária em que o Brasil se encontra, desencadeada pela covid-19, que até agora já fez mais de cento e oitenta mil vítimas, e os consequentes debates sobre a importância do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde do atual presidente Jair Bolsonaro engendra mais uma proposta de destruição da saúde pública no país. O alvo agora são as políticas de saúde mental, fruto de anos de luta de diversos movimentos sociais e articuladas durante diversos governos do regime democrático brasileiro, entre os anos de 1991 a 2014. 

Enquanto boa parte da esfera pública joga luz nas questões de saúde mental que acomete brasileiros e brasileiras e se acirra durante o período de quarentena e isolamento social, o governo federal planeja mais um sequestro de direitos e um ataque frontal à Reforma Psiquiátrica, pautada em pilares de respeito aos direitos humanos, autonomia, cuidado, territorialidade e um compromisso ético com os usuários, familiares e a sociedade. 

O momento não é fortuito, visto que as revogações das portarias propostas pelo ministério da Saúde chegam em um período em que, caso executadas de acordo com as intenções do governo, coincide com o recesso do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, o que dificultaria eventuais questionamentos e barreiras para a sua realização. 

Por isso, diversas entidades, conselhos de classe e movimentos trabalham em conjunto na organização de uma agenda que leve informação e dados científicos sobre a importância e eficiência dos atuais programas de saúde mental e na defesa da reforma psiquiátrica e luta antimanicomial. 

O que é a Reforma Psiquiátrica

Antes de compreender a Reforma Psiquiátrica, é preciso entender a que ela procurou responder.

Basicamente, foi uma resposta ao modo de lidar com as pessoas em sofrimento psíquico que se construiu nos últimos 300 anos. Quando um processo social perdura por tanto tempo, comumente perdemos a referência de seu caráter construído e as relações que se produzem passam a parecer naturais.

Com a construção histórica da noção de transtorno mental não foi diferente. Pode parecer lógico, para as pessoas do século XX, que o eixo doença mental – internação – psiquiatria caminhe sempre junto. Mas nem sempre foi assim.

Os modos de sofrer e de lidar com as pessoas que sofrem são essencialmente culturais e políticos. Embora a figura da loucura tenha existido de maneira permanente na história da humanidade, suas formas, seus nomes e as maneiras de olhar para ela se transformaram ao longo dos séculos (Foucault, 1961). A loucura já foi vista como manifestação dos deuses na Grécia Antiga ou de forças da natureza na Idade Média.

A história moderna e contemporânea foi marcada pela loucura nomeada como transtorno mental, sobre o qual deve atuar o poder médico e o saber psiquiátrico e que deve ser tratada no âmbito manicomial. 

Esse movimento de olhar para a loucura como desvio e como processo de adoecimento, ao mesmo tempo que possibilitou o direito à assistência médica, retirou o direito à cidadania.

Os manicômios, enquanto instituições, trazem em si a lógica do isolamento e do encarceramento da diferença. A internação manicomial foi sempre pautada pela perda de direitos e pela violência: para além da privação de liberdade e da perda da centralidade em sua própria história, as pessoas eram (e ainda são) submetidas a torturas e violências diversas. O trabalho da jornalista Daniela Arbex, em seu livro “Holocausto Brasileiro”, traz um relato detalhado das violações de direitos humanos e do genocídio acontecido no Hospital Colônia de Barbacena, que resultou em 60 mil mortes (para conhecer mais livros e filmes sobre a questão antimanicomial, clique aqui).

O uso do nome Holocausto não é uma coincidência, já que foi a partir do final da Segunda Guerra, com a constatação dos horrores dos campos de concentração, que foi gerado um padrão possível de comparação para as imagens das pessoas institucionalizadas em manicômios e a violência sistematizada que sofriam.

O período pós-Guerra trouxe a preocupação, em várias áreas (na Filosofia, na Sociologia, na Psicologia), de olhar para o ser humano como um ser em contexto: não como um ser biológico isolado, mas como multideterminado. Nas décadas de 50 e 60 começaram várias tentativas de superação dos asilos e manicômios ao redor do mundo: Maxwel Jones com as Comunidades Terapêuticas na Inglaterra, a Psiquiatria Comunitária nos Estados Unidos e a Psiquiatria Democrática na Itália. A experiência italiana, tendo por seu maior expoente Franco Basaglia (2005), passou a entender a loucura como um fenômeno humano, atravessado pelo contexto e, portanto, que deve ser lida dentro dos recortes da subjetividade, dos laços familiares e comunitários e pela sociedade como um todo.

No Brasil, a preocupação com a reconstrução dos modos de lidar com a loucura veio um pouco depois, já na década de 80, no contexto da redemocratização do país.

O Movimento pela Reforma Sanitária trouxe a ideia de saúde como direito de todos e como um dever do Estado, que resultou, após anos de luta, na instituição do SUS. Isso é importante porque os princípios organizadores do SUS valem para a rede de atenção em Saúde Mental, como por exemplo:

  • Regionalização e territorialidade: o cuidado deve ser localizado no território onde a pessoa vive, superando a lógica de exclusão e afastamento da comunidade;
  • Hierarquização: a atenção em saúde deve acontecer em diversos níveis, de acordo com as necessidades de assistência;
  • Descentralização: a administração e o controle da rede não devem estar em uma única esfera de poder, mas sim são de responsabilidade da federação, do estado e do município;
  • Assistência integral: direito à assistência independentemente das vulnerabilidades regionais;
  • Participação popular: o povo tem direito a controlar e opinar nas formas de assistência.

Em 1987 aconteceu a Primeira Conferência Nacional de Saúde Mental, que deu origem ao Projeto de Lei Paulo Delgado, que estabelece novos paradigmas de cuidado para as pessoas em sofrimento psíquico. Esse sistema cria novos equipamentos para substituir o hospital psiquiátrico, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura e os leitos de atenção integral (para casos de internação, deixando de lado os leitos em Hospitais Psiquiátricos e passando para Hospitais Gerais, e para os CAPS III). 

Posteriormente, em 2011, a política nacional de saúde mental passa a ser sistematizada no modelo da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Por que a RAPS é considerada modelo internacional?

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), pautada na atual política nacional de saúde mental do Brasil e, ameaçada pelo governo Bolsonaro, é reconhecida por diversos órgãos internacionais como a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), além de amparada por inúmeros estudos científicos.  

Compreender sua abrangência, atuação no território e diretrizes pautadas na desinstitucionalização das diversas vivências, garantindo a livre circulação e a inserção ou reinserção dessas pessoas em suas comunidades e na sociedade e defender a RAPS é fundamental para a construção de uma sociedade estruturada no respeito aos direitos de todos os cidadãos e cidadãs ao acesso a um serviço de saúde justo, qualificado e integral.

O processo de estruturação e consolidação da RAPS ocorreu em vários eixos, de acordo com os já citados princípios do SUS, sendo os principais:

DESINSTITUCIONALIZAÇÃO

Processo de garantir o cuidado em liberdade, visando garantir o livre trânsito, a proximidade com a família e a comunidade, a inclusão e a participação.

  • Substituição de leitos em hospitais psiquiátricos para leitos em hospitais gerais;

Isso gera uma redução no tempo de internação, deixando de criar moradores de hospitais psiquiátricos (o critério para ser considerado morador de hospital psiquiátrico é que se passe de 2 anos ininterruptos de internação). Embora a maioria dos 25000 leitos no Brasil ainda estejam em hospitais psiquiátricos, a redução foi extremamente importante.

  • Criação dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT);

As residências terapêuticas seguem a lógica da assistência integral e aparecem como uma tentativa de reparação social pelo fato de que pacientes de saúde mental foram transformados em moradores de hospitais psiquiátricos (privados por anos de sua liberdade, institucionalizados e afastados da vida social). 

  • Programa De Volta pra Casa.

Assistência e auxílio-reabilitação psicossocial a pacientes que tenham permanecido por longos períodos em internação. 4349 pessoas se beneficiaram do programa entre 2003 e 2015.

INTEGRAÇÃO COM A ATENÇÃO BÁSICA

A Atenção Básica é a porta de entrada preferencial no SUS e entender que a Saúde Mental é um tema que aparece em diferentes atendimentos no campo da saúde é essencial para a capilaridade do sistema. Isso permite lidar com as questões antes de que seja necessária uma intervenção médico-psiquiátrica, identificando possibilidades de acompanhamento em Saúde Mental de maneira mais integral, passando inclusive pela prevenção e pela identificação de momentos importantes da vida psíquica de pessoas ou grupos, fornecendo assistência antes de que os problemas irrompam (por exemplo junto a escolas e a jovens mães).

  • Criação de NASFs (Núcleos de Apoio à Saúde da Família) para o diálogo interdisciplinar e a proposta de clínica ampliada nos territórios;
  • Programa Consultório na Rua, para a atenção de pessoas em situação de rua, visando trabalhar a questão de acesso aos equipamentos de saúde.

ATENÇÃO PSICOSSOCIAL ESPECIALIZADA

  • Centros de Convivência e Cultura;
  • Centros de Atenção Psicossocial (CAPS em suas diferentes modalidades). Foram implantados cerca de 3100 CAPS no Brasil, com altas taxas de sucesso segundo Tomasi (2010) (redução em quantidade de crises, menor quantidade de hospitalizações de usuários do serviço, redução no uso de medicação).

Além da preocupação com o reconhecimento de pessoas em sofrimento psíquico como cidadãos de direitos e com o aumento e desenvolvimento do cuidado em rede baseado na noção de comunidade, a reforma do sistema de saúde mental mudou também os padrões de financiamento dos equipamentos de saúde e assistência. Portanto, é uma ação essencialmente política e, quando ameaçada, devemos nos perguntar: quem ganharia com isso? A resposta é simples, quem perde dinheiro com o cuidado em rede são:

  •  Os donos de comunidades terapêuticas ligadas a instituições religiosas (e portanto a Bancada da Bíblia também) e que sistematicamente violam os direitos das pessoas internadas;
  • Donos de hospitais psiquiátricos;
  • A indústria farmacêutica, já que o cuidado em rede reduz os processos de medicalização.

São esses os atores institucionais interessados em lucrar com o desmonte da RAPS. 

O que é o Revogaço?

No início deste mês de dezembro, o Ministério da Saúde apresentou ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e ao Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasens) uma proposta que prevê a revogação de cerca de 100 portarias sobre saúde mental, editadas desde a década de 90 e que atingirão diversos programas e serviços oferecidos pelo SUS. 

O chamado revogaço, pautado em um discurso de falta de eficácia, produtividade e obsolescência do sistema, se propõe a desmantelar a RAPS e, portanto, os serviços e equipamentos por ela ofertados como os já mencionados anteriormente: os CAPS, os Serviços Residenciais Terapêuticos, o Consultório na Rua e o De Volta para Casa. Soma-se a isso, a suspensão do Programa de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar do SUS.

A proposta também afrouxa o controle sobre as internações involuntárias, que hoje precisam ser comunicadas previamente ao Ministério Público. 

A derrubada de todas essas portarias e seu consequente efeito nas políticas públicas em saúde mental trariam um efeito desastroso para toda a sociedade. Desmantelar serviços significa desassistir pessoas, pessoas que estão inseridas em uma comunidade, na qual todos nós fazemos parte. Além de abrir caminho para um retrocesso histórico no campo das lutas antimanicomiais e do encarceramento em massa. 

É fundamental explicitar, que o revogaço atende a interesses de uma parcela única da população, que persegue a manutenção de um poder e saber único, pautados no domínio e controle dos corpos.

O que a população LGBTQIAP+ tem a ver com isso?

A Luta Antimanicomial não é de interesse apenas de profissionais de saúde e de usuários do sistema de saúde mental. A lógica manicomial não diz apenas de uma instituição ou de um lugar, ela é uma forma de pensar como lidar com a alteridade e com a diferença.

Os hospitais psiquiátricos atuaram historicamente como um meio de afastar das cidades (fisicamente, já que os manicômios eram construídos distantes dos centros, e simbolicamente, pois criam a ideia de que as pessoas em sofrimento psíquico não podem conviver em sociedade) os indesejáveis. Nessa lista de pessoas que não se enquadravam na norma, além de pessoas em sofrimento psíquico, estavam também aquelas consideradas como perturbadoras da ordem, como mulheres que desobedeciam seus maridos, crianças em conflitos com os pais e pessoas LGBTQIAP+.

A despatologização das identidades LGBTQIAP+ é absolutamente recente. Apenas em 1990 (particularmente no dia 17 de maio, que é também o dia nacional de Luta Antimanicomial) a OMS retirou a homossexualidade da CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde). E as transexualidades deixaram de ser classificadas como transtornos mentais pela OMS apenas em 2019. A luta é, portanto, muito mais próxima do que pode parecer.

Para além dos manuais classificatórios e de uma estrutura institucional, a lógica manicomial é uma ideologia que fundamenta a possibilidade de sistematicamente excluir e violentar a diversidade. Portanto, não é possível falar de combate ao machismo, ao racismo, ao classismo e à LGBTQIAP+fobia sem falar de Reforma Psiquiátrica.

Nesse sentido, a Casa 1 reafirma seu compromisso ético com a defesa do SUS e da RAPS, combatendo a lógica higienista e de extermínio de corpos e corpas diversas.

A Luta Antimanicomial é parte da luta por direitos da população LGBTQIAP+!

Por que o que está acontecendo é grave?

As portarias dos ministérios (como estas que estão sendo discutidas) são instrumentos de regulação para implementação de políticas públicas, para determinar o funcionamento mais específico das leis (assim como outras normas). Como elas são feitas dentro das estruturas dos ministérios, elas podem ser “excluídas” por eles também (por meio da revogação). 

Como o Presidente da República é quem indica quem serão os Ministros, existe uma influência política clara no que acontece. Exemplo disso é lembrarmos das trocas constantes que ocorreram durante o ápice da Pandemia, por discordância do Presidente com as estratégias adotadas pelos vários Ministros da Saúde que ele demitiu.

O que não pode acontecer, e que está acontecendo, é a utilização destes espaços e poderes como formas de acabar com políticas e instituições que se provam mais do que necessárias para a sobrevivência da população brasileira. 

O artigo 196 da Constituição Federal fala: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

Já temos raros espaços e programas públicos para atenção à saúde mental, especialmente em um momento delicado em que nos encontramos, observa-se ainda mais a dificuldade do sistema em dar conta de toda a demanda. Por isso, a intensificação do sucateamento do sistema público de saúde, e principalmente, a destruição do pouco que resta deste sistema para atenção à saúde mental, viola gravemente a Constituição Federal. 

Como acompanhar o que está acontecendo?

Para acompanhar dados reais e concretos sobre o funcionamento das instituições e serviços que podem ser afetados pelo revogaço, vale sempre acompanhar o DATASUS . Contra o discurso infundado de ineficácia, a informação é sempre a melhor saída para alimentar um debate realista.

Como estratégia de luta contra o revogaço, foi criada a Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial , composta por profissionais de diversas especialidades atuantes na RAPS e outras instâncias, movimentos sociais, usuários do sistema de Saúde Mental e familiares. Vale acompanhar as Assembléias ou as postagens para entender como se articular.

Referências

  • Basaglia, F. (2005). Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond.
  • Foucault, M. A História da Loucura na Idade Clássica (1961). 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.

Lívia Lourenço Dias é psicanalista formada pelo Instituto Sedes Sapientiae. Atua nas áreas clínica e social. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde do Centro de Acolhida e Cultura Casa 1 e da Clínica Social Casa 1

Pamela Michelena De Marchi Gherini – Advogada, formada em Direito pela USP, Sócia do Escritório Lang & Michelena Advogadas e Coordenadora do Grupo de Trabalho Jurídico da Casa 1.

Mariana Penteado é psicóloga formada pela USP. Atua nas áreas clínica e social. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Saúde do Centro de Acolhida e Cultura Casa 1

[Artigo] Retrospectiva: como anda a educação em direitos humanos no Brasil?

Por Talitha Paratela[1], mestre em Linguística Aplicada, com foco em Educação e Linguagem, pela Unicamp e bacharela em Letras pela USP. É voluntária da Casa 1.

Não é incomum ouvir uma parte da população dizer que os direitos humanos são “privilégios de bandidos”. O contexto da formação de direitos no Brasil, que aconteceu na redemocratização do país depois de mais de duas décadas de regime militar, influenciou a associação entre direitos humanos e cárcere no imaginário popular, especialmente em São Paulo, que teve altos índices de criminalidade entre 1983 e 1985 (CALDEIRA, 1991), mesmo período em que os movimentos sociais estiveram à frente da conquista de direitos básicos, muitos deles também direitos humanos, como acesso à educação, saúde e moradia. Para muitas pessoas, os direitos humanos se restringiam ao direito ao acesso à justiça. No entanto, visam a mais do que isso, sendo norteadores das relações humanas e da dignidade em sentidos amplos. A opinião pública distorce, então, qual é a importância dos direitos humanos e em quais áreas da vida social incidem, concentrando-se em poucos parágrafos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas (ONU).

No Brasil, a criação de leis e normas educacionais que abarcam os direitos humanos na educação começou há quase duas décadas e meia. Com isso, debates como o direito à livre expressão de gêneros, raças-etnias, orientações sexuais e religiões ganharam mais espaço nas salas de aula, o que gerou a resistência de grupos políticos conservadores. Um dos movimentos que se posicionam contra as teorias sobre as quais são construídas os atuais conteúdos curriculares é a Escola sem Partido. Suas ideias se tornaram um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados e ameaçam um ensino, de fato, voltado para os direitos humanos.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, é assinada por países do mundo inteiro – inclusive, o Brasil – e estabelece regras que privilegiam a dignidade em múltiplos aspectos da vida social, a igualdade de direitos, o progresso e as condições de vida adequadas. Seus parágrafos defendem o direito à igualdade, à liberdade (de raças, orientações sexuais, culturas, religiões, opiniões políticas etc.), à vida, à segurança pessoal, ao trabalho digno, ao fim das torturas, à livre circulação, à migração, à propriedade e à liberdade de pensamento, entre outros direitos. O respeito aos direitos humanos deve ser transmitido às diferentes gerações por meio da educação, conforme dispõe o preâmbulo.

O início da implementação dos direitos humanos na educação brasileira foi no fim dos anos 90, com os Parâmetros Nacionais Curriculares. No documento, que contém diretrizes educacionais instituídas pelo Ministério da Educação, em 1997, propõe-se o amplo entendimento dos direitos e deveres nas relações sociais por meio da inclusão dos temas transversais na grade curricular, cujo foco é a ética, a pluralidade cultural, o meio ambiente, a saúde e a sexualidade. Esses temas não devem ser abordados em disciplinas criadas especialmente para debatê-los, e sim ser integrados às disciplinas já oferecidas, como língua portuguesa, matemática e ciências biológicas e naturais. 

Os temas transversais se subdividem em eixos. O estudo da ética nas relações humanas abrange o respeito mútuo, a justiça, o diálogo e a solidariedade. A pluralidade cultural diz respeito à diferenciação dos grupos sociais, em especial, dos migrantes. O meio ambiente transforma o debate sobre a natureza em humano, tirando-o de suas dimensões física e biológica. A saúde prioriza o conhecimento sobre o corpo, o autocuidado, o cuidado com as pessoas que nos cercam e o cuidado como dever do Estado. A orientação sexual concerne à educação sexual e às relações de gênero. Cada um desses temas deve atender às urgências nacionais e locais, sendo competência, também, dos estados e municípios a determinação de medidas educativas que privilegiem as características e necessidades regionais.

Eles se ancoram na interdisciplinaridade, que permite o estabelecimento de relações entre os campos do saber, integrando-os, já que os mesmos objetos de estudo podem ser observados através de várias perspectivas. Além da interdisciplinaridade, baseiam-se na transversalidade, que proporciona uma estreita relação entre os saberes e a vida social e atribui aos sujeitos a produção do conhecimento. Com isso, amplia-se o debate sobre os valores e as normas, em consideração às diferenças e aos vários sistemas normativos. Esse tipo de ensino estimula a aprendizagem e o respeito aos direitos básicos, atendendo aos artigos 1º e 3º da Constituição de 1988 ao incluir seus princípios nos conteúdos ministrados nas escolas (MEC, 1997).

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; […]

V – o pluralismo político.

[…]

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II – garantir o desenvolvimento nacional;

III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988).

A transversalidade na educação surge sob a influência da consolidação de um Estado democrático de direito, cujo documento mais importante, o da Constituição Federal, busca proporcionar aos brasileiros e às brasileiras uma vida e um trabalho dignos, liberdade para se posicionar politicamente, justiça, solidariedade e o fim das desigualdades e discriminações, como pode ser observado nos excertos anteriores, extraídos dos artigos 1º e 3º. Embora a Constituição tenha tal finalidade, desde 1988, questões como essas, que são centrais na democracia, continuam a ser grandes desafios.

A falta de dignidade, a censura e retaliação política, as injustiças sociais, o preconceito e a apatia dos governos e das elites diante das mazelas da sociedade perpetuam depois de mais de cinco séculos de colonização e, mais recentemente, de uma ditadura militar. A opressão está nas raízes do Brasil. Em vista da história, os Parâmetros Curriculares Nacionais propõem uma educação baseada na Constituição de 1988, que ser deve orientada à dignidade, ao reconhecimento da diversidade, à igualdade de direitos, à participação popular e à corresponsabilidade da população e do Estado de manter os princípios da democracia como elementos basilares da vida social (MEC, 1997).

A educação em direitos humanos começou a ser delineada através do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, cuja versão final é de 2006. Esse documento tem abrangência em diferentes níveis de ensino: educação básica, educação superior, educação não formal, educação de juristas e profissionais de segurança pública, e educação e mídias. Entre os seus objetivos, estão o fortalecimento do Estado democrático de direito, a constituição de uma sociedade ancorada na justiça, igualdade e democracia, o cumprimento dos compromissos firmados pelo Brasil com outros países, a transversalidade da educação em direitos humanos nas políticas públicas e a implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos, mais conhecido pela sigla PNDH, iniciado em 1996 (BRASIL, 2006, pp. 26-27).

O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos norteia as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, de 2012, que surgem para incorporar à educação uma das garantias constitucionais do artigo 4º, a prevalência das regras e dos princípios estabelecidos internacionalmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. As diretrizes asseguram que, desde o ensino básico, os assuntos relativos aos direitos humanos sejam discutidos nas salas de aula, proporcionando a discussão sobre direitos humanos nas instituições educacionais e implicando a responsabilidade dos sujeitos com os outros. A dignidade humana, a igualdade de direitos, o reconhecimento da diversidade, o Estado laico, a sustentabilidade socioambiental e a defesa da democracia também são centrais no documento de 2012.

Tais leis educacionais de direitos humanos são amparadas e estimuladas pela ONU e por seus tratados internacionais, conforme estipula a própria declaração e a Convenção de Paris de 1960. Na educação brasileira, sua implementação traz uma série de mudanças, como a inclusão das noções dos direitos humanos em projetos políticos-pedagógicos, regimentos escolares, planos institucionais de desenvolvimento, grades letivas das instituições de ensino superior, materiais didáticos e paradidáticos, modelos de ensino e pesquisa, gestão escolar e processos de avaliação (BRASIL, 2012). 

As políticas públicas educacionais de direitos humanos em vigência no país são minadas por projetos populares como a Escola sem Partido, que se inspira em uma organização dos Estados Unidos denominada No Indoctrination. Conservadores, esses movimentos têm ganhado força nos últimos anos, propagando a ideia de que existe uma “doutrinação” (ESCOLA SEM PARTIDO, s/d) nas escolas. Eles transformam o discurso sobre liberdade e multiplicidade de perspectivas no ensino em um manifesto em favor do fim das discussões promovidas pelos programas de educação em direitos humanos.

Numa sociedade livre, as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade (ESCOLA SEM PARTIDO, s/d).

Nessa visão, embora as escolas devam se abrir a múltiplas visões, elas precisam propor uma reflexão neutra e equilibrada. Porém, a realidade não pode ser refletida, já que, nós somos sujeitos – singulares, cada qual com a sua trajetória de vida e seu próprio modo de interpretar o mundo –, e não um espelho. Sendo assim, um discurso que se diz neutro nunca é um discurso, de fato, neutro. Não existem discursos neutros, pois todos são produzidos por sujeitos. Ao incentivar a censura a educadores e gestores escolares e a repressão a grupos políticos estudantis, a Escola sem Partido é contrária a diversas liberdades garantidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, confrontando-a e, assim, posicionando-se contra as igualdades de direitos e a dignidade humana. 

O movimento põe na conta de grupos políticos que qualifica como hegemônicos uma suposta falta de diversidade de ideias nas salas de aula, já que haveria uma imposição de certas “correntes políticas e ideológicas” (ESCOLA SEM PARTIDO, s/d), apesar de os programas de educação em direitos humanos terem sido elaborados em governos de partidos diferentes, considerados como oposição um do outro. Os temas transversais e as primeiras modificações das normas de educação brasileiras em prol da diversidade e dignidade humana foram feitos no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), nos anos 1990, e a continuidade dessas políticas de educação ocorreu em governos posteriores, no de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), nos anos 2000, e no de Dilma Rousseff (PT), nos anos 2010. 

As pautas defendidas pela Escola sem Partido se tornaram o projeto de lei nº 246/2019, que tramita no Congresso Nacional, sendo de autoria de deputados do PSL, Novo, DEM e Pode. Entre os principais artigos, está a proposta de acabar com a obrigatoriedade de ensinar religião e princípios morais nas escolas e transferir a responsabilidade e autonomia de ensino para tutores e responsáveis por crianças e adolescentes. Ou seja, defende-se uma troca de instituições em pontos basilares da educação em direitos humanos, que passa da esfera da escola para a família, o que causa o enfraquecimento das políticas de educação, que, atualmente, incorporam os direitos humanos em diretrizes, planos pedagógicos e produções didáticas e paradidáticas – sem contar o fato de que os direitos humanos são fundamentados por estudiosos de diversos campos do saber, como as ciências sociais, o direito e as relações internacionais, e não são especialidade das famílias.

Outro destaque é o artigo 2º do projeto de lei, em que se afirma que “o Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero” (BRASIL, 2019). Se o Estado, por meio de suas instituições, como a escola, não intervir na educação sexual de jovens, quem o fará? A família? Essa é uma proposta problemática porque mais de 70% dos casos de abuso sexual acontece na casa da própria vítima, sendo que 40% deles são cometidos pelo pai ou padrasto, segundo um balanço de 2020 da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

É dever do Estado brasileiro, que assinou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e precisa ratificá-los por meio da criação de leis – como o fez na educação –, inibir o abuso sexual por meio de uma educação sexual efetiva nas escolas. Também não se sabe o que os autores do projeto de lei entendem como uma abordagem dogmática ou proselitista de gênero. A desigualdade de direitos entre os gêneros não é (nem deveria ser) uma questão de um só partido ou uma só vertente política, e sim de todas as pessoas do poder público que nos representam politicamente. Não somente o gênero como também todos os direitos universais devem ser de interesse dos governos, prezando efetivamente pelos princípios da declaração.

O artigo 7º do projeto de lei da Escola sem Partido assegura aos alunos e às alunas o direito de gravar seus professores e professoras, a fim de proporcionar a seus responsáveis terem “ciência do processo pedagógico e avaliar a qualidade dos serviços prestados pela escola” (BRASIL, 2019). Com isso, a perda de autonomia profissional e a vigilância dos profissionais de educação seria liberada por lei, ferindo a Constituição de 1988, que garante, pelos incisos II e III do artigo 206, a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (BRASIL, 1988) e o “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino” (BRASIL, 1988).

A Escola sem Partido, além de defender uma falsa neutralidade do ensino, mascara-se como um projeto que defende o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (BRASIL, 2019) e a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” (BRASIL, 2019) – como se estivesse em consonância com a Constituição Federal –, mas promove uma guerra ideológica contra esse pluralismo e essa liberdade que fingem defender ao polarizar docentes e estudantes, eximir as escolas da educação moral, religiosa e sexual, coibir o debate de ideias, estimular o envolvimento da família em temas que deveriam ser de caráter escolar, proibir a manifestação política de estudantes e adotar uma política de vigilância, submetendo a educação a uma patrulha ideológica.

A aprovação da Escola sem Partido seria um retrocesso sem tamanho para o Brasil. As políticas educacionais de direitos humanos levaram muitos anos para serem estabelecidas nas instituições de ensino, considerando que ainda há melhorias a fazer. A aprovação desse projeto de lei seria um obstáculo à continuidade da educação para a diversidade, minando discussões nas quais a ordem e o status quo são questionados, e à própria democracia, violando pontos da Constituição e confrontando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, embora se afirme o contrário. Além disso, comprometeria a transmissão dos princípios da dignidade humana através das gerações. O discurso falsamente neutro do movimento Escola sem Partido é, então, um discurso conservador contra o pensamento crítico.

A ideia de um ensino livre de “doutrinação” é de interesse do atual governo, cujo representante máximo, o presidente da República, Jair Bolsonaro, elegeu-se por sua campanha favorável ao preconceito contra o público LGBT[2] e ao autoritarismo da ditadura militar[3], sendo contrária à expressão de gêneros, orientações sexuais, raças-etnias e religiões que desviem do padrão cisgênero, heterossexual, branco e cristão – e se enquadrem na chamada “ideologia de gênero”. A “ideologia de gênero” é parte da agenda de partidos e movimentos políticos, como a Escola sem Partido.

Os pesquisadores Miskolci e Campana (2017) atribuem uma das origens da expressão “ideologia de gênero” à igreja católica. Segundo eles, as reações dos líderes católicos às políticas reprodutivas e sexuais e sua adesão ao argumento biológico[4] sobre os sexos foram centrais no papado de Bento XVI, quando a “ideologia de gênero” foi mencionada no Documento de Aparecida, de 2007. Na seção no 40, define-se “ideologia de gênero” como um conjunto de comportamentos que ferem os dogmas religiosos, relacionados, principalmente, às questões de sexualidade e gênero.

Com o tempo, a noção de “ideologia de gênero” deixou de se restringir à igreja católica e foi adotada por outras vertentes religiosas – como a evangélica –, pelo poder público e pela sociedade civil organizada. Graças a ela, busca-se espalhar um pânico social por meio de ações políticas, jurídicas e midiáticas que pressionam pelo veto às leis e medidas reprodutivas e sexuais (MISKOLCI; CAMPANA, 2017). Nessa onda, surfa a Escola sem Partido, que se posiciona de modo conservador contra os direitos humanos no campo educacional, apesar de se considerar neutra – o que não é, pois, como vimos, os discursos sobre “ideologia de gênero” não surgem do nada: formam-se em vários campos do saber, entre eles, a religião.

O que se espera, então, é tirar a educação em direitos humanos de cena e implementar um novo tipo de educação – retomada das épocas de autoritarismo da ditadura –, que sofrerá com a censura de temas sociais e políticos na grade curricular, nos planos pedagógicos e nos materiais didáticos e paradidáticos. Para os grupos conservadores, a educação em direitos humanos é de interesse de uma corrente política ameaçadora que supostamente tomou conta do Brasil. Os discursos desses grupos são contraditórios por defenderem leis, técnicas e procedimentos retrógrados para a educação, mas, ao mesmo tempo, o pluralismo de pensamentos e o embasamento científico.

O verniz do livre pensamento de projetos como a Escola sem Partido visa esconder as desigualdades, a discriminação e o preconceito e é um perigo para a democracia de um país, que, depois de mais de três décadas, continua à prova. Por isso, é imprescindível que os direitos humanos sejam, de fato, conhecidos e entendidos como princípios em prol da dignidade humana, os quais abrangem inúmeros aspectos da vida (social, econômico, ambiental etc.) e valorizam todos os seres. Eles se ancoram nos valores democráticos e são a base do combate ao autoritarismo que ronda de tempos em tempos.

Notas

[1] Gostaria de agradecer à Roberta Cerqueira Borges pela revisão e pelas inúmeras contribuições a este texto.

[2] Esta reportagem da Agência Pública mostra como as eleições presidenciais de 2018 foram influenciadas por disparos massivos de mensagens em redes sociais, como o WhatsApp. Merecem destaque o boato sobre o “kit gay” e a onda de preconceitos contra o público LGBT que gerou na internet.

[3] De acordo com a Agência Lupa, em 1999, Bolsonaro deu uma entrevista à TV Bandeirantes, na qual afirmava ser a favor da tortura e do fechamento do Congresso Nacional, heranças da ditadura. Já eleito presidente, em 2019, declarou que o coronel Brilhante Ustra, condenado por ter cometido crimes de tortura e ocultação de cadáveres no regime militar, é um “herói nacional”.

[4] Esse argumento sobre os sexos, vistos de forma binária (homem-mulher), volta-se para o determinismo biológico, em que as atribuições sociais dos homens e das mulheres dependem exclusivamente das características de seu corpo. Sendo assim, opõe-se a várias teorias de gênero, nas quais os gêneros são construções sociais mutáveis e seus significados dependem do contexto sócio-histórico em que inserem.

Referências bibliográficas

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BRASIL. Projeto de Lei nº 246/2019. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190752. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

CALDEIRA, Teresa. Direitos humanos ou privilégios de bandidos? Desventuras da democratização brasileira. Novos Estudos, São Paulo, n. 30, jul/1991.

ESCOLA SEM PARTIDO. Apresentação. Disponível em: http://www.escolasempartido.org/quem-somos/. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

MEC. Parâmetros Nacionais Curriculares (1997). Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/introducao.pdf. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

MISKOLCI, Richard; CAMPANA, Maximiliano. Ideologia de gênero: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo (2017). Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922017000300725&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por. Acesso em: 15 de outubro de 2020.

[Artigo] Como projetar uma casa de acolhida LGBT?

Por Artur de Souza Duarte, arquiteto e urbanista formado pelo Instituto Federal Fluminense e mestrando pela FAU-USP. É voluntário na Sala de Atendimento Paliativo Cláudia Wonder e presta consultoria nas demandas de arquitetura da Casa 1.

“Um ambiente de arquitetura aberta, o chamado open space, em que se valoriza a coletividade e o formação de comunidade em um sobrado histórico do bairro da Bela Vista que passou por um retrofit para receber jovens LGBT+ muito calmos, maduros e com alto senso de responsabilidade”. Isso é o que a gestão da Casa 1 gostaria de dizer sobre o projeto arquitetônico da acolhida.

Desde a inauguração da Casa 1, muitos gestores públicos, arquitetos e sobretudo estudantes de arquitetura entram em contato interessados no programa e na estrutura física da ONG. Em geral, os estudantes querem projetar uma casa de acolhida em seu trabalho final de graduação. Perguntas como “Quem fez o projeto?” e “Como é a planta baixa?” às vezes aparecem nos “guichês” (as lives que a Casa 1 faz diariamente no Instagram), nos e-mails ou no curso de formação de voluntários. A primeira coisa que podemos dizer é que a Casa 1 não é a descrição feita no início deste texto.

Também devemos informar que essas perguntas pouco ajudarão a entender o programa de necessidades de um projeto como a Casa 1. Isso porque, como muitas estruturas mantidas pela sociedade civil, a Casa funciona em um local que não foi construído para esse fim. Tampouco a estrutura física de moradia foi planejada para ser considerada um exemplo.

O sobrado na esquina das ruas Condessa de São Joaquim e Bororós é de fato uma construção interessante e muito bem aproveitada pela ONG: no pavimento superior fica o núcleo de moradia com dez camas beliches, armários, lockers, sapateiras e muitos pertences dos moradores. No térreo, há três espaços comerciais transformados em uma estrutura cultural e assistencial que já sediou o Centro Cultural Casa 1, um espaço de convivência e um coletivo de costura. Atualmente acomoda a Sala de Atendimento Paliativo Claudia Wonder, a Sala Vitor Angelo/ Agência Casa 1 e a Biblioteca Comunitária Caio Fernando Abreu. Os layouts e mobiliário foram alterados de acordo com a demanda, a necessidade e doações recebidas.

Fig. 1 – Como é o espaço da Casa 1? Os croquis acima mostram o sobrado onde funciona o núcleo de moradia: um quarto único onde optou-se como layout dispor de todas as camas sem divisões para que todos possam se ver e conviver. (Fonte: Artur S. Duarte, 2020).

O projeto da Casa 1 é essencialmente uma “infraestrutura de cuidado”, cuja função central é oferecer condições para que pessoas LGBT+ alcancem autonomia financeira. Esse termo recente nos estudos urbanos inicialmente fazia referência a equipamentos e espaços próprios para a atividade de cuidado mais “clássica”, como postos de saúde, creches, asilos. Com o tempo, foi se espalhando de forma a englobar novas estruturas necessárias para o cuidado de pessoas no cotidiano das cidades: uma horta comunitária pode ser uma infraestrutura de cuidado, assim como um abrigo para refugiadas, um Centro de Referência da Diversidade, uma biblioteca comunitária1.

Por ser uma estrutura adaptada e um pouco antiga, desde o final de 2019, os espaços da Casa 1 estão em reformas visando melhoria da segurança e obtenção de alvarás pela Vigilância Sanitária e pelo Corpo de Bombeiros. Um gasto grande, mas que precisa ser feito para proporcionar as condições necessárias aos moradores e frequentadores.

Ampliou-se também a estrutura física da ONG em função da identificação de demandas importantes. Em 2018 escrevi um artigo2 sobre a Casa 1 em que chamava atenção para a dificuldade de a ONG sobreviver a longo prazo sem aportes financeiros mais constantes ou sem adentrar em editais públicos. E quase acertei: em março de 2019 a Casa anunciou que fecharia no final do ano. A comoção e engajamento do público pra impedir que o projeto fechasse as portas gerou a maior reviravolta que a Casa já havia passado: felizmente, minha previsão estava errada. A mobilização gerada aumentou a arrecadação fixa pelo financiamento coletivo e mostrou que a sociedade considera a atuação da Casa 1 relevante. O engajamento permitiu não só a continuidade do projeto como sua expansão – foi inaugurada sua terceira estrutura, a Clínica Social.

O apoio do público é um atestado da relevância da ONG. O sobrado Casa 1, o Galpão e a Clínica Social funcionam como uma estrutura que atua em conjunto para atender às necessidades de moradores e ex-moradores, enquanto dialoga com demandas da vizinhança, de movimentos sociais e de população em vulnerabilidade. Pensar em um projeto parecido é pensar também o tipo de público atendido e em como realizar os serviços necessários ou, ao menos, compor uma articulação em rede com outros equipamentos capazes de oferecer os serviços não supridos pelo projeto de acolhida.

Voltando à nossa questão inicial: o que é importante se considerar em um projeto como a Casa 1?

Em primeiro lugar, é preciso entender a especificidade do público LGBT+ que se atenderá. A Casa 1 é apenas uma das formas possíveis de se prover moradia. Seu público na acolhida também é específico: jovens LGBT+ de 18 a 25 anos que foram expulsos de casa ou precisaram sair por conflitos familiares, violência psicológica e/ou física. Esse recorte é justificado por estudos que apontam que a falta de apoio durante o processo de “homofobia familiar” e saída do domicílio parental pode aprofundar as vulnerabilidades e levar o jovem a uma situação de rua crônica na vida adulta3. Nesse momento de rompimento de vínculos, uma infraestrutura de apoio como a Casa 1 pode ser decisiva.

Se os jovens têm características específicas, pessoas LGBT+ de outras faixas etárias terão outras necessidades. Em 2017, o jornalista Neto Lucon entrou em contato com diversos asilos e

albergues em São Paulo e recebeu respostas como: “no asilo não tem nenhum gay querido, é só velho mesmo” e “se tem algum gay aqui, ninguém nunca falou nada”. A invisibilidade do LGBT+ na terceira idade e a “volta para o armário” já tem sido exposta por alguns estudos e projetos5 . Asilos específicos pra LGBT+ já representam um mercado importante em locais como Espanha e Suécia. Nos Estados Unidos, o Los Angeles LGBT Center (2019) possui até um complexo de Habitação de Interesse Social para idosos LGBTQ de baixa renda que conta com 104 unidades.

A vida tampouco é fácil entre a juventude e a terceira idade. Sem políticas de habitação que observem as especificidades e a constituição familiar de LGBT+, muitos acabam vivendo em moradias insalubres, em albergues ou nas ruas. Um projeto de moradia para LGBT+ adultos prevê também formas de engajamento desse público para atendimento continuado, melhora da autoestima e atenção ao processo de perda de seus vínculos durante a vida adulta. Mesmo não atendendo a esse público no setor de acolhida, a Casa 1 se tornou uma referência de atendimento e é procurada por adultos LGBT+ que não são elegíveis para moradia e estruturou um serviço de atendimento paliativo para encaminhar ou apoiar demandas como vestimenta, itens de higiene pessoal e alimentos. O serviço está sediado na Sala Cláudia Wonder e atende a um público diverso – LGBT+ ou não.

Independente do público, deve se levar em conta que uma infraestrutura de cuidado não é apenas um local para dormir. Estudos que analisam projetos de acolhida pra jovens LGBT+ pelo mundo também apontam que, para suprir as vulnerabilidades desse público, é necessário atuar também em autonomia (e consequentemente em reingresso escolar e capacitação, visto o contexto de evasão escolar de muitos jovens LGBT+), em saúde e saúde mental, e em disseminação de cultura. Esse enfoque garante que a atuação se expanda para além dos muros da acolhida.

Em segundo lugar, é preciso estruturar o projeto de forma multidisciplinar e interseccional6, com atenção especial à implantação. O público alvo, dependendo de suas características, pode ser melhor instalado em certos bairros com maior oferta de trabalho e infraestrutura urbana, ou então em bairros com maior oferta de lazer, escolas e equipamentos de saúde.

Por fim, é essencial um espaço que considere o contexto da vizinhança e que esteja aberto ao público em geral. Muitos equipamentos que lidam com população vulnerável como centros de acolhida e ocupações sofrem com a desconfiança e a hostilidade da vizinhança onde são implantados. Não adianta fazer um belo projeto de inserção de um equipamento em um bairro sem considerar sua relação com o entorno e a possibilidade de o projeto se voltar também para a vizinhança. A experiência da Casa 1 demonstra um reconhecimento do valor do projeto pelos vizinhos, que acabam fazendo doações, frequentando o espaço, utilizando os serviços, e consequentemente entrando em contato com as pautas LGBT+ inerentes ao local.

Ok, temos que considerar o contexto e o público, mas e o espaço?

O básico de qualquer espaço que recebe público também se deve considerar: ergonomia, rotas de fuga e sistemas de proteção contra incêndio e pânico. Lembrar que pessoas com diferentes vivências habitarão aquele espaço, e que elas terão maior e menor grau de cuidado com ele.

A alta rotatividade deve fomentar projetos capazes de facilitar as condições de organização e higienização. Caso tenha mais de um andar, as janelas e vãos devem ter grades, portanto é bom pensar em uma solução estética que não descaracterize a humanização que os espaços precisam.

Também se deve pensar no fluxo e controle de acesso de moradores, voluntários e funcionários. Na Casa 1, que funciona como uma república, os moradores são responsáveis pelo espaço, não há funcionários de zeladoria. O acesso ao núcleo de moradia é restrito a acolhidos, funcionários de gestão e eventuais prestadores de serviço, proporcionando maior privacidade e autonomia para quem vive lá.

O controle de acesso também facilita a segurança, portanto os fluxos devem ser bem estruturados. São necessários pequenos armários individuais com chaves ou cadeados (lockers) para que moradores guardem documentos e outros bens pessoais. Esses lockers devem estar em locais de boa visibilidade para todos. Mesmo que o projeto tenha mais de um quarto coletivo, é bom que se pense bem a localização apropriada. Se com nossa própria família temos problemas com o irmão pegando nossas coisas, imagina com outras pessoas?

Outro ponto a se destacar é uma boa área de armazenagem. Ao menos duas despensas – uma para o cotidiano dos moradores e uma despensa administrativa controlada – Além da armazenagem separada de produtos de limpeza e inflamáveis.

Para os moradores, deve-se prover armários individuais. Geralmente eles chegam com poucas coisas, mas vão conquistando pertences preciosos ao longo de sua estadia (e acumulando também, quem nunca?). Uma área específica e com boa ventilação para colocar sapatos, um item muito estimado para muitos LGBT+, além de um maleiro. O cuidado com os pertences dos moradores deve ser acompanhado por boa ventilação e praticidade na limpeza, para evitar pragas como mosquitos, percevejos e ácaros.

Ademais, há que se pensar em espaços administrativos e de atendimento individual que abriguem atendimentos psicossociais, conversas e acompanhamento, assim como espaços coletivos de convívio e de reunião para rodas de conversas, cursos de formação, e até as chamadas “lavagens de roupa suja”. Não se deve esquecer também que são jovens e precisam estudar, se entreter, bater papo, mas que devem ser estimulados pela gestão e pelo espaço a se atentar para a sociabilidade e relações sociais.

Muito do que estou falando aqui é o básico de qualquer projeto arquitetônico. Mas é isso mesmo. Não é preciso inventar muito, nem pintar toda a fachada com a bandeira do arco-íris (ok, talvez uma imagem da Pabllo Vittar na calçada seja bem vinda). Aliás, se você observar a ocupação da Casa 1 vai perceber que os próprios moradores fazem muito bem esse trabalho de se apropriar do território e demarcá-lo pelos seus próprios corpos como LGBT+. A fachada pode receber outras estratégias para se destacar do entorno. Mais importante é pensar na implantação de uma forma em que a segurança proporcionada pelo espaço de acolhida possa se estender à rua, aos vizinhos, ao comércio local, ao bairro, à cidade, funcionando como uma verdadeira ferramenta de educação e sensibilização quanto à LGBTfobia.

Projetar uma casa de acolhida LGBT+ não é apenas projetar um abrigo, mas uma “infraestrutura de cuidado” em um sentido mais amplo. É considerar o valor social que se pode atingir não apenas para o público alvo e para o movimento LGBT+, mas para outros movimentos sociais, para a vizinhança, para a sociedade. A Casa 1, mesmo em espaços alugados e adaptados, sem um retrofit com arquitetos e grandes projetos, é certamente uma infraestrutura de cuidado de sucesso.

Referências

ALAM, Ashraful; HOUSTON, Donna. Rethinking care as alternate infrastructure. Cities, v. 100, p. 102662, maio 2020. Disponível em: <https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0264275119313484>. Acesso em: 19 maio. 2020.

BAAMS, Laura; WILSON, Bianca D. M.; RUSSELL, Stephen T. LGBTQ youth in unstable housing and foster care. Pediatrics, v. 143, n. 3, 2019.

DUARTE, Artur de Souza; CYMBALISTA, Renato. A CASA 1: habitação e Diálogo entre público e privado na acolhida de jovens LGBT. In: V ENANPARQ – Arquitetura e Urbanismo no Brasil atual: crises, impasses e desafios, Salvador. Anais… Salvador: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, 2018.

GILROY, Rose; BOOTH, Chris. Building an infrastructure for everyday lives. European Planning Studies, v. 7, n. 3, p. 307–324, jun. 1999. Disponível em: <http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09654319908720520>

KING, Andrew; STONEMAN, Paul. Understanding SAFE Housing – putting older LGBT* people’s concerns, preferences and experiences of housing in England in a sociological context. Housing, Care and Support, v. 20, n. 3, p. 89–99, 18 set. 2017. Disponível em: <https://www.emerald.com/insight/content/doi/10.1108/HCS-04-2017-0010/full/html>

LOS ANGELES LGBT CENTER. Social Services and Housing. 2019. Disponível em: <https://lalgbtcenter.org/social-service-and-housing>. Acesso em: 2 dez. 2019.

SCHULMAN, Sarah. Homofobia familiar: uma experiência em busca de reconhecimento. Bagoas – Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 4, n. 05, p. 67–78, 2010. Disponível em: <https://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v04n05art04_schulman.pdf>. Acesso em: 12 jun. 2018.

Notas

Rose Gilroy e Chris Booth (1999), Ashraful Alam e Donna Houston (2020).

Artur Duarte e Renato Cymbalista (2018).

Estudos como os de Sara Schulman (2010) e de Laura Baams, Bianca Wilson e Stephen Russell (2019).

Reportagem disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2017/01/sofrimento-idosos- gays-asilos-abandono-preconceito.html .Acesso em: 22 jul. 2020.

Como o estudo de Andrew King e Paul Stoneman (2017).

Interseccionalidade é um termo usado para destacar a importância de se considerar marcadores sociais como classe, gênero, identidade de gênero, raça e idade nas diferentes vivências e vulnerabilidades sociais.

Agradeço a Vanessa Correa pelo olhar crítico e pelas dicas valiosas.

[Artigo] Como você se vê?

Por Alisson Diego Machado, nutricionista e voluntário da Clínica Social Casa 1

Carolina está desconfortável com seu corpo e isso tem afetado a relação com sua namorada. Érika decidiu colocar próteses de silicone para ter um corpo tido como feminino. Paulo começou a fazer musculação recentemente, pois se sente muito magro. Jean, por outro lado, sente que tem dificuldade de se relacionar por estar acima do peso. Além de serem pessoas LGBTQI+, todos eles possuem algo em comum: problemas de imagem corporal.

Mas afinal, o que é isso?

Podemos definir a imagem corporal como a percepção que a pessoa tem de seu próprio corpo, independentemente de como esse corpo seja. É importante dizer que a imagem corporal, apesar de individual, é algo socialmente construído. Assim, pessoas obesas que façam parte de um círculo social em que há pessoas gordofóbicas tendem a ter uma maior insatisfação corporal do que uma pessoa que não é obesa, por exemplo.

Todas as pessoas podem ter problemas de imagem corporal, sendo o principal tipo a insatisfação com o próprio corpo, que é o que Carolina, Érika, Paulo e Jean apresentam. O fato deles serem pessoas LGBTQI+ também é algo relevante, já que alguns estudos mostram que a prevalência de pessoas com insatisfação corporal e transtornos alimentares é maior na comunidade do que em pessoas heterossexuais.

Todas as siglas têm problemas de imagem corporal?

Como dito anteriormente, todas as pessoas podem ter algum grau de insatisfação corporal. Contudo, a experiência parece ser diferente entre pessoas LGBTQI+. Se tomarmos as mulheres cis lésbicas como exemplo, podemos ver que, apesar de elas apresentarem uma prevalência de insatisfação corporal semelhante às de mulheres cis heterossexuais, a imagem tida como ideal por elas é diferente de mulheres hétero. As mulheres lésbicas e bissexuais, em geral, não se importam tanto em serem tão magras, por exemplo. E isso parece ter a ver com o fato da comunidade lésbica não se importar em ter um corpo maior ou, em outras palavras, se importar menos com o padrão de magreza imposto às mulheres, demonstrando que o grupo social com que você se relaciona influencia a forma com que você se enxerga.

Contudo, em mulheres transsexuais e travestis a situação é diferente, já que muitas podem sofrer de disforia corporal. A disforia é a discordância entre o sexo atribuído ao nascer e o gênero com que a pessoa se identifica e, igualmente importante, também diz respeito ao sofrimento e ansiedade que isso pode causar. Assim, não é difícil imaginar que problemas com a imagem corporal sejam frequentes em mulheres trans e travestis. Uma das principais consequências da insatisfação corporal pode ser o desenvolvimento de transtornos alimentares, que possui uma prevalência igualmente alta em pessoas trans, além de problemas de ansiedade, depressão e autoestima.

Aqui é importante abrirmos um parêntese e dizer que há um movimento entre mulheres trans e travestis de que a feminilização não é algo que precise ser almejado, já que obviamente ser mulher vai muito além de um corpo tido como feminino. Atualmente o número de mulheres trans e travestis que decidem não realizar a terapia hormonal ou qualquer procedimento estético está crescendo. Ainda não sabemos o impacto que esse movimento pode causar na saúde mental, mas é possível dizer que será benéfico, já que a insatisfação corporal é um fator que causa sofrimento.

Por outro lado, em homens trans a passabilidade (capacidade de ser considerado um homem cisgênero por outras pessoas) parece ser algo almejado. Não é difícil imaginar o motivo, uma vez que nossa sociedade valoriza o homem másculo e viril e, ao se adequarem a esse molde, problemas comuns a pessoas trans, como discriminação e assédio, tendem a ser menos frequentes. Contudo, dados sobre imagem corporal em homens trans ainda são escassos.

Já a imagem corporal de homens gays é algo mais conhecido. Afinal, quem não conhece o estereótipo do gay bonito, malhado e, preferencialmente, branco? E quem também não conhece como os demais corpos são excluídos sistematicamente da comunidade? Não à toa os homens gays são os que mais formam tribos, como os sarados, ursos, discretos e afeminados, por exemplo. Boa parte dessas tribos está relacionada à aparência ou a um comportamento que muitas vezes é refletido na imagem. Fato é que isso contribui para a divisão da comunidade e com a precarização da sua saúde mental, contribuindo com quadros de depressão, ansiedade e dificuldade de relacionamento.

Assim, podemos observar que apesar de suas particularidades, a insatisfação corporal é algo relevante em pessoas LGBTQI+ e que contribui para o aumento do sofrimento. Produto de uma sociedade que valoriza o padrão estético, devemos nos perguntar a que custo isso a imagem é importante e, mais que isso, reconhecer que estamos excluindo sistematicamente corpos que deveriam estar andando ao nosso lado.

Bibliografia

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Henn AT, Taube CO, Vocks S, Hartmann AS. Body image as well as eating disorder and body dysmorphic disorder symptoms in heterosexual, homosexual, and bisexual women. Front Psychiatry. 2019;10:531.

Chão

Por Bruno Oliveira, coordenador de programação da Casa 1. 

Sexta-feira, 17 de julho de 2020. Começar este texto foi um exercício de concentração: debaixo das máscaras, trabalhadoras e trabalhadores da Casa 1 se dividem entrem tarefas variadas: uma live no Instagram, reunião no Zoom, distribuição de cestas básicas, instalação de fios, organização de doação de roupas, atendimentos a moradores, testes de pães no forno novo do ateliê.

Me distancio lentamente e observo o chão de lajotas 20×20, com inúmeras camadas de tinta preta, acidentes e remendos, coberto de sacolas de cestas básicas e mesões do Salão Leci Brandão do Galpão da Casa 1.

Me acostumei a falar sobre a experiência deste chão nas formações de voluntariado que fizemos ao longo destes anos. A formação, que está temporariamente suspensa durante a pandemia assim como o restante da programação da Casa 1, tem como objetivo apresentar o projeto, as políticas de atuação e os grupos de trabalho para potenciais voluntárias e voluntários, além de contextualizar as e os estudantes interessados em fazer trabalhos sobre a Casa.

República de acolhida (às vezes casa, às vezes centro, com frequência acolhimento), centro cultural (muitas vezes espaço, não raro de cultura) e clínica social (poucas são as variações aqui): dessa diversidade incorre um conjunto de interpretações possíveis sobre o estuprojeto que não se aproximam das muitas experiências que o exercício do chão propicia.

Como responsável por uma parte das formações de voluntariado dos últimos meses, arrisco-me a dizer que em cada um dos domingos falei sobre um projeto diferente: qualquer narrativa que se proponha a ser homogênea sobre este trabalho é uma ilusão. Basta conferir os Guichês (programação diária temporária no Instagram que reproduz a prática presencial de conversas e atendimentos da Casa 1) para reconhecer as perspectivas completamente distintas de voluntárias e voluntários, trabalhadoras e trabalhadores, parceiras e parceiros. Ainda que a Casa 1 seja um e muitos projetos simultaneamente, há uma performance de estrutura que é comum e partilhada. Penso nela.

Mudo a aba do navegador e abro a página da Casa 1 no Instagram. Olho as últimas imagens e procuro reconhecer o chão onde piso enquanto escrevo. Notícias, dicas de sites, lives, listas de conteúdo virtual, playlists, convites para atividades on-line. Após deslizar a barra de navegação para baixo algumas vezes, reencontro o chão do Ateliê Renata Carvalho e do Salão Leci Brandão em algumas fotos. Aula aberta sobre saúde de pessoas com vagina, aula de teatro, dragbingo e aula de canto.

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A Rua Condessa de São Joaquim que conheci em 2017 já era outra quando visitei o projeto recém-inaugurado. As largas calçadas da esquina situada entre os bairros da Liberdade e da Bela Vista contavam com uma grande pintura do artista Luan Zumbi, um monte de caixas de doações, um carrinho de carga que ficava indo e vindo, além de cavaletes para mesas improvisadas com portas.

Logo de cara conheci a sala onde, posteriormente, seria instalada a Biblioteca Caio F. Abreu. A sala, com ar de recém-reformada, piso e paredes bem brancas, tinha pilhas e pilhas de livros pelos cantos, resultantes de uma ação na festa de abertura realizada no dia 25 de janeiro de 2017. A ideia do projeto me foi apresentada pelo Iran Giusti (que eu havia conhecido em alguma das reuniões do #VoteLGBT do ano anterior), que, depois de alguma conversa afobada entre uma entrevista e outra, me sugeriu começar ajudando a organizar os livros.

Desde aquele dia já se foram mais de três anos e um sem fim de experiências (e imagens) do chão. Este texto apresenta, na forma de um fluxo de consciência e uma deriva por imagens, alguns fundamentos possíveis de uma pedagogia deste chão.

Esses dispositivos pedagógicos instaurados pela partilha de um mesmo chão por corpos e subjetividades tão diversos atravessam o projeto da Casa 1 como um todo: a república de acolhida, o centro cultural, a clínica social. São processos que podem ser entendidos ainda como um conjunto de práticas de presença em educação, de desejo de vida e de construção continuada, performativa e dialógica. Rastrear as imagens deste fundamento plural e comunitário, no contexto de distanciamento social da pandemia do coronavírus, é, para além de uma nostalgia da presença, uma reflexão sobre as reverberações estruturantes desta partilha do chão.

Aqui, uma breve digressão sobre o começo do projeto é necessária para contextualizar um pouco as imagens que seguem. De janeiro a agosto de 2017 (quando o galpão do centro cultural foi alugado), as atividades da Casa 1 se concentraram na esquina das Ruas Condessa de São Joaquim e Bororós. Esse conjunto de imagens é especificamente daquele momento.  É inequívoco que o projeto segue criando outras bases, políticas e performances ao longo dos anos, mas neste momento inaugural do trabalho é possível reconhecer uma gramática a partir da qual a organização se deu.

A política de portas abertas já era uma operação desde o início. De acordo com Iran Giusti, a ideia surgiu durante a pintura das calçadas e escrita dos nomes de apoiadoras e apoiadores na parede externa do sobrado, com a curiosidade atiçada da vizinhança. Passamos a reconhecer que manter as portas abertas e o trabalho visível seria uma estratégia de segurança para o projeto, como também um trabalho de diálogo (e base) no território.

As portas de metal abertas para a calçada das três salas do centro cultural (naquele momento paliativo, sala de exposições/multiuso e biblioteca) eram um convite para passantes perguntarem o que era aquilo. Conforme os espaços foram sendo organizados e nossas práticas cotidianas reconhecidas, fizemos placas indicativas de cada sala, e a calçada se constituiu como parte estruturante do espaço.

Todos os dias o protocolo de abertura envolvia abrir as portas de metal, organizar o espaço e colocar placas e cadeiras de praia para fora. As cadeiras eram usadas por moradoras e moradores da Casa para uma conversa, acompanhamento pelo grupo de trabalho psicossocial ou um eventual cigarro, por vizinhas e vizinhos indo e vindo (o uso da calçada é bastante familiar para o território, mas este é assunto para outro texto), por visitantes, doadoras e doadores, por voluntárias e voluntários.

Assim, apresento em sequência cronológica, nesta deriva, um pequeno repertório da partilha daquele chão no primeiro semestre: a calçada, o paliativo, a sala de exposições e a biblioteca. Não faz parte da premissa deste texto organizar categorias sociológicas do dispositivo pedagógico instaurado pela partilha do chão, mas iniciar uma genealogia das políticas do trabalho de um projeto que performa e disputa, cotidianamente, outras gramáticas de mundo.

7 de fevereiro de 2017

17 de fevereiro de 2017

27 de fevereiro de 2017

28 de fevereiro de 2017

5 de março de 2017

20 de março de 2017

24 de março de 2017

29 de março de 2017

16 de abril de 2017

30 de abril de 2017

9 de maio de 2017

10 de maio de 2017

14 de maio de 2017

4 de junho de 2017

7 de junho de 2017

16 de junho de 2017

27 de junho de 2017

[Artigo] Sobre uma “política de alianças” e a ocupação do cotidiano

Por Jesser Ramos, bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos e mestrando em Antropologia pela Universidade de São Paulo. Voluntário da Biblioteca Caio Fernando Abreu, a biblioteca comunitária da Casa 1.

 

Janaina1  contava à Teresa como estava difícil morar no albergue devido à relação conflituosa que ela tinha com outra moradora do mesmo quarto. Segundo Janaina, essa moradora chegava todos os dias tarde da noite e fazia muito barulho antes de dormir, além de não limpar suas coisas do modo que Janaina julgava pertinente. Teresa, que morava no mesmo albergue mas em outro quarto, disse para Janaina que já teve problemas muito parecidos e que era para ela tentar mudar para seu quarto porque suas colegas de lá eram gente boa. Atento à conversa das duas, eu pendurava as roupas que estavam no chão dentro de um saco preto. Janaina, que chegou ao paliativo um pouco antes de Teresa, contou que estava esperando sua aposentadoria sair para poder deixar o albergue. Assim que sair vou alugar um lugar pra morar, enquanto isso venho buscar roupa aqui porque não tenho dinheiro suficiente para comprar. As roupas aqui são ótimas. Vocês não sabem o quanto isso me ajuda, disse ela. Teresa procurava calças pretas lisas para trabalhar: menina, essas calças são ótimas para trabalhar, disse ela. Janaina concordou e mostrando blusas de alças finas e tecidos finos disse: essas são ótimas para trabalhar nesse calor. Uso sempre.

O encontro de Janaina e Teresa aconteceu no espaço do paliativo. Esse é o lugar onde a Casa 1 distribui roupas e produtos de higiene pessoal. Num outro espaço da Casa 1, a biblioteca Caio Fernando de Abreu, conheci Vivi, Aline e Patrícia. Era próximo do meio dia quando Vivi entrou na biblioteca e perguntou que horas abriria o paliativo. Respondi que abriria por volta das 14h. Vivi pediu se eu não deixava elas esperarem na biblioteca, ao que eu respondi positivamente.

Aline: Posso deitar nesse puff?

Eu: Claro, pode sim.

Vivi: A gente veio de muito longe a pé. Vamos pegar roupas, se tiver né. E depois vamos tomar um banho na minha amiga que mora aqui perto. Precisamos da roupa para trabalhar hoje, não dava pra vim outro dia.

Ficamos conversando até que paliativo abrisse e depois de ali pegarem as roupas, elas me agradeceram e foram embora. Esses encontros aconteceram em dois espaços do centro cultural da Casa 1. A biblioteca Caio Fernando de Abreu e a sala do paliativo são configurados como espaços visíveis e abertos para todas e todos aquelas/es que os frequentam diariamente. Janaina e Teresa são duas mulheres cisgênero, brancas, moradoras de um albergue localizado perto da Casa 1. Vivi, Aline e Patrícia são mulheres trans, negras e em situação de rua. Todas elas frequentam os espaços da Casa 1 e, com eles, estabelecem distintas formas de relações e apropriações.

Essas relações e modos de apropriação são efeito da política de portas abertas praticada pela Casa 1. Relações e apropriações que são multiplicadas no mover cotidiano de pessoas, desejos e afetos. Nesse mover cotidiano os espaços da Casa 1 não só são implicados em relações com seus frequentadores, como também são produzidos pelos envolvimentos estabelecidos neles. Num artigo recente (Ramos, 2019) aproximei essa política de portas abertas da “política de alianças” sugerida por Judith Butler (2017, 2018). Ao fazer essa aproximação, argumentei que “essa política da Casa 1 é menos uma política de acolhimento para os jovens LGBTQIA+ e mais uma “política de alianças” que a entrelaça com uma multiplicidade de pessoas, desejos, expectativas, necessidades e afetos” (Ramos, 2019: 44).

No entanto, é importante dizer que compreender a política de portas abertas como uma “política de alianças” não significa separar o espaço da república de acolhimento das outras espacialidades do centro cultural. Ao contrário, o espaço da república de acolhimento está entrelaçado com outros espaços e também é produzido nos movimentos e envolvimentos cotidianos da Casa 1. A política de portas abertas nos mostra um exercício de alianças, de fazer junto, que não é exclusivo para pessoas LGBTQIA+. Nesse sentido,como podemos pensar numa política que produz associações e ligações com uma multiplicidade de gentes, desejos e afetos? Como compreender essa política de portas abertas junto com uma “política de identidade” exclusiva para as/os jovens LGBTQI+ expulsos das casas de seus familiares? Parece-me que é justamente na ocupação do cotidiano que podemos perceber como, por um lado, os diferentes espaços da Casa 1 estão imbricados em dinâmicas e funcionamentos específicos, e, por outro, como essa ocupação prolifera as relações estabelecidas entre a Casa 1 e seus coabitantes.

Ao ocupar esses espaços visíveis e abertos as pessoas fazem e desfazem relações e modos de apropriação diariamente. É por meio dessa ocupação que a biblioteca se torna um lugar de descanso para Vivi, Aline e Patrícia, ao mesmo tempo que o paliativo é um lugar buscado para conseguir roupas para trabalhar. Biblioteca que se torna um lugar de divertimento para as crianças da vizinhança ou então um lugar de acesso a livros para aquelas/es que frequentam esse espaço. Paliativo que gera uma possível troca de quarto para Janaina ou que propicia a procura de calças pretas para o trabalho de Teresa. Assim, é a partir dos encontros diários promovidos por esses espaços abertos e sutis que as ligações entre Casa 1 e seus frequentadores são feitas. A feitura dessas distintas ligações nos espaços é o que produz as alianças entre eles e aquilo lhes que é exterior.

Ao permitir que inesperadas alianças sejam estabelecidas em seus espaços, a política de portas abertas escapa dos limites impostos por uma “política de identidade” que estabiliza e homogeneíza seu “sujeito político”. Butler em sua crítica à “política de identidade” do feminismo argumenta que:

“a tarefa política não é recusar a política representacional, uma vez que as estruturas jurídicas da linguagem e da política constituem o campo contemporâneo do poder […] A tarefa é justamente formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (1990: 24)

Dessa forma, tentando escapar de uma política que imobilize as possibilidades de ação política do feminismo, Butler diz que alguns esforços feministas têm formulado um “política de coalização” (1990: 39). Uma política cuja “forma – uma montagem emergente e imprevisível de posições – não pode ser antecipada” (ibidem: 39) e, como consequência disso, cujas coalizões “devem reconhecer suas contradições e agir deixando essas contradições intacta” (ibidem: 40). Assim, nessa “política de coalizões” não se pressupõe ou se objetiva uma “unidade”, mas “unidades provisórias” que “podem emergir no contexto de ações concretas que tenham outras propostas que não a articulação de identidade” (ibidem: 41). Coalizões que estão permanentemente abertas a “múltiplas convergências e divergências, sem obediência a um telos normativo e definidor” (ibidem: 42).

Nessa política que se alia a um outro estranho, a liberdade e a igualdade são exercidas de modo compartilhado. Só é possível pensar a existência individual em relação ao direito de existir de outras vidas. Segundo Butler (2017: 44), “sobrevivemos por meio de uma existência extática da socialidade” justamente porque nosso corpo está implicado nesse modo compartilhado da vida. Por estar “fora de si e no mundo dos outros”, o corpo assume um risco “de um contato involuntário e indeterminado que pode ir em direção de dor insuportável e ferimento; na direção de descoberta súbita, apaixonando-se, solicitude imprevista” (2017: 48). Mas é justamente o caráter relacional “da condição do corpo de ser afetado pelos outros, e é apenas por sermos afetados, que temos alguma chance de exercermos nossa liberdade”. Nesse sentido, risco e liberdade estão em relação contínua pois “não há exercício de liberdade sem nenhum risco” (2017: 48). Assumir o risco da imprevisibilidade das relações é o que faz da política queer um exercício radical de democracia.

É então nas afecções e no mover do cotidiano que as alianças e coalizações são produzidas entre a Casa 1 e seus frequentadores. Alianças e coalizações que não perdem de vista a “política de identidade” criada para aquelas/es que são violentadas/os e excluídas/os diariamente devido suas sexualidades e identidades de gênero. Ao invés de restringir as ações e dinâmicas da Casa 1, essa política de identidade a implica em relações com outros modos de existir no mundo. Em sua reflexão sobre a política sexual de minorias sexuais,

Paul Preciado (2011: 12) entende a política como uma “potência de vida” em que “os corpos e as identidades anormais [são] potências políticas” (2011: 12) que por meio de ligações formam uma “multidão queer”. A política da multidão queer não deve ser compreendida “em oposição às estratégias identitárias” (ibidem: 15). As estratégias de identificação são primordiais para uma ação política efetiva dessa multidão. Não obstante, e esse é o ponto atraente de sua análise, a política dessa multidão não pode ser pensada apenas “como um lugar de poder mas, sobretudo, [como] um espaço de criação” (2011: 13).

Como um “espaço de criação”, a política da multidão queer pode criar formas de alianças [im]possíveis com aqueles/as que não compartilham das mesmas identidades sexuais. Assim como essa política da multidão queer, a política de portas abertas cria múltiplas alianças imprevisíveis com o que está externo aos seus espaços. Uma multidão que ocupa seus espaços por meio de relações íntimas e cotidianas. É na potencialidade da criação que o pertencimento e identidade aparecem. Ao invés de restringir e limitar essas relações íntimas e cotidianas, o pertencimento e a identidade, como princípios políticos, as multiplicam. Longe de estabilizar as coligações estabelecidas nos espaços abertos e visíveis, o fazer parte da Casa 1 é ampliado pelos modos como os envolvimentos cotidianos são feitos pelas pessoas. Como espaços de criação, os espaços do centro cultural e da república de acolhimento são produzidos através de afetos, desejos, necessidades, conflitos e tensões.

É por meio dessas dinâmicas de visibilidade e abertura que a Casa 1 se relaciona com sua vizinhança. Como disse Bruno, organizador da ONG, um dos objetivos da política de portas abertas é garantir que os vizinhos reconheçam a Casa 1 como parte da comunidade. Reconhecer os espaços da Casa 1 é também um modo da vizinhança reconhecer as/os jovens LGBTQI+ como parte daquele lugar. Assim, nos envolvimentos cotidianos com a vizinhança, a política de portas abertas “estabelece ligações de confiança, consideração, ajuda e afeto” (Ramos, 2019: 49). Ligações essas que são costuradas nos movimentos imprevisíveis de uma política de alianças no bojo da qual, no caso da Casa 1, Dona Rosa – uma de suas organizadoras e moradora da vizinhança há anos – exerce um papel fundamental ao fazer contado direto com os/as vizinhos/as.

Na ocupação diária da vizinhança, as relações e apropriações também são multiplicadas em suas formas e modos. A relação de Débora com a Casa 1 é um bom exemplo das formas de ocupação do cotidiano. Numa conversa comigo no paliativo, Débora me contou como gostava que seus filhos frequentassem a Casa 1:

Eu gosto que eles vão lá. Melhor do que na rua. Eu sei onde eles estão, com quem estão. Na rua a gente nunca sabe com quem eles estão. Lá eles aprendem computação, brincam, comem. E eu nem sabia que eles davam comida lá. Uma vez desci pra chamar Jonatas pra comer e ele me disse “de novo”. É ótimo eles estarem lá (Caderno de Campo, 17 de maio de 2019). (Ramos, 2019: 50)

Em meio à nossa conversa, Dona Rosa chegou e Débora foi falar com ela (Ramos, 2019: 51):

Débora: Dona Rosa, eu queria pedir uma coisa pra senhora. Perdi o emprego esses dias e agora estou correndo atrás de outro, queria saber se a senhora não tem papel higiênico, sabonete, sabão pra me doar, eu estou até com vergonha de pedir isso.

Dona Rosa: Não precisa ter vergonha não. A gente tá aqui pra ajudar no que for possível. Eu não vou ter algumas coisas pra te dar porque também to tendo que comprar ali pra cima. Mas vou ver o que tenho e te dou.

Débora: Obrigado Dona Rosa, qualquer coisa vai ser de grande ajuda.

Dona Rosa subiu até a sala onde se guardam os alimentos e trouxe alguns produtos para Débora. Assim como nos encontros descritos acima, a presença de Débora produz uma relação específica entre ela e a Casa 1. Do mesmo modo, muitas outras relações são costuradas diariamente nos espaços da ONG pela sua vizinhança. Relações que se expandem para as atividades desenvolvidas no Galpão e para os atendimentos na Clínica Social.

Nas costuras sutis feitas pela ocupação do cotidiano, os espaços visíveis e abertos se tornam lugares de potencialidades e possibilidades. Potência de criação e possibilidade de ligações. Lugares que promovem formas de socialidades para as crianças do bairro durante a realização das atividades culturais e educacionais; lugares de descanso para aquelas que andaram uma longa distância atrás de uma roupa para trabalhar; lugares de atendimentos psicológico e médicos para pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e social; lugares de acesso a formas de expressões artísticas e culturais ou então um lugar de acolhimento para quem passou por violências e exclusões constantes. Desse modo, é na ocupação desse cotidiano constante que ligações imprevisíveis são feitas e desfeitas, produzidas e reproduzidas.

Dona Joana, também vizinha da Casa 1, disse-me uma vez depois de pegar duas peças de roupas: “parece pouco, mas vocês não sabem o quanto isso me ajuda”. Essa frase ressoa em muitas histórias que ouvi todos os dias que estive na Casa 1 e mostra de modo preciso o efeito da política de portas abertas: os espaços do centro cultural e da república de acolhimento são lugares de possibilidades. Possibilidades que são expandidas, proliferadas, modificadas e desmanchadas à medida que as relações cotidianas ocupam essas espacialidades. O cotidiano, ao ocupar e aliar-se à esses lugares, torna visível outros modos de existência. Assim, os espaços visíveis e abertos não só visibilizam as existências das/os jovens LGBTQIA+, mas também visibilizam outros corpos, desejos, violências e exclusões. Nesse aliar-se, um fazer junto é criado na e pela Casa 1.

Nesse sentido, esse lugar voltado para acolher pessoas LGBTQIA+ não aglutina suas formas de ação política em torno de uma política de identidade estável. Ao contrário, essa política de acolhimento juntamente com a política de portas abertas implicam a Casa 1 em uma multiplicidade de afetos, desejos e necessidades. O reconhecimento desse espaço LGBTQIA+ não foi produzido em torno daquilo que Butler diz ser o perigo das políticas de identidade: a construção de ações e reconhecimentos políticos baseados em um sujeito político homogêneo e estável. A autora argumenta que (2017: 45) “às vezes, as normas de reconhecimento nos ligam de formas que põem em perigo nossa capacidade de viver” precisamente porque “as categorias que parecem tornar a vida possível na verdade tiram as nossas vidas”. Criar esses lugares de possibilidades por meio de sua política de portas abertas faz com que a Casa 1 assuma os riscos e afecções imprevisíveis e inconstante da ocupação do cotidiano. Ao assumi-los, as coalizações e as alianças inesperadas que o fazer junto enseja são expandidos e potencializados, proliferando. Diferentes modos de existência que se aliam e passam a viver em conjunto. Um viver que não se faz, evidentemente, apenas nas convergências, mas, sobretudo, nas divergências, nos riscos e nas tensões.

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1 Todos os nomes contidos no meu texto são nomes fictícios. Apenas os nomes do/as organizadores/as não serão trocados.

Ao longo do texto colocarei em itálico enunciados, falas e expressões ditas pelas pessoas que habitam e frequentam a Casa 1. Em aspas duplas, usarei conceitos teóricos.

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Referências Bibliográficas

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminino e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018 [1990].

———————-. Alianças queer e política anti-guerra. Bagoas, n. 16. p. 29-49. 2017.

——————— . Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens ; revisão técnica Carla Rodrigues. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2018.

PRECIADO, Paul. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011.

RAMOS, Jesser R. de Oliveira. “É só pra pessoas LGBTs isso daqui?: a produção de espaços visíveis e abertos como formas de fazer política pela Casa 1. EntreRios – Revista do PPGANT -UFPI -Teresina • Vol. 2, n. 1 (2019).