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“Hoje eu falo com orgulho de quem eu sou, de quem é minha família”, diz a ex-jogadora de vôlei Fabi Alvim

Uma das atletas mais vencedoras do esporte brasileiro, Fabi conta sobre a dificuldade de ser mãe no meio esportivo e fala da importância de assumir sua orientação sexual publicamente e de lutar contra o preconceito. Para ela, as críticas à jogadora trans de vôlei Tifanny não passam de transfobia

Por Sanny Bertoldo

Bicampeã olímpica como líbero da seleção brasileira de vôlei, Fabi Alvim sempre foi uma das atletas mais carismáticas do país. Aos 41 anos e aposentada das quadras desde 2018, ela virou comentarista na TV Globo e no Sportv, e analisará a trajetória do vôlei nacional nas Olimpíadas de Tóquio (que começam oficialmente na sexta-feira que vem, dia 23).

Casada com Julia Silva, gerente de seleções da Confederação Brasileira de Vôlei, tem uma filha, Maria Luiza, de 2 anos. Nossa conversa foi dividida em duas partes. Hoje, falamos sobre sua aposentadoria, os desafios da maternidade para a mulher que é atleta, preconceitos e a escolha por expor sua orientação sexual e a família que formou. “Eu tive muito medo ao longo da minha vida, hoje eu já não tenho mais. É óbvio que eu tenho os meus receios em relação ao que minha filha possa vir a enfrentar, mas ela vai estar preparada”, diz Fabi. 

Na semana que vem, a conversa será sobre essas Olimpíadas realizadas em meio à pandemia, seu papel como comentarista nos Jogos e os desafios que o movimento olímpico tem que enfrentar para não ficar atrás no bonde da história.  

Leia a primeira parte da entrevista:

Você vai comentar o vôlei nas Olimpíadas, que começam na semana que vem. Não sente nenhuma pontinha de saudade de estar em quadra, com a seleção?

Ah, não, é passado total. Para mim, eu acho que o que foi mais interessante da minha transformação em ex-atleta, ou atleta aposentada, foi entender os finais de ciclo. Acho que, não só no esporte, mas na vida da gente, tem coisas que a gente precisa entender que foi bom, que viveu e foi ótimo, e eu acho que o mais difícil para o atleta é essa percepção de compreender que está chegando no final. Eu fui a duas Olimpíadas… tenho saudades, mas é uma saudade diferente, é um sentimento de nostalgia mesmo, lembrar do frio na barriga, que certamente muitos estão sentindo pela primeira vez, ou pela segunda; alguns, como a Formiga [da seleção feminina de futebol], pela sétima vez. É muito legal, é muito especial, mas o sentimento que tenho hoje é  que vivi e aproveitei intensamente tudo e posso me considerar uma pessoa realizada nesse sentido. 

Muitas pessoas ficaram sem entender porque você abriu mão de disputar as Olimpíadas de 2016, em casa, no Rio… 

Isso foi uma construção para mim. Seleção brasileira é 100%, não dá para você ficar 10%, 20% a menos do que você sabe que precisa fazer. Eu queria jogar uma Olimpíada aqui dentro de casa, mas eu já percebia que eu não tinha mais condições técnicas. A minha cabeça, depois de Londres, já estava voltada para esse processo de entender qual é o meu papel na seleção brasileira. Eu percebia que, por exemplo, tinha uma menina que jogava comigo, e vai realizar esse sonho agora, que é a Camila Brait, que estava muito preparada, era dez anos mais jovem que eu. E comecei a ver tudo isso com lucidez, tirando um pouco a parte emocional, e falei: “cara, eu fui tão feliz, isso aqui foi tão bom, foi tão legal para mim, eu sou tão grata à seleção brasileira, que não dá para estar aqui menos do que 100%”. 

E eu tinha o projeto de ser mãe, eu tinha uma ideia de estar mais em casa, mais próxima da minha família. Eu queria construir esse caminho sem dor, eu queria construir isso sem sofrimento porque- não é que estar na seleção seja sofrimento, mas é que você tem que se doar 100%, não tem outro caminho. Eu primeiro saí da seleção em 2014, numa conversa com o Zé [Roberto Guimarães, o técnico] muito madura, em que ele me entendeu e a gente falou sobre todas as coisas, sobre dores, nossos amores, nossa convivência na seleção. Aí resolvi permanecer no clube por mais algum tempo porque é outra batida, não tem aquela exigência de seleção brasileira, de ficar em concentração e tudo mais. E estiquei até 2018. Só que na temporada 2017-2018, eu já sabia que seria minha última Superliga, até porque tinha um projeto de ter filho, a minha mulher engravidou, então eu queria estar junto, eu queria participar.

Apesar de não ter sido eu quem gerou a Maria, eu queria participar de todo o processo e, para isso eu tinha que estar em casa, para isso eu tinha que estar junto. E o processo de ter filho, de fertilização, não é simples. É um privilégio você poder ter essa oportunidade de ter filho através da fertilização, mas às vezes você também lida com muitas frustrações, né? A gente não engravidou na primeira tentativa, então eu queria estar junto da Júlia. Por conta disso eu fiz esse trajeto, esse caminho, onde eu fui “desmamando” do vôlei, daquilo que era mais importante na minha vida e que foi a minha profissão, para virar uma ex-atleta. E hoje eu sou uma torcedora/comentarista, que tento colocar lucidez em certos momentos, mas às vezes a emoção também toma conta mesmo. E vibro com a seleção brasileira.

Fabi com a mulher, Ana Julia, e a filha, Maria Luiza | Foto: Reprodução Instagram

Falando em maternidade… esse continua sendo um problema para a mulher que é atleta, não é? 

É. Essa é uma luta que, nossa, se a gente for falar de maternidade para atleta, vai descobrir muitas histórias. Como é possível isso, né? Você imaginar que a mulher não tem direito de ser mãe se for atleta, que tem que ser algo muito programado, que ela não tem uma licença-maternidade. Eu já ouvi muita coisa. No vôlei a gente também tem caminhado a passos de formiguinha, mas houve uma vitória, por exemplo, da Tandara, num processo que ela abriu [ela foi dispensada pelo Praia Clube quando estava grávida] contra o ex-clube. Acho que ela foi pioneira nisso aqui no Brasil e foi um barulho enorme. Você já começa sua carreira sabendo que só vai poder ser mãe por acidente ou com muito planejamento. A gente ouve isso a vida toda, como ouve esse discurso que esporte e política não se misturam, né? Mas estamos vendo que se misturam, sim. 

Mas eu acho que o grande negócio em relação à maternidade é a temporada. Os contratos das atletas – a maioria deles – são feitos por temporada e se você engravida, ninguém te contrata. Talvez eles possam iniciar uma conversa para, a partir do momento que for voltar a jogar, dê prioridade para esse ou aquele clube, dependendo da sua relevância. Mas aí a gente está falando de atletas privilegiadíssimas. Se você for olhar do meio para baixo, onde está a maioria das atletas, a história é outra. E muita gente vai abandonar mesmo. A realidade de ser mãe na alta performance, e aí falo no esporte de um modo geral, é para o topo da pirâmide.

“Teve uma menina que me procurou para agradecer porque o pai era muito fã de vôlei e ela nunca soube de que maneira abordar o assunto da orientação sexual dela com ele e eu fui um canal para a conversa. São histórias que reforçam essa ideia de que posso contribuir, sim, para o debate

E foi no vôlei que surgiu por aqui a discussão de atleta trans, quando a Tifanny [ponteira do Osasco] passou a disputar a Superliga.

Eu acompanhei a Tifanny desde o início e meu olhar para ela sempre foi de acolhimento, de  “cara, seja bem-vinda, exerça sua profissão do jeito que você tiver que exercer”. Depois eu fui construir a minha opinião em relação à participação de atleta trans, como é que funciona, como é que não funciona. Eu vi muita gente contra e a favor, mas acho que a Tiffany e qualquer atleta trans podem estar onde quiser.

Na época eu acompanhei esse debate tão polarizado, como está tudo hoje no nosso país, com um certo constrangimento por algumas opiniões. Falou-se, inclusive, que ela estava tirando lugar de mulheres. Eu ouvi muita baboseira, muita coisa que só serviam de escudo para que as pessoas disseminassem o preconceito. E se você pega os números dela nos jogos, vai ver que  são números normais, não vejo nada que possa corroborar esse discurso que, para mim, é simplesmente  transfobia enraizada.

O esporte, no geral, é muito preconceituoso, não é?  

É, o esporte de alto rendimento por si só é excludente. Só serve para as pessoas que têm  certa aptidão, que se encaixam em padrões: tem que ser grande, tem que ser isso, tem que ser magro; tem um monte de exigência. Mas é isso, acho que a gente tem que debater. E existem esportes  mais intolerantes do que outros. A gente vê o futebol, por exemplo. Semana passada eu vi uma entrevista, acho que foi na Eurocopa, de um jogador que falou: “eu não aconselho amigos que eu sei que são gays a assumirem”. E isso simplesmente porque o futebol é um ambiente tóxico nesse sentido. 

É difícil se assumir, não é simples. Primeiro por essa questão estrutural, que é homofóbica, de um país homofóbico, racista, machista; e segundo porque às vezes é uma construção do seu pensamento mesmo. Eu mesma, quando tinha 20, 20 e poucos anos, ainda não sabia direito como abordar isso, o que era isso dentro de mim, quem sou eu no mundo. Eu não sabia, eu não falava com propriedade. Hoje eu falo com orgulho de quem eu sou, de quem é minha família. 

Hoje eu falo com muita naturalidade sobre diversos temas, mas eu tive que aprender, eu tive que estudar, eu tive que ler, eu tive que acolher e ser acolhida, entende? É uma construção mesmo, sobre tudo. Mas eu acho que as pessoas estão cada vez falando mais e quem se incomodar vai ter… desculpa, não dá mais para recuar, não dá mais para a gente dar um passo para trás. É nem um passo a menos. A gente tem que avançar enquanto sociedade,  a gente precisa debater alguns temas que durante muito tempo ficaram escondidos, durante muito tempo eram tabu. O Brasil é um país que precisa evoluir em diversas questões quanto ao seu preconceito. A gente precisa avançar e o esporte também.

E você acha que, ao falar sobre sua vida, sua família, está contribuindo para combater esses preconceitos na sociedade? 

Eu aprendi que as redes sociais – a minha rede social – também podem ser um lugar onde posso conversar com as pessoas, contribuir para esse debate. Durante muito tempo eu não falei sobre quem eu era, eu não entendia muito bem o meu papel, onde eu podia chegar com a minha orientação sexual e falar disso de forma natural. Eu sou de uma família branca, sou uma atleta profissional que chegou a jogar Olimpíada, então, se a gente for pensar por esses recortes, eu ocupo um lugar de privilégios.

Mas às vezes tenho diálogos muito interessantes com pessoas que eu nunca nem vi na vida e que falam: “poxa, que bom que você fala da sua família, que bom que você fala disso de forma natural”. Teve uma menina que me procurou para agradecer porque o pai era muito fã de vôlei e ela nunca soube de que maneira abordar o assunto da orientação sexual dela com o pai e eu fui um canal para a conversa, por ele ser fã. São histórias que reforçam essa ideia de que posso contribuir, sim, para o debate.

Quando eu pensei com a minha mulher em ter filho, a gente conversou sobre os nossos medos. A gente não tem a ilusão de que não vai  sofrer preconceito ao longo da caminhada e de que a nossa  filha não vai sofrer preconceito. A gente sabe, mas a gente precisa construir um ambiente dentro de casa para que ela esteja preparada para responder,  dialogar,  questionar. Eu tive muito medo ao longo da minha vida, hoje eu já não tenho mais. É óbvio que eu tenho os meus receios em relação ao que minha filha possa vir a enfrentar, mas ela vai estar preparada. E ela vai construir o pensamento dela, a gente vai tentar criá-la para que ela seja uma questionadora do mundo, da vida. Então eu espero que, de alguma maneira, a geração da minha filha já pegue uma sociedade em  transformação. Porque acho que mudança mesmo, acho que só… sei lá, nem sei quantas gerações vai precisar para que a gente pelo menos debata sobre todos os temas de forma respeitosa.

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