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Madalena e o Zepelim

Madalena Leite, a primeira vereadora travesti de Piracicaba (SP), era conhecida e amada por toda uma cidade, mas morreu como a Geni de Chico Buarque

Por Maria Teresa Cruz

Na rua Governador Pedro de Toledo, área popular de comércio da cidade de Piracicaba, interior de São Paulo, a qualquer hora do dia, surgia Madalena Leite, travesti e negra. No alto dos seus 1,80 m, vestindo tamancos e um lenço colorido na cabeça, vez ou outra, requebrava e parava o passo para mexer com alguém: “Motoristaaaaaa!” — assim mesmo, com o “a” alongado e gritado — ou “Vem cá, menino lindo!”. Arrancava gargalhadas ou fazia corar os mais tímidos. 

Ela enfrentou a pobreza, o racismo e o preconceito e se tornou a primeira travesti eleita vereadora na conservadora cidade paulista em 2012, pelo PSDB. “Madalena é o espelho de todas as travestis e transexuais do Brasil. É um marco na nossa história”, avalia Jovanna Cardoso, presidente do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRAN), em entrevista à Ponte

“E ela não foi eleita por pessoas LGBTs. Ela foi eleita pela população, pelas pessoas carentes, pela comunidade onde vivia e para quem fazia trabalho social. Infelizmente, muitas vezes, LGBT não vota em LGBT. Era uma potência de mulher trans, negra e que trabalhava para toda a sociedade, independente do seu credo, posição social ou sexualidade”, afirma Jovanna.

Aos 64 anos, no último dia 7 de abril, Madalena foi encontrada morta no sofá de sua casa, no Jardim Boa Esperança, periferia da cidade, onde atuava como líder comunitária. Ela estava com o rosto desfigurado e, no chão da sala, o quadro com a fotografia dela quando era vereadora, no plenário da Câmara, estava todo destruído. 

Madalena Leite com a Banda do Bule em Piracicaba | Foto: Reprodução

A morte é investigada pela 3ª Delegacia de Homicídios do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais)  de Piracicaba. A reportagem tentou, por telefone, falar com a delegada Juliana Pereira Ricci, mas recebeu uma negativa. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou que “detalhes não estão sendo divulgados para não atrapalhar as investigações”. 

Amada por toda uma cidade, Madalena morreu como Geni. A personagem de Chico Buarque, que poderia “salvar e redimir uma cidade inteira”, no final das contas, recebeu pedras, porque era “feita para apanhar” e “boa de cuspir”. O responsável (ou responsáveis) pelo violento crime não foi identificado e as motivações ainda são desconhecidas.

Madalena: o perfil da violência contra mulheres trans

De janeiro até o dia 12 de abril deste ano, 53 pessoas transexuais foram assassinadas no Brasil, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Madalena faz parte dessa estatística e também reflete o perfil da maioria das vítimas: mulher trans ou travesti, pobre e negra. Em 2020, 82% dos 175 assassinatos foram de mulheres trans negras. “Isso é preocupante, porque leva a crer que esse cruzamento com o racismo nos denuncia a estrutura de exclusão e marginalização em que aquelas pessoas foram colocadas”, pontua Bruna Benevides, secretária de articulação política da ANTRA. “A expectativa de vida de uma pessoa trans é 35 anos. Se for negra, essa média diminui, se morar na periferia… São todos marcadores de vulnerabilidade que vão se acumulando”. 

Bruna destaca que, no caso do crime contra Madalena, há elementos para além da transfobia. “Seria importante dimensionar se, além da transfobia e crime de ódio, poderia haver motivação política, visto que ela era uma ex-vereadora e defensora dos direitos humanos. Eu lembro quando ela foi eleita e não queriam nem deixar ela assumir. Isso reverberou de forma muito pesada entre as pessoas trans”, afirma. 

De fato, a ex-vereadora relatou, em mais de uma oportunidade, resistência de alguns parlamentares a sua presença na Câmara, e chegou, dias após as eleições de 2012, quando saiu vitoriosa, a receber uma ameaça de morte anônima. Conforme publicações locais da época, a vereadora recebeu ligações em que uma pessoa dizia que, caso ela fosse tomar posse, iria matá-la. 

Bruna avalia que a popularidade de Madalena pode, em alguma medida, ter permitido que ela fosse uma exceção à regra com relação à estimativa de vida. “Apesar de estar num grupo invisível, ela teve uma vida pública e talvez isso, em alguma medida, tenha sido uma garantia. Quando ela sai desse processo público, começa a envelhecer, a vulnerabilidade bate à porta. A invisibilidade leva ao genocídio, porque as pessoas se sentem confortáveis e protegidas para continuarem a nos violentar”, conclui. 

Terno, gravata e tamancos

Ao assumir o cargo de vereadora, Madalena não abandonou os clássicos tamancos e os lenços coloridos que usava na cabeça, mas adotou calça e camisa social, e, às vezes, terno e gravata. Era comum usarem o gênero masculino para se referir a ela. Quando questionada, na época, disse o seguinte: “Para mim tanto faz a maneira como me chamam. Quando eu me olho no espelho, vejo um homem de muita coragem. Vou usar terno e gravata na posse e quando precisar, mas vou continuar a ser a mesma Madalena de sempre”.

Jovanna Cardoso, presidente da FONATRANS, destaca que a sociedade precisa entender que a transexualidade e travestilidade não está na roupa. “Infelizmente, o patriarcado, o sexismo, a misoginia da sociedade definem roupa de homem e de mulher. Roupa não deveria ter gênero. A roupa não define quem é transexual ou travesti. O que define é a identidade que ela assume para ela, o seu interior. A roupa é apenas uma indumentária e serve para cobrir o corpo”, explica.

Madalena Leite em demoimento ao documentário “Banda do Bul de Piracicaba” | Foto: Reprodução

Mesmo depois de morta, algumas reportagens usaram o nome masculino no lugar de Madalena. No site da Câmara de Piracicaba, aliás, seu nome social é colocado quase como um apelido e, no registro oficial, está escrito o nome antigo, com o qual há muito ela não se identificava mais.

O não respeito ao nome escolhido pela pessoa trans é considerado uma violência. Para Jovanna, o Legislativo, Executivo e Judiciário refletem o que é a sociedade e, por isso, o preconceito institucional ainda existe. Além do mais, houve uma evolução nos últimos anos no aspecto legal desse debate. “Não tínhamos leis e decisões judiciais que permitiam que a identidade de gênero fosse respeitada. Hoje, penso que as coisas mudaram e, se Madalena estivesse viva, seria tratada no gênero que ela queria. Eu, por exemplo, só consegui a partir de 2013 que as pessoas me chamassem do nome que eu escolhi para mim, que era nome social e hoje é nome civil. E tem mais, essa história de nome de nascimento é uma balela. Cada um pode ser o que quiser e ser chamado como quiser”, afirma. 

Bruna Benevides, da ANTRA, concorda e destaca a importância de que o direito das pessoas trans sejam dados da concepção até depois da morte. “Há casos em que a pessoa, mesmo depois de morta, é identificada com seu nome de registro. Isso é um apagamento e que a gente tem chamado de duplo assassinato. Porque não é só omitir a possibilidade do reconhecimento do seu nome, mas do que ele representa, que é a própria identidade da pessoa”, critica.

De faxineira e líder comunitária a vereadora

São inúmeros e divertidos os relatos sobre as cantadas da carismática Madalena. Os que sinalizavam qualquer reciprocidade logo eram convidados para tomar um chá com rosquinhas. Irreverente, não levava desaforo para a casa: “Se me der um tapa, te dou cinco tamancadas na cabeça”, teria dito a um pedestre, certa vez.

Há um grupo no Facebook, Coisas de Piracicaba, dedicado aos momentos marcantes da cidade, repleto de histórias com Madalena, desde os beijos que roubava de cobradores, motoristas de táxi e de homens que estavam dormindo no ônibus com a janela aberta, até um caso em que ela invadiu uma festa de casamento se dizendo traída pelo noivo. Tudo brincadeira, claro.

Integrou a extinta Banda do Bule, uma das mais famosas do carnaval piracicabano nos anos 1970. Madalena saía todos os anos de baiana, conduzindo o cortejo justamente pela rua Governador, a rua do comércio piracicabano. “Era a coisa mais linda. Todo mundo respeitava um e outro. Não tinha bagunça”, disse a ex-vereadora em documentário sobre o bloco.  

Nascida em Piracicaba em 27 de dezembro de 1956, Madalena foi líder comunitária por quase 30 anos no bairro onde cresceu e morava até sua morte, o Boa Esperança. Madalena começou a trabalhar ainda na adolescência como faxineira e cozinheira em residências e repartições públicas pela cidade, que, por ser universitária, é cheia de repúblicas estudantis. E foi em uma delas, a Canecão, em que ela foi batizada aos 15 anos. “Eu trabalhava de faxineira com a minha mãe e os moradores fizeram um concurso para escolher um nome de mulher pra mim. Aí ganhou Madalena. Eu gostei e ficou”, declarou em sua biografia no site da Câmara dos Vereadores.

A personalidade forte se provou em sua resistência para chegar a ser a primeira travesti eleita vereadora na história da cidade: foram 5 tentativas até a vitória com mais de 3 mil votos, a segunda mais votada do PSDB, legenda pela qual ingressou na política e que tem grande tradição na cidade, fazendo a administração municipal por duas décadas.

Não raro defendia as pautas das travestis garotas de programa e denunciava a violência da profissão, mas fazia questão de dizer em discursos que “nunca havia precisado fazer avenida [se prostituir]”. Madalena também, sempre que possível, criticava o que chamava de “pouca vergonha” — a hipocrisia de homens héteros casados, a maior parte da clientela da zona de prostituição piracicabana.

Em dezembro de 2016, na despedida do mandato, deixou um recado aos colegas: “Vão nas favelas, não fiquem apenas no centro. Vocês precisam ir lá para ver a situação que vive a população”, disse ela, à época, no plenário. Durante a legislatura, comprou brigas por melhores condições aos ambulantes, homenageou o terreiro de umbanda Nzo ia Nkise Muxima Dandalunda Kessimbi e defendeu o policiamento comunitário nas quebradas.

A morte de Madalena rendeu homenagens de pessoas da militância, de ex-colegas vereadores e da própria Prefeitura de Piracicaba, que divulgou a seguinte nota: “Figura emblemática em nossa cidade, tornou-se conhecida por sua personalidade marcante, sempre sorridente, de luta e perseverança. Características estas que a conduziram a ocupar uma cadeira na Câmara de Vereadores de Piracicaba (2013-2016), cargo que ocupou com profissionalismo, espírito democrático e social.”

Foto de Capa: Divulgação/ Câmara dos Vereadores

A Ponte Jornalismo é uma organização sem fins lucrativos criada para defender os direitos humanos por meio do jornalismo, com o objetivo de ampliar as vozes marginalizadas pelas opressões de classe, raça e gênero e promover a aproximação entre diferentes atores das áreas de segurança pública e justiça, colaborando na sobrevivência da democracia brasileira. O conteúdo da Ponte Jornalismo é livre de direitos autorais e reproduzido aqui no site da Casa 1 com os devidos créditos

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