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Pagar para famílias acolherem moradores de rua é aventura perversa

Por Raquel Rolnik, professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade para o LabCidade

No dia 29 de junho, o prefeito Ricardo Nunes sancionou a Lei n. 17.819/2022, que além de dispor sobre Programa de Segurança Alimentar e Nutricional no Município de São Paulo, institui diversas medidas para atender a população em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo.

Uma política de segurança alimentar e nutricional para a cidade de São Paulo é mais do que necessária – é urgente. Cozinhas solidárias, restaurantes populares, distribuição de cestas básicas, todas estas medidas são  absolutamente bem vindas.

Porém, no meio de uma  lei voltada para medidas contra a fome na cidade aprovada e publicada no Diário Oficial em um intervalo de dois dias, sem nenhuma discussão com a sociedade civil – usando da manobra de fazer adições de medidas controversas  em um PL (nesse caso, o 528) que já havia sido aprovado em primeira discussão na Câmara – foram colocadas duas medidas que estão sendo objeto de crítica por parte de especialistas e daqueles diretamente envolvidos no enfrentamento das questões relacionadas à população em situação de rua.

Uma delas é o “Auxílio Reencontro”, benefício financeiro a quem se dispuser e demonstrar condições de acolher a pessoa em situação de rua, o qual gostaríamos de abordar mais detidamente neste texto.

Não apenas essa medida ignorou totalmente as instâncias competentes de debate como o Fórum da Cidade em Defesa da População em Situação de Rua e o Comitê que representa as pessoas e organizações envolvidas neste campo, ela fere completamente a autonomia daqueles que hoje estão vivendo nas ruas.

Pagar um indivíduo ou grupo familiar para acolher moradores de rua  tira destes o poder de escolha sobre as próprias vidas e cria condições propícias para práticas de cárcere privado e situações análogas à escravidão.

A Prefeitura tem sinalizado que o auxílio teria como objetivo o retorno à família, mas isso ignora a realidade observada pelo censo da própria prefeitura: o principal motivo apontado pelos entrevistados para estarem vivendo nas ruas foi conflitos familiares (34,7%) – são vítimas de LGBTfobia, violência doméstica e outros abusos  a que estariam novamente  sujeitos caso fossem reinseridas no ambiente familiar.

A lei não apresenta critérios claros para determinar quem estará apto a receber o benefício, nem sobre como será a fiscalização para evitar as violações exemplificadas aqui. E mesmo se tivesse explicitado estes pontos, que condições a prefeitura  tem de fiscalizar uma ação social tão dispersa como essa, espalhada em várias casas?

Essa medida mal planejada e de potencial desastroso deve ser imediatamente interrompida (já que depende de regulamentação para ser aplicada) e ser submetida ao debate adequado, que inevitavelmente levará à sua suspensão nos termos em que foi apresentada.

Acesse o site da LabCidade.

Foto de capa: Rovena Rosa/ Agência Brasil

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