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Prisão feminina no Acre tem condições piores do que no Irã, diz cinegrafista ex-detenta

RIO BRANCO, AC (FOLHAPRESS)

Temendo ser presa de novo, a cinegrafista e ativista política iraniana Mahnaz Alizadeh tentou fugir para o Canadá no ano passado. A rota, a cargo de um traficante de pessoas, a levou até o Acre, onde ela passou 40 dias na superlotada penitenciária feminina do Complexo Francisco d’Oliveira Conde, em Rio Branco. Ali, conta, sofreu condições bem piores que na cadeia do país natal.

“Em Teerã, eu era uma presa política com outros presos políticos. Havia tortura psicológica, mas as condições higiênicas eram melhores, e eu podia ir a oficinas, tomar banho de sol. Aqui, ficava em uma cela sem fazer nada, só dormindo e comendo”, compara Alizadeh.

Na cela que dividiu com até 15 presas, a água só era ligada duas vezes por dia, por 15 minutos. Sai de um cano na parede e é armazenada em barris. Serve para tudo: beber, lavar roupa e tomar banho. Para dormir, a iraniana dividia um colchão no chão com outra detenta. O banheiro, mal escondido por panos pendurados, não oferece privacidade.

Ela também se surpreendeu com o uso de spray de pimenta pelos agentes para controlar uma briga entre detentas. “É inacreditável que joguem no rosto, e não no ambiente”, diz a cinegrafista, com a experiência de ter participado de várias manifestações de rua no Irã, um dos regimes mais repressivos do mundo.

A iraniana foi mantida em um cela controlada pela facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital). Mesmo sem falar português, aprendeu que a outra ala do presídio concentrava a facção rival, CV (Comando Vermelho).
A descrição de Alizadeh coincide com o relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) elaborado após visita ao sistema prisional do Acre entre os dias 15 e 21 de agosto do ano passado –duas semanas antes de Alizadeh ter sido trancafiada ali.

Além da água racionada, os peritos descobriram outras péssimas condições de higiene, apesar da epidemia da Covid-19. Sem assistência material, as presas usam miolo de pão e pedaços de pano para conter a menstruação, pois os absorventes íntimos só chegam por meio doação. A administração disponibiliza apenas um rolo de papel higiênico por semana para cada duas presas.

“Utilizar-se do corpo físico para produzir humilhação, mau cheiro, falta de higiene adequada, mal estar e privação de banho configuram um cenário de tortura psicológica”, afirma o relatório do Mecanismo.

Os peritos apontaram o uso indiscriminado de spray de pimenta em ambientes fechados tanto no presídio masculino quanto no feminino, o que contraria orientação do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos por trazer sério risco de morte ou de lesão por asfixia.

A comida é outro problema, segundo o Mecanismo. Os peritos encontraram marmitas sem legumes e verduras. Uma delas, fotografada pelos peritos, era quase toda preenchida por arroz e trazia um osso sem carne.

Uma das responsáveis pelo relatório, a perita Bárbara Coloniese afirma que o Acre repete os problemas de outros presídios femininos do país, como superlotação e falta de assistências (materiais, jurídicas, psicossociais, saúde), mas que o estado se destaca negativamente pelo não cumprimento da recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por conta da epidemia da Covid-19.

Expedida há um ano, essa recomendação orienta os juízes a soltar ou transferir para regime domiciliar internos acusados de crimes sem violência e pertencentes a grupos de risco, como mulheres grávidas e lactantes. Os juízes não são obrigados a seguir a orientação do CNJ.
Coloniese afirma que a maioria das internas se enquadra na recomendação já que, segundo a administração do presídio, 95% estão presas por tráfico de drogas.

Entre os casos mais graves, os peritos flagraram uma grávida de oito meses presa após sua tornozeleira eletrônica ter quebrado. Segundo o Iapen (Instituto de Administração Penitenciária), ela continua no presídio até hoje, na ala para gestantes.

“Esse cenário reflete a forma estruturante de pensar o cárcere como regra, e não como último recurso. Na pandemia, essa postura agrava e coloca em risco direto a vida das pessoas custodiadas no Acre”, afirma a perita.

Sem falar português, Alizadeh diz que suas colegas de cela eram pessoas pobres e tristes, que a tratavam com um misto de gentileza e rudez.
No início, conta, ela era vista como alguém muito diferente delas. “Elas tocavam a minha pele e estavam impressionadas como minhas mãos e meu rosto eram tão mais jovens que o delas, embora fossem mais novas”, lembra a cinegrafista, que completou 35 anos na cadeia.

“Elas foram gentis a ponto de prepararem uma festa de aniversário queimando um pedaço de papel para eu soprar. Por outro lado, me davam mais turnos de limpeza da cela.”

“Algumas vezes, eu sentava em um canto por horas para que algumas tivessem mais espaço, o que não era muito, dado a cela pequena. Outras me diziam para não chorar e me forçavam a aprender a dançar”, diz.
“A minha impressão é de que eram, na maioria, seres humanos gentis, presas em um lugar miserável por falta de oportunidade de trabalho, e, como resultado da pobreza das suas vidas fora e dentro das celas, agiam também de forma hostil e rude”, conclui.

Libertada em meados de outubro, a iraniana continua em Rio Branco e responde a um processo na Justiça por uso de passaporte falso. Sua situação tem mobilizado uma rede de solidariedade que envolve ativistas de direitos humanos e advogados brasileiros, além de profissionais de cinema de renome mundial.


OUTRO LADO

O Iapen negou, via assessoria de imprensa, a existência de racionamento de água no presídio feminino e o uso de spray de pimenta em lugares fechados.

O Iapen admitiu que o presídio feminino sofre de superlotação. Tem capacidade para 96 pessoas, mas atualmente amontoa 293 internas. Segundo o órgão, há uma ampliação em curso, com 156 novas vagas.
Sobre a alimentação, o Iapen diz que há legumes e verduras na dieta, mas que, a pedido dos internos, são “cortados em pequenos pedaços ou triturados”.

Com relação à divisão das celas por facção criminosa, o Iapen afirma que só há dois blocos e que, “por medida de segurança, as presas são separadas por facções criminosas visando manter a integridade física, moral ou psicológica ameaçada pela convivência com as demais reclusas pertencentes a organizações criminosas rivais”.

Foto de Capa: Reprodução

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