Por Folha Press
O educador social Weslley Silva, 24, vive no Grajaú, na zona sul, uma das regiões mais afetadas pela Covid-19 na capital paulista. Só neste ano, foram 102 mortes confirmadas ou suspeitas na região -mais de uma perda por dia.
Apesar de sair só para necessidades básicas, como mercado e emprego, Weslley relata aglomerações nas ruas e o relaxamento de outras medidas de proteção, como uso de máscaras e álcool em gel.
Ele duvida que haverá mudanças com a adoção da fase vermelha em São Paulo, em especial por causa da necessidade de sobreviver da população do bairro.
“A gente vai ter muito mais dificuldade de lidar com essa questão, principalmente porque afetou diretamente a renda dos moradores. As pessoas ricas se adaptam e param. Aqui não tem como adaptar. A periferia está na linha de frente de tudo”, afirma.
Para o morador, a ideia de tratar a doença como uma gripe qualquer teve impacto nos bairros mais pobres da cidade, independente do aumento de mortes ou das filas em busca de um leito nos hospitais. “Acredito que uma das influências sobre isso é a gestão pública e também as figuras do poder como presidente”, opina.
O aumento de casos de Covid-19 no começo deste ano e a lotação dos hospitais, que estão com 80% da capacidade ocupada, levou o governo do estado a retroceder a região à fase vermelha desde o último sábado (6). Nela nenhum comércio pode abrir com exceção dos considerados essenciais (como supermercados e farmácias).
O objetivo da medida, válida até 19 de março, é conter a evolução das infecções, dos óbitos e das internações devido ao novo coronavírus.
Apesar do apoio a medidas restritivas e de combate à pandemia, o anúncio foi recebido nas periferias com receio, críticas e apontamentos de falta de apoio por moradores e lideranças comunitárias.
Na avaliação de Claudio Aparecido da Silva, 44, líder comunitário da favela Monte Azul (zona sul), algumas medidas faltaram para combater o vírus, como a formação de agentes comunitários nas favelas e periferias para conscientização, distribuição de máscaras e mapeamento de vulnerabilidades das famílias, já que muitas vivem rotina de fome.
“Muitos moradores trabalham com serviços autônomos ou em comércios locais e, com o fechamento, acabaram tendo sua renda muito comprometida, e a alternativa foi atuar em forma clandestina”, resume o bancário Leonardo Barbeiro, 25, morador de Sapopemba (zona leste), o distrito com mais mortes por Covid-19 em São Paulo até 4 de março. Neste ano foram 107 entre confirmadas e suspeitas.
Barbeiro viu de perto esse cenário. Nos últimos meses foram comuns notícias da morte de vizinhos, amigos e familiares -e mais da metade de sua própria família teve resultado positivo para Covid em algum momento.
“O agravante é que termos um único hospital [o Estadual de Sapopemba], que não comportou as vítimas da doença, pois sempre esteve com excesso de lotação, antes mesmo da pandemia”, afirma. “Sinceramente, não acredito que irá mudar muita coisa com essa fase [vermelha]. Não temos respaldo. Enquanto não temos nem previsão da vacina, estamos realmente de mãos atadas e sem saber como agir diante disso.”
No bairro vizinho Cidade Tiradentes (zona leste), a líder comunitária Rúbia Mara da Silva Oliveira, 31, diz que a situação não está diferente. Ela comenta a dificuldade dos comerciantes locais para lidar com os efeitos da crise. “A sensação de crédito que se tinha na praça sumiu, né? A sensação de crescimento dos pequenos comerciantes também desapareceu. A pandemia acabou com a autoestima do bairro.”
Segundo ela, em grande parte das casas, as pessoas aposentadas é que estão bancando as despesas e dívidas. “Era para os aposentados estarem aproveitando esse pequeno privilégio, mas estão bancando a família toda para não deixar na rua.”
Produtora cultural na Batalha de Paraisópolis, Glória Maria, 21, mora na favela com a filha de sete anos e o companheiro. A alfabetização da filha foi uma das maiores dificuldades para ela e outras mães da favela, além da fome e da falta de emprego.
“Está tudo tão caro que as pessoas estão passando muita dificuldade. Uma amiga da minha mãe estava cozinhando com fogão a lenha porque o gás tinha acabado e ela não tinha condição nenhuma de comprar um novo.”
Glória cita alguns entraves como a falta de comunicação da prefeitura sobre ações, a falta de auxílio social para atender as famílias mais pobres e a queda nas doações de cestas básicas. O coletivo conseguia ajudar cerca de 200 famílias com os alimentos, mas isso diminuiu nas últimas semanas.
Para ela, as mobilizações para diminuir o impacto da crise foram criadas pelos próprios moradores e não pela prefeitura e pelo governo estadual. “Os caras dão R$ 50 para as crianças [de auxílio merenda]. Você compra uma caixa de leite fechada ou a mistura de um dia. Tudo é limitado”, comenta.
“Apesar de importante, a quarentena é impossível na favela porque a gente mora em espaço pequeno, entre outros problemas”, afirma.
Para a moradora, não haverá fechamento de comércios e nem o fim do baile funk na comunidade. “Os comércios aqui não fecharam e não vão fechar porque é isso que está mantendo a vida das pessoas, mano. Como é que a gente vai fazer se já estamos passando fome, né? Como as pessoas vão parar o baile se tem gente que depende dali?”, questiona.
Presidente da associação de moradores de Heliópolis, a maior favela da capital, Antonia Cleide Alves, 57, concorda com a moradora de Paraisópolis. Segundo ela, o poder público não articulou um planejamento para lidar com a pandemia nas periferias e favelas.
“As respostas são confusas ou são contraditórias. Trabalhamos para falar sobre o uso de máscaras, lavar as mãos, distanciamentos, mas somos uma gota do oceano”, compara.
Dezenas de iniciativas nas periferias se mobilizaram para arrecadar alimentos para os mais pobres Léu Britto/Agência Mural Dezenas de iniciativas nas periferias se mobilizaram para arrecadar alimentos para os mais pobres. Entre os impactos da crise, Antônia destaca o aumento de pessoas desempregadas e da economia informal, além da violência contra mulheres e crianças. A fome e a falta de internet e de condições básicas de sobrevivência são outras dificuldades na região “diante de um vírus tão preocupante”, como define.
Por lá, o Observatório De Olho na Quebrada compilou dados públicos, desde o início da pandemia, para tentar conscientizar a população sobre a gravidade da situação neste momento. Os números mostram que foram 15.862 mil casos confirmados de Covid-19 -uma média de 43 por dia.
Nos primeiros 54 dias deste ano foram registrados 1.957, mais da metade dos casos totais dos cinco primeiros meses da pandemia no distrito do Sacomã.
Ao todo, foram 526 mortes pela doença, entre confirmadas e suspeitas, em um ano de pandemia. É como se fosse uma vida e meia perdida diariamente ou quase uma morte por dia nos primeiros 56 dias de 2021.
Segundo Antônia, a solidariedade foi o que mitigou os impactos da crise, mas seria essencial ter auxílio emergencial e vacinação mais acelerada no país. “A fase vermelha nos traz muita preocupação porque tem uma desconexão entre os governos. Estamos com medo por conta de afetar diretamente a renda das pessoas e não tem hospitais para salvar as vidas.”
Professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e pesquisador do CEP (Centro de Estudos Periféricos), Tiaraju Pablo D’andrea, 40, que mora na Vila Esperança (zona leste), não vê as medidas anunciadas como efetivas. “A gente não vai vencer a pandemia enquanto os transportes públicos estiverem lotados, enquanto as pessoas forem obrigadas a trabalhar, enquanto as igrejas estiverem abertas”, cita.
O pesquisador define como dramático e desesperador o impacto da pandemia nas periferias. Em resumo, indica que o desmonte das políticas públicas fragilizou os trabalhadores, que foram empurrados para a pobreza na pandemia. Vítimas deste cenário social estão as pessoas negras, geralmente as mais pobres, na análise de Tiaraju.
Para a socióloga e mestra em Ciências Humanas e Sociais Najara Lima Costa, 40, a periferia segue abandonada com a ausência de políticas públicas de renda básica municipal ou federal ou políticas solidárias e de redução ou isenção de impostos sobre alimentos neste momento tão crítico. “As vidas não estão sendo colocadas em primeiro lugar”, observa.
De acordo com a socióloga, a fase vermelha de nada adiantará sem que escolas particulares e públicas não deixem de funcionar presencialmente, assim como templos religiosos. Outra coisa importante para ela é a imunização. “A vacina está sendo disponibilizada a conta gotas e não há qualquer esforço do governo federal para se evitar um colapso no sistema de saúde.”
Por meio de nota, o Governo do Estado de São Paulo, gestão João Doria, disse que, desde o início da pandemia da Covid-19 promove ações para auxiliar moradores de comunidades e favelas no enfrentamento da doença.
Citou o programa Bom Prato e Alimento Solidário, que segundo dados oficiais, distribuiu mais de 1,5 milhão de cestas de alimento para famílias em situação de extrema pobreza em todas as regiões do estado, além da doação de máscaras, kits de produtos de higiene e limpeza e o desenvolvimento de Centros de Isolamento para a realização da quarentenas.
A reportagem também questionou a prefeitura de São Paulo, mas não obteve retorno sobre as críticas de moradores e lideranças comunitárias. O governo federal não respondeu às perguntas da reportagem e disse que disponibiliza tudo o que foi feito na página do Ministério da Economia.
Imagem de capa: Cidade Tiradentes por Leimenide.
Esta é uma matéria da Folha Press, a agência de notícias da Folha de São Paulo, serviço contratado pela Casa 1.