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Mel: “Eu gosto de ter companhias em lugares seguros”

A cantora goiana falou um pouco sobre como tem lidado com a quarentena e como é passar por esse período enquanto artista: “A impressão que eu tenho é que as coisas estão caminhando muito lentamente e, o que eu fiz no semestre passado, que a gente já tava em quarentena, parece que não me serve de nada. Parece que tudo que foi feito ontem já não serve pra hoje e tá tudo tão líquido, que a gente já não sabe, tá escorrendo por todos os lados”. 

Também discutimos sobre a forma que corpos trans e travestis são tratados na internet e sobre a sua vontade de comandar a produção de um reality show: “O que eu pensei em fazer não é nada inovador, não sou uma grande inovadora das coisas mas, eu quero sim que sejam travestis, que a gente não precise higienizar nenhum termo para conseguir acessar esse lugar e que a gente possa compartilhar as nossas experiências […]”. 

Mel também está se preparando para a gravação do clipe de “Sou Como eu Quiser”, seu novo single em parceria com Patricktor4 e também compartilhou como é seu processo criativo em carreira solo.  

Como está sendo sua quarentena e o que você anda fazendo nesses dias?

Bom, nesses dias de quarentena tenho realizado alguns trabalhos. Estou lançando uma marca, se chama “Insensata”, que é uma parada que eu sempre me identifiquei muito. É artesanato de velas, sabonetes, energéticos, utensílios de decoração feitos em cerâmica em parceria com amigos. Fiz música, escrevi texto. Estou escrevendo um livro, finalizando ele já. Logo vamos passar para uma fase de desenhar ele direito, mas ele já está, basicamente, pronto. Lancei clipe e lancei uma música agora. Vou lançar outro clipe em breve, que vou gravar mês que vem, que é da música que lancei por último, em parceria com o Patricktor4. O nome da música é “Sou Como Eu Quiser”.

Tive crise de ansiedade, tive depressão. Comecei a tomar um remedinho para estabilizar meu humor nessa quarentena. Planejei muitas coisas que não deram certo. Consegui realizar alguns trabalhos. Fiquei extremamente “panicada” de sair de casa. Eu fui aquela pessoa que ficou trancafiada dentro de casa até o último momento, só saía de casa para realizar algum trabalho por necessidade. 

Eu tava vendo isso agora, lendo umas coisas sobre quarentena antes da gente começar [a chamada de vídeo], por isso até atrasei um pouquinho. Estava vendo que tem gente percebendo agora que a quarentena bagunçou a cabeça, bagunçou as emoções, né? E que engraçado você me perguntar isso agora. Me vem muitas coisas. Mesmo no meio desse medo e dessa insegurança eu consegui produzir muito, [realizar] alguns sonhos meus que estavam engavetados durante muito tempo e mesmo assim, te dando essa entrevista, olhando pra você agora, fico pensando “gente, parece que não fiz nada pelo meu país” [ri]. 

A impressão que eu tenho é que as coisas estão caminhando muito lentamente e, o que eu fiz no semestre passado, que a gente já tava em quarentena, parece que não me serve de nada. Parece que tudo que foi feito ontem já não serve pra hoje e tá tudo tão líquido, que a gente já não sabe, tá escorrendo por todos os lados. Estou tentando pesquisar e entender aquilo que eu mais gosto, tentando dar atenção para aquilo que é importante para mim, que tem significado para mim de alguma forma, e tem sido um momento muito complicado. Apesar de eu considerar poucas realizações, se fossem em dias comuns, talvez seriam mais, mas a gente nunca vai saber. Eu tenho me centrado cada dia mais. Respirado muito fundo apesar da maluquice toda.  

Já tem alguns estudos sobre como a nossa percepção de tempo ficou bagunçada e afetada, mas a gente só vai entender todo o impacto na saúde mental bem mais pra frente. 

A sensação que eu tenho é que a gente vai ficar com uma leve ansiedade, uma leve fobia social. Acho que a gente não vai querer ir para o centro de uma boate com 450 mil pessoas. A gente não vai querer esse tanto de gente em volta. 

Eu não sei como vai ser a dinâmica de aglomerar. A gente vai querer por que é do ser humano, faz parte do mamífero. Se hoje todo mundo tivesse bem e com as vacinas, como seria? Eu não sei. Acho que ia sair a passos de formiga desse lugar. 

Não ia ser aquela parada de “hoje tem happy hour com os amigos, amanhã tenho que acordar cedo para entregar um trabalho e a tarde tenho reunião”, não sei como seria esse translado pela cidade depois que tudo isso acabar. Prefiro que as coisas encaminhem no tempo delas para uma estabilidade do que apertar um botão e as coisas voltarem. 

O vídeo da música “A Partir de Hoje” já foi gravado nesse contexto de quarentena e pandemia. Como foi o processo criativo e a execução? 

O ano de 2020 foi um ano que eu considero um ano de pausa e reflexão. Não foi um ano de muitas execuções, parando pra pensar até pela própria música. “A partir de hoje” foi uma música que foi feita no segundo semestre de 2019 e a gente começou a projetar todo um trabalho sequencial que faria sentido depois. E as coisas foram atropeladas pelo coronavírus. E não foi só eu. A maioria dos artistas e dos profissionais em geral se sentiram atropelados por isso e eu não me senti sozinha. Isso me acalentou de alguma forma. 

Falando de “A Partir de Hoje” foi uma música que a gente queria muito criar outra performance para ela durante o roteiro dessa entrega. Festivais, shows, apresentações, participações e tudo que não pôde rolar durante essa quarentena. Ver o público, que eu acho que faz muito parte do cantor, do artista no geral, de ter esse contato, conseguir transmitir as emoções da música e do que você se propõe a fazer, enfim, acabou não acontecendo.

Contudo, porém, todavia, falamos: “não vamos passar o ano em branco, vamos lançar a música sim e a gente continua o trabalho posteriormente e quando as coisas derem uma acalmada a gente vai conseguir realizar as coisas que a gente queria” então, por essa pressão de não poder ficar parada por mais tempo, de não poder virar o ano sem esse lançamento decidimos fazer o clipe.

A ideia foi minha e da minha equipe toda, com todo mundo opinando. Chegamos em uma equipe bem reduzida para trabalhar aqui em casa e gravamos no meu apartamento e entregamos esse clipe como uma forma de dizer: “estamos aqui ainda, estamos produzindo coisas e não desistimos”. Acho que esse é o maior estímulo e a mensagem desse clipe, para mim individualmente, mas, eu espero que também acolha outras pessoas. Vamos fazer o nosso tempo e vamos trazer o que tem que trazer, mas não vamos parar completamente, porque se parar os parafusos afrouxam, aí é difícil. 

No meio da quarentena surgiram relatos de mulheres cis, mulheres trans e pessoas LGBT+ no geral falando que se sentiam mais seguras por estarem dentro de casa e distantes das violências da rua. Você se sentiu mais segura? 

Sim, totalmente. Fiquei num misto de sentimentos, sabe? Eu não realizei muito bem como foi esse sentimento. Foi um sentimento de proteção mas, um sentimento de prisão junto. E eu fiquei pensando muito e refletindo muito sobre as prisões que a gente escolhe, sobre a vida. A gente lidando com o mundo capitalista é isso. A gente tem que escolher onde a gente amarra o nosso jegue.

Eu sou uma pessoa que não gosta de ficar sozinha. Eu gosto de ter companhias em lugares seguros e isso me fez refletir bastante durante a quarentena. Apesar do incômodo com tudo e de toda a preocupação com o bem estar do próximo, da família, dos amigos, dos entes queridos, das pessoas que a gente gosta e das pessoas que a gente não gosta, mas a gente não quer que morra. Apesar de tudo isso, existiu um conforto em poder parar. Um conforto em entender o que tava acontecendo. 

Pensando que as pessoas estavam agora em um lugar que você esteve durante muito tempo da sua vida. Nesse lugar meio que impossibilitado, estranho, inseguro. instável. Isso foi um pensamento que tive. E por muitas vezes me senti egoísta também de pensar que eu não estou me sentindo tão mal por ficar em casa, mas, ao mesmo tempo, isso me trazia outras reflexões sobre outras pessoas que não tenham casa, que estivessem em uma situação de vulnerabilidade e não tivessem o mínimo de conforto, que ainda bem, por conta de toda a minha trajetória, eu consigo ter. Muitos pensamentos aguando essa cabeça. 

Teve esse momento de me sentir segura na minha casa e, não tô sabendo explicar, mas de poder compartilhar esse sentimento com o mundo de alguma forma: “é dessa forma que eu me sinto todos os dias”. Sem tanto acesso, acuada, coagida dentro da minha casa, que é o lugar que eu consigo ter um ambiente seguro de alguma forma. Isso me ocorreu sim e talvez tenha sido a coisa que não me deixou enlouquecer. 

Sua carreira solo é muito rica em referências, o que você tem lido e assistido para alimentar isso? 

Acho que tudo que eu faço é um grande acúmulo, um acúmulo de sentimento, de vivência. Acúmulo de observação, de DNA e espiritualidade. Tudo é um acúmulo que transborda no que eu faço, no que eu escrevo e como eu interajo com o mundo. Acho que a quarentena me espremeu para que isso saísse ainda mais. Todas essas referências já estavam presentes em mim e saíram ainda com mais vontade, talvez por esse ócio que não foi um ócio totalmente, mas um ócio criativo no meu caso.

Fico pensando muito sobre isso porque não consumi grandes coisas nessa quarentena. No início comecei a fazer um curso de crítica de cinema e aí assisti alguns filmes muito bons. Bastante deles. Não me lembro de quase nenhum porque a coisa da memória não sei o que tá acontecendo, mas parece que eu tô flutuando em uma nuvem que às vezes é muito densa e às vezes ela não é nada. Parece um sonho. Essa busca [de referência] eu tô fazendo mais internamente do que nas minhas pesquisas. 

Tudo que tenho feito ultimamente é para tentar me desconectar, tentar não ver, tentar curar alguma coisa ou dar um tempo pra eu conseguir existir e continuar de pé. Não tá fácil assistir jornal, não tá fácil assistir nenhum entretenimento. A gente tira pelo próprio BBB, que a gente vai assistir pra tentar se alienar “propositalmente”, e a gente não consegue porque traz a tona questões muito importantes e muito sérias que estão sendo desgastadas naquele programa, ou seja, estamos fadadas a estar doentes e numa depressão global eu diria. E tudo isso tá me fazendo não buscar muita coisa cabeçuda. 

Não tô afim de entrar em nada que me deixe muito reflexiva, que me faça pensar demais porque já sou uma pessoa que pensa demais. Eu tô assistindo “Crepúsculo”, umas coisas assim. 

Eu tô lendo, ler eu gosto bastante, mas teve um momento que dei uma parada. Estou produzindo muitos textos. Coisas que me doem e as pessoas leem e elas acham muito bonito, mas foi tão dolorido para produzir aquilo, como se fosse uma forma de choro mesmo só que em palavras, aí  eu falei comigo mesma: “ai, que chata, que mulher chata, chega, já tá todo mundo sofrendo também” e comecei a ler Hilda Hilst e tô me divertindo com essa leitura. 

Estou com o livro na cabeceira, é o “Contos de Escárnio”, eu adoro, morro de rir. É um negócio que trabalha nossa sexualidade e esse momento de quarentena é outro problema que a gente tá tendo com a nossa sexualidade. Tá ficando uma sexualidade esquisita, sem muita diversão, né? Muito vício em masturbação é o que eu tenho ouvido nos meus ciclos de amizades, entre minhas amigas cis, amigas trans, amigos gays, todo mundo. E eu não sei até que ponto isso pode ser saudável. Tragédias e coisas que a gente vai ter que lidar, como você mesma disse, depois. Estou tentando me abster e assistir as coisas que me divertem, ler aquilo que me diverte. Nada muito bom. Tudo “Sessão da Tarde” como eu diria. 

Aqui em casa assistimos “As Panteras” ontem e hoje vamos assistir “As Panteras 2”. 

Que delícia [ri]. É isso. Acho que tá nesse momento. Não tá na hora da gente exigir grandes coisas, grandes feitos, grandes pensamentos, grandes reflexões. Sendo que as grandes reflexões que a gente tem é essa aqui: “acho que agora eu tô percebendo que a quarentena tá me fazendo mal”, sabe? Uma reflexão simples, que faz sentido e acolhe outras pessoas. Acho que é o momento da gente tratar as coisas de forma mais acolhedora e tentar trazer as pessoas para dentro porque tá todo mundo mal.

E no meio dessa geringonça que tá acontecendo, a gente acaba cedendo pra um governo que tá péssimo, que tá só fazendo mal. A gente acaba ignorando esses algozes e indo atrás de pessoas pequenas, peixes pequenos, como diria a minha avó, e tá virando uma grande controvérsia. Estamos ficando doentes e perdendo o foco. E eu não quero perder o foco então vou assistir os “Trapalhões” [ri]. 

Como é ser artista, nesse período com esse governo e com a questão de depender de patrocínios e lives? A gente vê grandes patrocinios para artistas brancos mas, poucos para artistas negros e ainda menos para pessoas trans/travestis. Como isso atravessa você?

Olha, tá sendo um momento bem delicado eu diria. Não tá sendo equânime e nunca foi. Mesmo antes da quarentena nunca foi legal para todo mundo, sempre foi legal para alguns e hoje, com a questão toda de visibilidade na internet isso conta muito. O nosso único ganha pão eu diria [que são] as lives e publicidades, é isso que tá mantendo alguns artistas. E não são todos, porque isso não chega para todos. 

Não são todos que estão com o perfil que eles querem de publicidade e de investimento. É preocupante porque acho que a gente não tem que depender disso, de publicidade, a gente não tem que depender de publicidade. A publicidade tem que andar junto e auxiliar, fazer com que seja mais tranquilo, chamativo, que alce mais voos, mais público, mas, a gente tem que tomar cuidado porque a publicidade quer te conquistar e quer vender e o artista ele quer fazer você pensar e dançar, [pausa] talvez. 

São coisas diferentes no meio disso tudo e acabam se confundindo porque a única coisa que a gente tá tendo no nosso meio de comunicação tá sendo o computador, o telefone, isso aqui [a chamada de vídeo], as redes sociais. Tá sendo muito difícil se desconectar disso aqui também. A gente tem que saber como utilizá-las e conquistar o que a gente precisa para sobreviver. Não porque a gente faça a nossa arte por publicidade, mas porque a gente não sabe fazer outra coisa. Porque a gente ama fazer o que a gente faz, e a gente vai dar um jeito, a gente sempre deu. Os contorcionistas-artistas sempre fizeram várias peripécias para conseguir sobreviver no meio do caos.

Acredito que os artistas no geral não têm acesso a publicidade, não têm acesso a dinheiro e investimento de lives. Eu mesma não fui convidada para nenhuma. Falo de consciência muito limpa que não rolou e, se rolasse, teria que ser por um valor justo e não por menos porque é uma live. As contas continuam chegando da mesma forma, a internet não baixou, não tem como abrir mão do básico para que a gente trabalhe em uma estrutura.

Falando de artistas pretos, travestis e trans no geral, o buraco fica muito mais embaixo porque nós somos nichadas. Somos núcleos de artistas, porque quando se coloca nessas caixinhas fica muito mais difícil o acesso, a comunicação e o dinamismo da mídia com a gente: “ah, eu preciso de uma travesti preta para falar sobre isso, uma pessoa assim e assado para aquilo”. A gente vira os fins dos meios e é difícil a gente se locomover no meio disso. 

Tem chamado muita atenção, tem se falado muito sobre, e tudo tem a probabilidade de melhorar, mas tá foda pra todo mundo. Não tá fácil, tá difícil, tá um marasmo pra todo mundo eu acredito. E quando eu falo todo mundo é tirando os artistas e as artistas do mainstream, tirando essas pessoas que tem dinheiro, que fizeram um bom pé de meia e não tão passando nem um tipo de dificuldade, e conseguem colocar na rua clipes gigantescos e cheios de efeitos especiais durante esse período de quarentena e que conseguem pagar um clipe desse, porque você vai ter que fazer pelo menos uns três testes de covid até a gravação. Tudo isso é dinheiro e poderia ser usado de outra forma. Quem não tem dinheiro para isso se vira nos trinta e isso é injusto, eu considero injusto, mas eu não vou saber aqui apontar uma solução.

A solução seria talvez a desigualdade reduzir de algum jeito, o nosso governo mudar, mudar o pensamento do nosso governo, o racismo não existir, a transfobia não existir, a ignorância humana não existir, eu vou até me contradizer no que eu falei. A busca pelo entretenimento tá sendo totalmente vazia, ela não tem contexto e nem todo mundo tá interessado em ouvir algo que tem uma mensagem no fundo. Tudo isso acaba gentrificando a música, centralizando ela em algum lugar, em um ponto e as publicidades já estão localizadas em um ponto, e isso é resultado da nossa sociedade como ela é. Isso só está sendo traduzido para a gente de uma forma mais latente. 

De resto eu espero que a arte consiga sobreviver de alguma forma ainda, e que a gente consiga executar os nossos sonhos e os nossos trabalhos. É difícil mas a gente sempre arranja um jeitinho. As plataformas digitais estão aí, sei que é difícil a gente expandir elas, mas pelo menos elas estão aí. Não estamos mais na era do disco em que poucas pessoas eram selecionadas e não tinham outras condições. Vamos tentar acreditar que é o mínimo que a gente pode fazer nesse momento de depressão global, criar outras perspectivas e acreditar no nosso potencial. Acreditem, acreditem e acreditem. É a única forma da gente conseguir fazer essa volta por cima.

Você acompanha e comenta o BBB nas suas redes sociais. Essa edição pode causar algum efeito nas discussões raciais e nas discussões progressistas em geral? 

Não deveria. Não deveria causar impacto algum. O BBB nunca foi parâmetro para absolutamente nada em questões sociais. Ali não tem estudiosos, cientistas sociais, tem pessoas tendo suas experiências individuais e passando para o coletivo. O BBB é entretenimento de todas as classes e todos os tipos de pessoas. É um entretenimento imenso, que atinge e abrange todo o nosso país. Todo mundo se comove, mas não é parâmetro para definição de absolutamente nada. 

E, se fosse, se o BBB for parâmetro para qualquer luta social, talvez isso justifique o nosso presidente. A culpa vai ser das pessoas que estão colocando o BBB como um estudo antropológico. Eu assisto o programa com o intuito de me divertir, para analisar as pessoas e também rir delas, [para] ver o quanto o ser humano é frágil, dobrável, enganador e enganado também. Tudo isso eu vejo ali dentro e as perspectivas pra mim são essas. 

BBB não é um lugar para a gente analisar lutas, nem nada social. É bobo fazer isso e talvez esteja dando um grande tiro no pé se você estiver fazendo isso porque está deslegitimando todas as lutas de classe, as lutas sociais, as lutas pretas, isso não é parâmetro. Não dá para pegar uma mulher preta e colocar nela a coroa de 56% de uma população, não se faz isso, o nome disso é desonestidade. E se as pessoas quiserem insistir na desonestidade de fato estamos com o presidente certo mas, se elas quiserem rever suas colocações, suas posições, a gente consegue pensar de uma forma mais ampla. 

A classe, a raça e o gênero estão em tudo, mas nem tudo serve para a raça, a classe e o gênero. Não é assim que acontece, não é assim que a banda toca. Tem pessoas que estudaram que pesquisaram durante uma vida para escrever um livro para falar de questões raciais e aí chega um BBB e destrói tudo isso? Acho que o nome disso é desonestidade então não façam isso, quem está lendo isso, que isso é desonesto. Se você tem preguiça de estudar, assuma a sua responsabilidade em ser uma pessoa racista, machista, transfóbica. Assuma que o problema está em você e na sua preguiça de ir até o conhecimento porque o BBB nunca será parâmetro para absolutamente nada.

Falando enquanto mulher lésbica, vi algumas pessoas dizendo que o comportamento da Lumena era um “reflexo da comunidade lésbica” e não é tão simples e tão homogêneo assim. 

A gente sempre vai usar os exemplos, e é outro ponto em que não quero me contradizer  mas, se me contradizer foda-se, porque sou assim também. Tem pontos e pontos, a Lumena é uma mulher preta e lésbica e ela tem as subjetividades dela, e as subjetividades dela estão sendo colocadas como a questão de um grupo e isso é desonesto e só. A questão toda é essa. 

Óbvio que existem problemas e  questões nela que não podem ser negadas. Tanto nela, como na Karol, no Nego Di e até no próprio Lucas, é óbvio. Todo mundo tem problemas, só que o racismo das pessoas chega nessa hora, quando as pessoas começam a interpretar que por ela ser uma mulher negra, vão colocar isso na questão de um grupo todo, que tem todo um contexto e tem militantes sérios, não se faz isso. Precisa analisar o indivíduo e não o coletivo porque o indivíduo é incapaz de representar o coletivo. As pessoas precisam entender isso. 

A gente se emociona e vai no âmago das coisas: “ah, porque isso vai destronar todas as coisas”, se isso acontecer é porque a gente merece o presidente que a gente tem. É o que eu deixo para todo mundo pensar porque não é assim que a banda toca e que as coisas são. Se são é porque as pessoas estavam só esperando esse tipo de erro, cometido em rede nacional e em horário nobre, acontecer para que elas pudessem colocar as suas garras de fora e falar que é tudo chato e desnecessário. 

Recentemente a influencer Ygona faleceu e, apesar das pessoas falarem que apoiavam ela, bem entre aspas, ela sempre estava nesse lugar da chacota, da gozação e tinha a imagem dela ridicularizada, principalmente por pessoas que se dizem aliadas e até pessoas LGBTQIA+. As pessoas, que se dizem progressistas, continuam colocando o corpo de pessoas trans e travestis, principalmente negras e fora dos padrões, nesse lugar de chacota e ridicularização. Como você enxerga essa questão? 

Olha, vou falar da minha experiência visual e do que eu acompanhava, e não só da Ygona. As pessoas têm muita dificuldade em assumir que são transfóbicas. O mundo é transfóbico, o mundo é gordofóbico e o mundo é racista. Partindo desse princípio as pessoas vão sempre escolher os lugares que a gente vai ocupar, elas que vão decidir, como eu disse antes, as caixinhas que a gente coloca as pessoas. Quem detém o poder é quem decide aonde a gente vai aparecer. 

Eu não quero falar abobrinha aqui e não quero falar nada que vai magoar alguém de alguma forma mas, o que percebo como uma travesti também é o seguinte, as pessoas adoram que a gente seja engraçada, que a gente faça o entretenimento de graça para elas, que a gente tenha um palavreado extremamente baixo sempre, que a gente sempre faça as pessoas rirem, sempre seja a chacota. [As pessoas] esperam que a gente sempre esteja no trapézio da internet para elas terem acesso e se divertirem, porque a vida delas deve ser tão triste, tão chata, que elas precisam rir da gente pra conseguir, sei lá, alguma coisa. E a gente vê também nesse momento de risada como um espaço para sobreviver e acaba abraçando ele. 

Assim acontece muitas vezes com mulheres pretas, mulheres gordas, travestis e cisgêneras da mesma forma. É um espaço cruel que as pessoas criam porque não é um espaço humanizador, não é um espaço generoso, acolhedor, afetivo. É um espaço de coisificar, de monstrificar, de circo mesmo – aqueles que faziam com corpos que consideravam estranhos no passado, com o que não faz parte da norma. Tudo isso era risível, era parte de um circo que continua acontecendo na internet e, muitas vezes, a gente é impotente de conseguir identificar e impotente também de conseguir lutar contra e a gente acaba aceitando esse lugar que a maioria nos coloca para sobreviver.

Acredito muito que seja esse o lugar e é uma reflexão que as pessoas cisgêneras e brancas precisam fazer entre elas: “até onde eu posso rir, o que é risível e o que não é. o que é comprometedor, racista, transfóbico e gordofóbico”. É uma reflexão que as pessoas têm que fazer.

Me incomodava muito com as pessoas rindo da Ygona. Sempre me incomodei, sempre achei escroto, sempre achei estranho, nunca achei legal, sempre via uma maldade nas pessoas e isso me dói. Tive essa sensação tanto da notícia que ela estava doente quanto da notícia sobre o falecimento dela. O quanto vale um corpo para as pessoas? As pessoas acham que elas estão ajudando ou será que é maldade mesmo? Sempre penso nisso porque a ajuda, quando ela não é solicitada, pode ser uma forma de atrapalhar o processo das pessoas. 

Tem várias formas que a gente observa essas entregas de pessoas que fazem e acontecem na internet que, às vezes, me deixam muito em dúvida sobre o teor de quem tem assistido muito mais do que de quem tá mostrando. Quem tá mostrando tá mostrando o que tem, tá mostrando o que é e o que pode mas e quem tá vendo? Quem tá alimentando? Quem tá rindo? Quem tá curtindo o circo de horror do momento? Quem são essas pessoas, sabe? Penso em Big Brother também. Penso nessa coisa que sempre teve da gente gostar de assistir a morte das pessoas, por que eu acho que é isso. Uma morte assistida foi o que aconteceu com a Ygona, do início ao fim e é isso.

Também não tenho uma resposta porque depende de um mundo que  não domino que é o mundo cisgênero branco, o mundo que tem dinheiro de alguma forma. É difícil para mim falar sobre esse assunto porque é um assunto delicado e doloroso, que mexe com muita coisa não só em mim mas em muitas outras meninas. É uma percepção que a gente já tem. A própria Linn da Quebrada tem várias músicas que falam sobre isso: “eu tô bonita ou tô engraçada?”. O que é ser engraçada para as pessoas que não são travestis, que não fazem parte da mesma realidade que nós? Até onde hoje pode ir a sua risada? Até onde você tem o direito de rir e até onde você tem o direito de guardar a sua risada e revisitar ela de alguma forma e pensar: “porque eu estou rindo disso? isso é realmente risível? ou eu estou só botando para fora todo o meu preconceito, o meu racismo e a minha transfobia?”. 

É uma grande pena e uma grande perda também. A Ygona era muito nova e inexperiente ainda da maldade das pessoas. Acredito que tinha muita coisa para ela aprender no caminho dela, acho que ela poderia sim se tornar uma influencer digital, com o tempo e com os aprendizados da vida. É uma perda imensa e eu espero que as pessoas reflitam sobre isso porque foi uma morte assistida terrível. É terrível você acompanhar o início de uma pessoa, ver ela numa série de problemáticas e dando crescimento para que ela se expanda e você continue consumindo e rindo. Chega num momento que aquilo fica devastador, porque a pessoa percebe que é aquilo que os outros querem ver e continua oferecendo até o momento que isso se perde e se transforma em morte. E as pessoas não se culpam, não se revisitam. 

Passando para um conteúdo mais leve, como foi a ideia para o reality apenas com mulheres trans e travestis? Você já planejou algo mais concreto sobre? 

Então eu tenho um nome, não vou falar ainda mas, já tenho nome. Já tinha pensado em fazer um reality, em participar ativamente por trás fazendo com que as coisas funcionem de uma forma informativa, divertida, principalmente, e não transfóbica em nenhum aspecto. Essa era uma preocupação minha, porque via isso acontecer em todos os realitys presentes com pessoas trans, todos. 

Todos porque não tem uma gestão, uma direção, um olhar ou um roteiro de pessoas trans. O que eu pensei em fazer não é nada inovador, não sou uma grande inovadora das coisas mas, eu quero sim que sejam travestis, que a gente não precise higienizar nenhum termo para conseguir acessar esse lugar e que a gente possa compartilhar as nossas experiências, as nossas piadas – que todo mundo se apropria. E [os telespectadores] verem isso acontecendo em tempo real. Como é que cada coisa se encaixa. 

[Mostrar a gente] conversando sobre as nossas vidas, nossos cotidianos, como a gente se veste, como cada coisa se encaixa, nossas descobertas do corpo, nossas descobertas da mente – sem que isso seja cobrado, sem que seja uma pergunta. É uma espécie de observatório, isso pra mim sim seria um estudo, para pessoas cisgêneras [ri]. Para elas se atentarem e verem a diversidade da gente, perceberem que não somos iguais, que temos nossas milhares de diferenças. [Verem] que a gente também pode ter os nossos atritos, que a gente tem nossas experiências, umas são mais doces e outras mais amargas, entendeu? Tudo isso pode ser colocado de uma forma que as pessoas possam enxergar e elas vão conseguir rir também. 

Isso partiu muito dessa ideia, dessa necessidade mesmo, construir uma equipe e ter verba suficiente para isso, porque as meninas tem que ser premiadas e pagas, e eu acho que não tem que ser nada baixo orçamento. Eu detesto tudo que é baixo orçamento. Eu não tenho cara de baixo orçamento [ri]. Não gosto e não é assim que a gente tem que trabalhar. Até porque, se as marcas estão se propondo a ser pró LGBT+, pró travestis, pró mulheres trans e pessoas trans no geral, incluindo homens trans, acredito que a gente tenha investimento suficiente para um grande reality, para um Netflix, para um Prime. Alguma coisa legal, interessante, com conteúdo, com entretenimento, para as pessoas acessarem essa nossa humanidade, que elas tanto querem ignorar, porque é muito esforço para ignorar. 

Partiu muito desse lugar que a gente sempre tá sendo colocada para falar de coisas tristes da nossa vida, sabe? Sempre partindo desse lado e acho que isso vai ser falado naturalmente durante a convivência delas e vai ser muito natural e nem vai ser forçado por uma pessoa cisgênera, tirando dela a resposta que ela quer ouvir. Vai ser isso. Muito engraçado. Seriam muitas pessoas anônimas e pessoas que a gente já conhece. Acho que seria incrível e poderia ter provas incríveis. Uma convivência numa casa bonita, grande e confortável, com festas. Acho que seria incrível. Preciso muito de patrocínio! Tiro o projeto do chão amanhã! [ri]

Então minha última pergunta é, se você pudesse deixar um recado para possíveis patrocinadores, o que você diria?

Eu diria que quero ser uma espécie de Boninho com Anitta, eu quero ser Bonitta! 

E quero ter apoio e patrocínio. Sou uma pessoa capaz de produzir tudo isso. Tenho uma equipe que funciona muito bem, que vai saber ser os meus braços nese polvo. Vai ser um entretenimento que, se você de fato não compactua com a transfobia, vai patrocinar, porque não vai ter. A nossa edição vai ser chique. Não vamos humilhar ninguém, não vai ter escárnio do lado de fora. 

É essa necessidade de humanizar a gente no meio de tudo isso, de humanizar as nossas coletividades, sabe? Das pessoas entenderem porque uma quer muito ter a outra perto e ter todas elas perto uma da outra e construir outros problemas, que não sejam problemas cisgêneros. Problemas com transfobia, com racismo, problemas que as pessoas nem sabem que a gente tem, isso sim vai ser rico. Ver que ali não vai ter uma barreira de transfobia, talvez tenha mas veio com um corpo que foi mal informado, um corpo que foi doutrinado pelos espaços onde caminhou. 

É uma pira muito investível. Se vocês estão interessados, por favor entrem em contato com as minhas redes sociais para esse investimento. Quero bem uma Netflix, uma Globoplay, uma Amazon Prime, uma Disney. Qualquer uma dessas tenho certeza que vai realizar um trabalho rico, divertido e muito necessário. Me ajudem a ser uma mistura de Boninho com  Anitta, me ajudem a ser Bonitta! 

Taubateana e Jornalista.

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