Gabriela Loran: “Eu me vejo ganhando um Oscar”

Desde criança Gabriela queria ser artista. 

Na infância ela sempre se identificou com o lúdico, com a arte de inventar personagens. Dona de uma imaginação muito fértil, que ela cultiva até hoje, “porque a imaginação é o ouro que a gente tem, mas acaba se afastando conforme vamos crescendo e vendo como o mundo é” ela cresceu vendo artistas mirins tomarem conta da televisão em casa. 

“Eu via as crianças indo no Raul Gil e achava incrível. Eu também queria poder mostrar meus talentos, meus dons, mas, a gente tinha uma condição muito difícil. Pedia para a minha mãe me botar no teatro, aula de música, só que não podia porque a gente não tinha verba”, conta a atriz por chamada de vídeo em entrevista para a Casa 1. 

“Fui crescendo com esse incômodo e na escola e na igreja participava do teatro, mas o que eu queria era realmente viver aquele ofício”.

Quando ela tinha 18 anos, entrou em um curso de Segurança do Trabalho para se preparar para a faculdade de Engenharia Ambiental. Porém, o seu curso dos sonhos estava na CAL – Casa das Artes das Laranjeiras, centro de treinamento de mão de obra artística para diversos setores das artes cênicas no Rio de Janeiro. 

“As aulas eram muito caras e eu não tinha condição de pagar com os 1300 reais que recebia na farmácia. Me formei em Segurança do Trabalho e na época que começaria Engenharia Ambiental, abriu o vestibular da CAL que, querendo ou não, é uma faculdade elitista, bem cara”, conta. 

“Fiz o FIES (programa de financiamento estudantil) e consegui bolsa de 100%, pagava 50 reais que era só a taxa do programa e consegui fazer a faculdade inteira. Minha tia me ajudou e eu deixei meu emprego e tudo para trás. Meus pais juntaram o pouquinho do dinheiro que eles tinham para que eu pudesse alugar um quarto na casa de uma família no Rio de Janeiro”. 

Assim, a atriz saiu de São Gonçalo, subúrbio do Rio de Janeiro, e se mudou para a capital para concluir seus estudos em artes cênicas.

Experiência nas telas 

Em 2018, Gabriela  entrou no ar na televisão pela primeira vez para fazer a coreógrafa Priscila em “Malhação Vidas Brasileiras”. Ela foi a primeira atriz trans na série. 

“Eu já tinha feito cinema, em uma participação como elenco de apoio, mas TV é completamente diferente do teatro e do cinema. No teatro, se a peça durar dois anos, você vive intensamente dois anos daquele personagem no palco. No cinema você vive isso e na TV também, mas são muitos fatores externos. Por exemplo, se vazar som [durante a gravação], tenho que refazer a cena. Você vai se desenvolvendo para saber trabalhar neste meio para não se desconectar do personagem”. 

“A Malhação foi incrível porque foi minha primeira oportunidade, que nem foi uma grande oportunidade porque foi só uma participação, mas fui a primeira atriz trans a viver uma personagem trans então foi grandioso”. 

A participação abriu muitas portas para a atriz, que antes era convidada para diversos projetos, mas não recebia cachê. Depois da telenovela, ela conseguiu alcançar trabalhos remunerados, um divisor de águas na sua vida. 

Depois de quatro anos, a mesma diretora de Malhação, Natália Grimberg, a convidou para participar de “Cara e Coragem”, a próxima novela das 7 da emissora, como Luana. 

“Desde que fiz Malhação eu trabalhei muito, não parei de trabalhar como atriz, só que fiz muitos trabalhos que ainda não saíram. Fiz “Perdidos” no Canal Brasil, “Anjo Loiro com Sangue no Cabelo”, fui protagonista de um filme internacional que ainda não saiu.. Só que na televisão já faz um tempo desde meu último trabalho”.

Para ela, a projeção que o trabalho na grade diária dá  é muito boa porque transfere o trabalho do artista para fora da tela. Quando fez Malhação ela recebeu muitos comentários de ódio em suas páginas nas redes sociais. Por outro lado, ela também percebeu que seu trabalho chegou em pessoas que genuinamente querem saber mais sobre a causa trans. 

“Eu recebi mensagens de mães falando que, através do meu conteúdo, conseguiram respeitar e entender mais as filhas, por isso é importante que não haja transfake. Eu espero que a gente chegue em uma era em que todo mundo possa interpretar tudo, mas hoje em dia não tem como porque o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e muito desse ódio vem da falta de informação”. 

“O transfake é quando um ator cis interpreta uma pessoa trans e aí, aquela senhorinha que está vendo a novela ou filme, que se sente interessada pela história daquela personagem, ela pesquisa (o ator ou atriz) e encontra uma pessoa que não é trans o debate acaba ali. Quando eu estava vivendo aquela personagem, quando as pessoas iam me pesquisar na internet e viam todo o trabalho que eu tinha na internet, era muito maravilhoso”. 

“Atores e atrizes trans vem galgando bons espaços e as pessoas, diretores querem ajudar, só que é muito difícil você ajudar sem dominar o assunto. Não é só contratar uma pessoa trans para ser atriz de novela. É importante ter uma roteirista trans, ela já vai saber desenvolver uma personagem trans e muitas vezes sem precisar passar pela dor, porque nós não somos só dor também. Eu quero fazer uma personagem que herde muito dinheiro de um pai que ela não sabia que tinha. Eu quero também viver uma personagem que esteja vivendo um relacionamento abusivo. É preciso nos dar mais protagonismo também”. 

“Eu consigo me imaginar ganhando um Oscar, sendo indicada ao Emmy, mas eu não vou ser indicada ao Oscar porque eu ainda não tenho uma personagem para mim. Não foi criada essa personagem ainda”. Em 2016, o ator Eddie Redmayne, protagonista do filme “A Garota Dinamarquesa”, foi indicado ao Oscar. Em entrevista recente, ele disse que hoje não aceitaria o papel.

“Sinto que a gente [mulheres trans], ainda tá muito limitada na dramaturgia. Eu tenho uma carga dramaturgica enorme, mas eu não posso mostrar porque meus personagens não permitem isso. As personagens são sempre a amiga de fulana, madrinha, secretária e eu quero mais. Eu não, nós queremos mais”, desabafa.

“Não quero ficar refém”

Apesar de ser dona de um perfil com bom alcance – no Instagram ela conta com mais de 330 mil seguidores, sua relação com as redes sociais é ambivalente. Gabriela entende a importância de seus números nas redes sociais, mas ao mesmo tempo não se deixa deslumbrar e entende que é um ambiente no qual é preciso ter cuidado. 

“O algoritmo quer transformar a gente. Não entende que a gente é humano, entende que a gente é máquina e demanda muita postagem senão para de entregar o conteúdo. Eu comecei a levar de uma forma que era mais saudável para mim. Não quero ficar refém de algoritmos. Já entendi o que entrega, mas não quero falar sobre dor o tempo inteiro”. 

Em um país em que o cenário tido como “comum” para pessoas trans é a expulsão de casa, Gabriela rompe esse padrão e exibe no perfil todo o carinho que recebe da sua família. 

“É importante para mostrar que existe esperança. A maior parte das pessoas que me seguem são pessoas cis. Talvez quando eu mostro minha família, isso vire a chave em alguém que comece a respeitar mais a filha. Poucas pessoas são humanizadas”.

@gabrielaloran

O deboche é livre e cheio de amor ✨💕🍀 #trans travesti

♬ som original – Gabriela Loran

“Eu tenho 300 mil seguidores, que eu amo, mas porque será que eu não tenho um milhão como pessoas cis que viralizam e não tem conteúdo nenhum. O retrato disso é o preconceito e a resposta é a violência. Estar na internet é importante e é importante mostrar que eu tenho uma família que me respeita e me vê como ser humano”.

“Quando falamos de pessoas trans os direitos caminham devagar. Teve recentemente a adaptação da Lei Maria da Penha e as pessoas estão comentando com raiva esse direito. Esse direito que veio porque a menina foi ameaçada pelo pai e lutou pelo direito à vida. Estamos lutando pelo direito à vida que muitas vezes é negado”. 

Agora, Gabriela está cursando sua segunda graduação: psicologia. 

“O que me construiu enquanto mulher nesse processo de transição foi o apoio da minha família nisso tudo e, acompanhando minhas amigas e outras mulheres trans na internet, [percebi que] quando elas foram buscar ajuda na psicologia elas saiam mais assustadas do que entraram”.

“Nesse período de pandemia quem cuida da saúde mental de pessoas trans porque eu não quero entrar em um consultório de um psicólogo e querer ser convertida, isso é contra a lei e contra o conselho de psicologia, mas tem gente que vende este discurso. Esse desejo veio daí, quero ter meu consultório, quero me formar, quero trabalhar com pessoas trans e suas famílias. Quero que as pessoas tenham o que eu tive. O preconceito e a ignorância às vezes é maior que o amor. Quero que isso venha para fora através da minha vivência”.

Ela garante que essa mudança de área não é permanente. 

“Quero continuar trabalhando como atriz, mas esse caminho é muito incerto. Às vezes você tá ganhando rios de dinheiro trabalhando mas meses depois você tá sem um centavo porque não foi chamada para nada. Hoje minha fonte de renda é a internet, mas não quero ficar refém. Por isso estou buscando um trabalho que goste”.  

Foto de capa: Divulgação/Arquivo pessoal

Ficção científica LGBT+: conheça “Órbita de Inverno”

Lançado no Brasil pela Editora Suma, “Órbita de Inverno” é um épico espacial repleto de intrigas políticas interplanetárias, de romance e de personagens inesquecíveis.

Escrito por Everina Maxwell e traduzido por Vitor Martins, o livro conta a história do Príncipe Kiem que é intimado a se casar com o conde Jainan, viúvo de um parente de Kien, para garantir a paz entre os países Thea e Iskat.

“Traduzir ‘Órbita de inverno’ foi uma experiência incrível! Essa foi minha primeira vez traduzindo ficção científica, e precisei encarar muitos desafios típicos do gênero (nomes de planetas e artefatos inventados, por exemplo). Mas a história é tão imersiva e intensa que não dava vontade de parar. O relacionamento do Kiem com o Jainan se desdobra nos detalhes e trazer essas sutilezas para a nossa língua foi um trabalho muito divertido. O livro também tem uma trama de intriga política muito bem desenvolvida e cheia de reviravoltas e, como não li antes de traduzir, fui descobrindo tudo enquanto trabalhava”, diz Vitor.

No livro, Kiem não quer se casar e Jainan também não quer um novo marido, mas só juntos eles poderão enfrentar as intrigas e as maquinações da guerra.

“É uma história perfeita para quem gosta de guerras intergaláticas movidas pela fome de poder, mistérios políticos, personagens com passados sombrios e o tipo de romance que vai crescendo aos pouquinhos até pegar fogo”, elogia o tradutor.

Para Vitor, a ficcção especulativa (científica, fantasia, terror e todos os sub-gêneros onde é possível criar um novo universo), permite que os autores trabalhem com questões sociais importantes.

“Ao criar galáxias e sistemas e planetas completamente novos, é possível escolher o que entra e o que fica de fora quando criamos um comparativo com o nosso mundo real. E acredito que a autora Everina Maxwell foi muito feliz em suas escolhas. “Órbita de inverno” é um livro com protagonismo LGBTQ+, focado num relacionamento romântico entre dois homens que não carrega nenhum fardo ou resquício da nossa vida aqui na Terra. Não existe culpa, julgamento, homofobia nem nada do tipo. Os dois estão envolvidos num casamento arranjado por razões políticas e o fato de serem dois homens nunca chega a ser uma questão porque, neste universo, não é. Porque a autora escolheu que não fosse. Acho que esse tipo de posicionamento dá para os leitores LGBTQ+ um senso de “normalidade” que muitos de nós buscamos (às vezes sem nem perceber). A oportunidade de fugir para uma galáxia onde é possível apenas existir sem o peso que carregamos aqui”.

Biblioteca Convida: Assista a participação de Vitor Martins no programa de entrevistas da Biblioteca Comunitária da Casa 1!

Em “Órbita de inverno” é comum encontrar casais formados por pessoas do mesmo gênero, planetas onde gênero nem existe, comunidades em que o gênero é apresentado socialmente a partir de adereços escolhidos pelas pessoas e não pelo gênero designado no nascimento. Para o escritor, o livro dá uma ideia de como seria viver em uma sociedade livre de preconceito, sem soar como uma utopia, já que outras características humanas horrorosas estão presentes ao longo da história como ganância, corrupção e relacionamentos abusivos.

“Isso dá à história o tom de realidade que, como leitores, nos ajuda a comprar a narrativa, sem colocar em risco pessoas LGBTQ+ e limitar suas existências à parte do sofrimento. Gays podem salvar a galáxia! Pilotar naves! Matar ursos monstruosos cobertos de escamas! E, claro, se apaixonarem no processo”.

 

Vicenta Perrotta e o descarte da indústria têxtil na distopia teatral da coletiva RAINHA KONG

Ativista e artista, Vicenta Perrotta produz roupas não binárias, fazendo um trabalho que chama de “transmutação têxtil”, criando uma peça a partir de uma vestimenta já existente, trabalhando temas como desconstrução, descarte, acúmulo e precaridade.

Uma das coordenadoras do Ateliê TRANSmoras, um espaço de arte e cultura com renda destinada à pessoas transvestigêneres, ela também constrói residências artísticas no ateliê localizado na Moradia Estudantil da Unicamp. Foi nesse espaço que ela conheceu as integrantes da Rainha Kong , uma coletiva teatral de São Paulo que investiga novas linguagens e formas de se pensar o fazer teatral, performático e artístico.

Vicenta é a responsável pela composição do figurino da peça “Sarah e Hagar decidem matar Abraão”, peça que mescla a história contida no livro Gênesis com um futuro distópico, no qual é apresentada uma terra já habitada por bilhões de pessoas e tomada pelo lixo. “Estou adorando trabalhar com isso. Para mim está sendo uma outra experiência acompanhar uma produção de figurino desde o começo da escrita do projeto até a finalização da entrega da peça. É a minha primeira experiência completa, com pesquisa, proposta, ensaio, texto, iluminação… Construindo esse processo imagético mesmo”, conta Perrotta.

Escrita por Tiago Viudes e com direção de Diego Moschkovich, o texto procura retomar a fundação do patriarcado, de acordo com a bíblia. Para isso, a peça retoma o mito de Sarah, Hagar e Abraão, procurando outros ecos deste mito que não estejam sacramentados na perspectiva patriarcal com o qual ele é interpretado até hoje. Mais do que isso, a montagem traz a possibilidade dessa história ser narrada através da encenação de um elenco queer, interessado em romper com a perspectiva patriarcal, no teatro e no mundo.

A multiartista acredita que o convite para esse trabalho surgiu pelo seu histórico com a reconstrução e a quebra do pacto construído pelo capitalismo. “O meu trabalho tem muito a ver com isso, entender o que é descarte, o que é o lixo enquanto estereótipo e quebrar esse processo e reconstruir uma história. A gente pega esses restos, rasga e começa uma nova história”.

Suas criações buscam trazer um outro posicionamento intelectual e social. Uma roupa que não é roupa. Suas vestimentas abrem caminho para produzir um pensamento mais crítico e menos alienado. Essa abordagem conversa diretamente com a proposta do novo espetáculo da coletiva. 

“A moda carrega muito o patriarcado, na imagética. Também é um pilar na construção do estereótipo. O que é moda? Eu acredito muito que eu não faço moda porque moda é esse processo mercadológico, industrializado, autoalienante. Meu trabalho quebra essa indústria, quebra esse processo. Eu proponho algo que desloque as pessoas do que é uma camisa. Quando a camisa tá no pé a gente desloca esse imaginário. Você vai olhar aquilo e aquilo vai te incomodar. Você vai se questionar. Esse é um dos processos mais importantes do que eu faço como trabalho e do que tá sendo proposto no figurino”.

As referências que ela buscou para a peça foram os povos do deserto e uma vontade de “quebrar tudo e contar uma nova história”. Vicenta também tem estudado muito o consumo de moda,  a importância direta desse consumo na construção de estereótipos e sobre descarte e acúmulo. “Também quero [dialogar] com essa questão do texto que é bem acumulado de diálogo, acumulado de informação. Quero falar sobre o acúmulo, de lixão, do Deserto do Atacama que virou o acúmulo do descarte e desse processo do que chamamos de lixo”. 

A peça “Sarah e Hagar decidem matar Abraão” estreia no dia 25/3 para pessoas convidadas e será aberta ao público no dia 26/3, no TUSP. 10% da lotação da sala é reservada gratuitamente para pessoas trans.

“Sarah e Hagar decidem matar Abraão”

A peça mescla a história contida no livro Gênesis com um futuro distópico, no qual é apresentada uma terra já habitada por bilhões de pessoas e tomada pelo lixo. Neste futuro distópico, são apresentadas as figuras de Fátima e Ishká. Ishká é uma senhora infértil, que não consegue gerar filhos para seu marido, Elias. No decorrer da narrativa, Ishká articula, junto de sua serva Fátima, a morte e o desmembramento de Elias, pois é só a partir desta ação que as duas podem aventar a possibilidade de saírem em busca do paraíso. A história de Fátima e Ishká serve, aqui, para tensionar o mito da bíblia a ponto de que a afirmação ‘Sarah e Hagar decidem matar Abraão’ seja possível. 

SERVIÇO 

O QUE? Temporada de Sarah e Hagar decidem matar Abraão

QUANDO? De 26/03 a 17/04

Quintas a sábados às 21h e domingos às 19h 

estreia 25/03 fechada para convidados | temporada a partir de 26/03

ONDE? no Teatro da USP [TUSP] – R. Maria Antônia, 294 – Vila Buarque, São Paulo – SP

QUANTO? R$10,00 | R$5,00 [meia entrada]

10% da lotação da sala é reservada gratuitamente para pessoas trans [sujeito a lotação]

DURAÇÃO: 75 minutos

SOBRE A RAINHA KONG 

Desde 2016, a RAINHA KONG investiga intersecções de diferentes linguagens artísticas a fim de discutir questões LGBTQIAP+ cenicamente. O coletivo, oriundo do curso de Artes Cênicas da Unicamp, se coloca em cena enquanto ato político de resistência, mas também  questionando a construção de novas narrativas – a partir de histórias e corpos até então silenciados – na investigação e formatação de novas linguagens e formas de se pensar o fazer teatral, performático e artístico.

A primeira produção do coletivo, O Bebê de Tarlatana Rosa, reordena o conto homônimo de João do Rio, alocando-o em uma perspectiva queer, confluindo a narrativa do conto com depoimentos biodramáticos des integrantes do elenco. Além disso, a coletiva organizou diversos cursos e oficinas em parceria com diverses artistas e coletivos LGBTQIAP+ como a Casa1, Helena Vieira, Ave Terrena, Ferdinando Martins, Daniel Veiga, etc.

Foto de capa: Carla Carniel

Danny Bond: “Quero cada vez mais furar a bolha”

Hoje, é quase impossível conhecer alguém que não saiba de cabeça um hit do fenômeno Danny Bond. Daniela Barros, a “Rainha do Jacintinho”, está presente em quase todos os espaços. Desde de palcos de festivais, festas de carnaval e com participações em grandes hits do momento.  

Daniela se mudou de Maceió para São Paulo durante a pandemia, para morar com Kaya Conky sua amiga de longa data. “Minha amizade com a Kaya é de muito tempo, a mudança pra cá foi uma ideia dela, e como ela mesmo fala com o passar do tempo a gente se aproxima cada vez mais, a gente não consegue ficar sem se ver. Somos muito ligadas, e uma equilibra a outra nessa união.”

A alagoana considerou a mudança um movimento arriscado, e apesar da saudade que sente do ambiente familiar, ressalta que mudar de endereço foi um passo importante para sua carreira. 

“Esse ano estou fazendo shows maiores, dividindo palco com artistas grandes, é uma coisa que eu sempre almejei e para mim está sendo muito bom, estou muito feliz e realizada. É bem agitado mas estou conseguindo conciliar tudo”, diz sobre a agenda de shows lotada com a volta dos eventos presenciais. 

Com uma carreira curta, mas recheada de eventos, a cantora relembra uma das suas lembranças favoritas em cima do palco, durante a participação no bloco da Pabllo Vittar em São Paulo “com todo mundo gritando meu nome e cantando minhas músicas foi bem surreal”. 

Não é segredo para ninguém que Nicki Minaj e Doja Cat são suas grandes inspirações, mas Danny é uma pessoa bem eclética. Suas playlist passeiam entre diferentes gêneros musicais do pop ao forró e ao pós punk: a banda de russa Molchat Doma é uma inspiração para seu novo álbum, que também terá muita influência nordestina. “Tem bastante sentimento e história nesse álbum, ele é bem intimista”, revela por email. “Também gosto de trabalhar com outros públicos e quero cada vez mais furar a bolha”.

Nesse segundo álbum, a cantora irá mostrar uma nova Danny bond, “uma Danny bond mais profissional, mais detalhista, com músicas que falam de amor, sofrência, mas ainda tem a pitada de safadeza que eu sempre coloco”.

Seus desejos profissionais ainda não realizados, além de um featuring com a artista que auxiliou no sucesso da rapper brasileira Nicki Minaj, são participações musicais com as grandes artistas do pop nacional Gloria Groove, Pabllo Vittar, Luísa Sonza e Anitta. 

“Sempre estivemos aqui e sempre vamos estar”

Com a projeção nacional, o número de haters também aumentou. “Eu sabia que uma hora ou outra isso chegaria. Não ligo para quem critica minhas músicas falando que são pesadas. Se eu consigo realizar meus sonhos e alcanço minhas conquistas, isso não me afeta. Ainda mais porque vem de pessoas que não me consomem”.

Para realizar seus projetos ela busca pessoas invisibilizadas na cena musical, como pessoas LGBTQIA+ “ […] Estamos aqui, sempre estivemos e sempre vamos estar,ocupando todos os espaços seja no underground ou no mainstream”. 

Foto de capa: Divulgação/ Assessoria

Em “Dotadas”, dupla reflete sobre objetificação, transfobia e episódios de suas trajetórias

Após o sucesso do single “Travequeiro” — que alcançou mais de 50 mil acessos entre cliques no Spotify e no Youtube — Isma e Vita retornam com “Dotadas”. Lançado em setembro deste ano, o álbum conta com 10 faixas que passeiam entre o funk, o trap, o dancehouse e até em ritmo de louvores evangélicos. 

“Desde o ano passado a gente já vinha desenhando isso. Era primeiramente um EP, e depois da campanha de financiamento coletivo acabou virando um álbum. Refletir sobre as experiências de duas pessoas em 4 ou 5 músicas poderia deixar muita coisa de fora. Mesmo com o financiamento coletivo não atingindo a meta pro EP, a gente fez a metade da meta virar um álbum de 10 músicas”, diz Isma. 

“O ‘Dotadas’ fala muito da Vitinha e da Isminha. Além de trabalhar com o processo de reciclagem de outros espaços e experimentos. Eu sou dramaturga, cineasta e roteirista então tinha muita coisa ali que não era música, era uma dramaturgia, uma poesia ou um pedaço de roteiro de algum filme e a gente trouxe isso pra música. Nosso multitalento, multilinguagem, multi dotes pra ressignificar nossas experiências e o que nos tornou Vita e Isma”, complementa Vita. 

Mesmo com o sucesso do single, a dupla se sentia insegura em relação ao álbum. Um sentimento que mudou depois de toda a  recepção da obra. “Eu vi minhas amigas conversando e cantando as músicas do álbum. Músicas que estavam só no plano das ideias, depois no nosso bloco de notas, que a gente estruturou e colocou em um beat. Eu não quero mais sair do palco, eu quero estar em todos os lugares. Essa insegurança transmutou com o apoio das nossas amigas. Eu confio muito mais na gente hoje”, reflete Vita. 

“Tô botando mais fé que esse negócio vai render. Tô mais confiante no trabalho e esse projeto tá me salvando nesse momento. É o que tem me distraído e me dado esperança para o futuro”, ressalta Isma. 

Apesar do receio sobre a entrega do álbum, as “Irmãs de Pau”  já começaram a carreira com um feat de peso: Jup do Bairro. 

“A Jup é mais que uma referência, ela é incapaz de ser representada. Eu não conseguiria falar o que foi esse encontro. Nenhuma palavra seria capaz de descrever o que foi o encontro de Jup de Paus e Irmãs do Bairro”, diz Vita “Uma coisa muito interessante da Jup é que a gente vê muitas artistas que chegam em um patamar de várias instituições e vários circuitos e acabam esquecendo, ou sendo engolidas por esse mercado, e não consegue olhar e apoiar quem estava ali desde o começo. A Jup faz um trabalho do tempo espiralado. É o tempo sem juízo”, declara Vita.

“Ela teve a humildade de colaborar com a gente que tá começando. Eu achei muito genuíno da parte dela envolver o trabalho dela com o nosso”, complementa Isma. 

E Vita finaliza: “A gente conseguiu aprender muito vendo ela cantar e conduzir aquele rolê. Foi aulas, aulas, aulas e aulas. Nós duas somos professoras também e entendemos como esse processo de educação se forma para além da academia, sabe? A gente estava em um processo formativo nesse encontro que foi uma fusão de gerações, de experiências e de um axé muito forte que resultou em ‘Hermanas’ e que não acaba em ‘Hermanas’”.  

Kulto

Outra participação esperada no álbum foi de Alice Guél na faixa “Kulto”, que finaliza o álbum. A faixa fala sobre experiências na igreja evangélica das duas com um ritmo característico dos louvores evangélicos. 

“Eu passei 15 anos da minha vida sendo obrigada a ir pra igreja, pros cultos, a frequentar e a participar dos grupos de uma forma forçada e aí acabou que gerou alguns traumas. Uma das críticas que trazemos para o nosso trabalho é de não abandonar o passado porque é uma coisa que pode fazer muito mal na verdade. A gente não pode fingir que é outra pessoa, é outra fase, outro momento, mas não é outra pessoa que tá ali”, relata Isma. “A música é linda e é uma das músicas que eu mais gosto do álbum. Sou muito funkeira, amo todas as faixas, mas essa música quando ela chega é um momento”. 

Para Vita, esse processo de não negar o passado, nem o presente, também faz parte do processo de criação da música. “A gente não pode ignorar e eu acho que fazer música é um pouco de abrir mão, sabe? Abrir mão da ideia da música e a gente realizou muito isso nesse processo. As experiências não cabiam da forma que a gente tava produzindo então a gente começou a abandonar técnicas e rituais. Foi um processo dinâmico e não muito linear”.

Passando por todos esses processos e relatando seus momentos em faixas, não seria diferente se elas respondessem que suas referências são outras pessoas que não elas. 

“A gente fez um álbum falando sobre nós, sobre a nossa experiência. A gente inclusive crítica esse movimento de representatividade porque é como se fosse uma voz querendo falar por todas e nós somos tantas, em tantas formas, que a gente não dá conta de falar de todas essas experiências e de suprir as expectativas que criam sobre a gente e sobre o nosso trabalho”, diz Vita “Não vamos adoecer. As nossas referências somos nós mesmas, as pessoas que estavam próximas, nossa família e sobretudo nosso passado que ainda é um fantasma que percorre as nossas casas”. 

Leia também: “Irmãs de Pau: ‘Nós não somos irmãs de paz'”

Irmandade 

As duas se conheceram em 2016, durante a ocupação secundarista, se aproximaram muito e tiveram uma convivência de irmãs, que foi parcialmente rompida por um distanciamento obrigatório quando passaram na faculdade. Isma foi para Uberlândia e Vita para Araraquara. Agora, com o projeto, elas estão ainda mais próximas do que já foram.  

“Nunca tive dúvidas que tinha uma irmandade muito grande aqui. Sempre senti ela como uma irmã mesmo de poder contar com tudo, para o que der e vier. E agora a gente voltou a estar muito juntas, mas [precisamos] conciliar o tempo do projeto e o tempo da nossa amizade. Antes mesmo de entrar nessa vídeo chamada pra entrevista eu tava em uma ligação só com ela, desabafando.  É muito importante isso pra gente não deixar virar uma coisa só de trabalho, uma relação de mercado”, explica Isma. 

“A gente era de um grupo de amizades que tinham muitos gays. a gente não sabia nomear a nossa experiência e o que a gente era mas quando a gente se olhou ficou aquele sentimento de ‘porra, tem outra de mim aqui, eu sei onde posso me apoiar e contar as minhas coisas que as minhas outras amizades não vão entender’. A gente demorou um tempo pra fazer um projeto juntas, a Isma sempre me ajudou nos meus projetos individuais e eu sempre ajudei nos dela, mas antes a gente nunca tinha trabalhado juntas. Acho que demorou um tempo mas foi o tempo necessário. Esse foi o momento ideal. Se a gente tivesse feito uma coisa lá atrás não teria sido a potência que foi e está sendo esse”, explica Vita. 

E completa “A gente é irmã antes de ser irmãs de pau. A gente aprendeu a falar com outros sentidos. Eu olho pra Isma e dependendo de como tá o corpo dela eu já sei que ela não tá gostando. A gente conseguiu trabalhar outros sentidos, a gente se comunica pela intuição também, eu acho que isso foi um axé, saber se comunicar não só pela palavra. Eu acho que estar juntas tem sido a nossa maior arma e armadilha, estar juntas e falando sobre vida, sobretudo”. 

Crédito: Lucas Silveira

Nos planos para o futuro, para uma era pós- dotadas, Vita diz que elas desejam continuar sendo Isma e Vita em todos os lugares que ocupam, festas, faculdade, secretária de cultura, nas ruas e principalmente dentro de casa, com o apoio mas ainda assim sem a total compreensão dos familiares sobre o que elas estão fazendo “Eu entendo que eles não entendem o que a gente tá fazendo e aonde a gente quer chegar, mas a gente não preza por ser entendidas”. 

“Antigamente eu só podia ser a Vita dentro do banheiro da minha casa, com só uma toalha, que era meu picumã, e hoje em dia posso sair na rua, comprar uma lace, trançar o meu cabelo justamente porque antigamente eu podia imaginar. Quando eu era pequena eu imaginei tanto que se tornou real. Pra mim é esse processo que a gente também tá. Imaginando outros lugares, trabalhando também a impossibilidade”, completa. “Esse álbum fala muito desse lugar de violência, mas  a gente tá falando sobretudo na maioria das músicas sobre afeto. Acho que “Dotadas” é dotadas de muito amor também.  A gente vive essa questão da solidão da mulher negra, da travesti, vive tanto essas questões que colocar em formato de risada é uma forma de ressignificar esse amor romântico. Foi tudo um truque. Um equê. O equê significa truque no pajubá.  A gente viu tantas outras como Linn, Pepita, Jup, Alice, Dellacroix, MC Dricka, Deize Tigrona, MC Carol e todas as outras fazendo e a gente se questionou porque a gente não pode fazer sobre a nossa realidade, sobre a nossa experiência. Esse álbum vem dessa encruzilhada de encontros de experiências”. 

Foto de capa: Lucas Silveira

Mel: “Eu gosto de ter companhias em lugares seguros”

A cantora goiana falou um pouco sobre como tem lidado com a quarentena e como é passar por esse período enquanto artista: “A impressão que eu tenho é que as coisas estão caminhando muito lentamente e, o que eu fiz no semestre passado, que a gente já tava em quarentena, parece que não me serve de nada. Parece que tudo que foi feito ontem já não serve pra hoje e tá tudo tão líquido, que a gente já não sabe, tá escorrendo por todos os lados”. 

Também discutimos sobre a forma que corpos trans e travestis são tratados na internet e sobre a sua vontade de comandar a produção de um reality show: “O que eu pensei em fazer não é nada inovador, não sou uma grande inovadora das coisas mas, eu quero sim que sejam travestis, que a gente não precise higienizar nenhum termo para conseguir acessar esse lugar e que a gente possa compartilhar as nossas experiências […]”. 

Mel também está se preparando para a gravação do clipe de “Sou Como eu Quiser”, seu novo single em parceria com Patricktor4 e também compartilhou como é seu processo criativo em carreira solo.  

Como está sendo sua quarentena e o que você anda fazendo nesses dias?

Bom, nesses dias de quarentena tenho realizado alguns trabalhos. Estou lançando uma marca, se chama “Insensata”, que é uma parada que eu sempre me identifiquei muito. É artesanato de velas, sabonetes, energéticos, utensílios de decoração feitos em cerâmica em parceria com amigos. Fiz música, escrevi texto. Estou escrevendo um livro, finalizando ele já. Logo vamos passar para uma fase de desenhar ele direito, mas ele já está, basicamente, pronto. Lancei clipe e lancei uma música agora. Vou lançar outro clipe em breve, que vou gravar mês que vem, que é da música que lancei por último, em parceria com o Patricktor4. O nome da música é “Sou Como Eu Quiser”.

Tive crise de ansiedade, tive depressão. Comecei a tomar um remedinho para estabilizar meu humor nessa quarentena. Planejei muitas coisas que não deram certo. Consegui realizar alguns trabalhos. Fiquei extremamente “panicada” de sair de casa. Eu fui aquela pessoa que ficou trancafiada dentro de casa até o último momento, só saía de casa para realizar algum trabalho por necessidade. 

Eu tava vendo isso agora, lendo umas coisas sobre quarentena antes da gente começar [a chamada de vídeo], por isso até atrasei um pouquinho. Estava vendo que tem gente percebendo agora que a quarentena bagunçou a cabeça, bagunçou as emoções, né? E que engraçado você me perguntar isso agora. Me vem muitas coisas. Mesmo no meio desse medo e dessa insegurança eu consegui produzir muito, [realizar] alguns sonhos meus que estavam engavetados durante muito tempo e mesmo assim, te dando essa entrevista, olhando pra você agora, fico pensando “gente, parece que não fiz nada pelo meu país” [ri]. 

A impressão que eu tenho é que as coisas estão caminhando muito lentamente e, o que eu fiz no semestre passado, que a gente já tava em quarentena, parece que não me serve de nada. Parece que tudo que foi feito ontem já não serve pra hoje e tá tudo tão líquido, que a gente já não sabe, tá escorrendo por todos os lados. Estou tentando pesquisar e entender aquilo que eu mais gosto, tentando dar atenção para aquilo que é importante para mim, que tem significado para mim de alguma forma, e tem sido um momento muito complicado. Apesar de eu considerar poucas realizações, se fossem em dias comuns, talvez seriam mais, mas a gente nunca vai saber. Eu tenho me centrado cada dia mais. Respirado muito fundo apesar da maluquice toda.  

Já tem alguns estudos sobre como a nossa percepção de tempo ficou bagunçada e afetada, mas a gente só vai entender todo o impacto na saúde mental bem mais pra frente. 

A sensação que eu tenho é que a gente vai ficar com uma leve ansiedade, uma leve fobia social. Acho que a gente não vai querer ir para o centro de uma boate com 450 mil pessoas. A gente não vai querer esse tanto de gente em volta. 

Eu não sei como vai ser a dinâmica de aglomerar. A gente vai querer por que é do ser humano, faz parte do mamífero. Se hoje todo mundo tivesse bem e com as vacinas, como seria? Eu não sei. Acho que ia sair a passos de formiga desse lugar. 

Não ia ser aquela parada de “hoje tem happy hour com os amigos, amanhã tenho que acordar cedo para entregar um trabalho e a tarde tenho reunião”, não sei como seria esse translado pela cidade depois que tudo isso acabar. Prefiro que as coisas encaminhem no tempo delas para uma estabilidade do que apertar um botão e as coisas voltarem. 

O vídeo da música “A Partir de Hoje” já foi gravado nesse contexto de quarentena e pandemia. Como foi o processo criativo e a execução? 

O ano de 2020 foi um ano que eu considero um ano de pausa e reflexão. Não foi um ano de muitas execuções, parando pra pensar até pela própria música. “A partir de hoje” foi uma música que foi feita no segundo semestre de 2019 e a gente começou a projetar todo um trabalho sequencial que faria sentido depois. E as coisas foram atropeladas pelo coronavírus. E não foi só eu. A maioria dos artistas e dos profissionais em geral se sentiram atropelados por isso e eu não me senti sozinha. Isso me acalentou de alguma forma. 

Falando de “A Partir de Hoje” foi uma música que a gente queria muito criar outra performance para ela durante o roteiro dessa entrega. Festivais, shows, apresentações, participações e tudo que não pôde rolar durante essa quarentena. Ver o público, que eu acho que faz muito parte do cantor, do artista no geral, de ter esse contato, conseguir transmitir as emoções da música e do que você se propõe a fazer, enfim, acabou não acontecendo.

Contudo, porém, todavia, falamos: “não vamos passar o ano em branco, vamos lançar a música sim e a gente continua o trabalho posteriormente e quando as coisas derem uma acalmada a gente vai conseguir realizar as coisas que a gente queria” então, por essa pressão de não poder ficar parada por mais tempo, de não poder virar o ano sem esse lançamento decidimos fazer o clipe.

A ideia foi minha e da minha equipe toda, com todo mundo opinando. Chegamos em uma equipe bem reduzida para trabalhar aqui em casa e gravamos no meu apartamento e entregamos esse clipe como uma forma de dizer: “estamos aqui ainda, estamos produzindo coisas e não desistimos”. Acho que esse é o maior estímulo e a mensagem desse clipe, para mim individualmente, mas, eu espero que também acolha outras pessoas. Vamos fazer o nosso tempo e vamos trazer o que tem que trazer, mas não vamos parar completamente, porque se parar os parafusos afrouxam, aí é difícil. 

No meio da quarentena surgiram relatos de mulheres cis, mulheres trans e pessoas LGBT+ no geral falando que se sentiam mais seguras por estarem dentro de casa e distantes das violências da rua. Você se sentiu mais segura? 

Sim, totalmente. Fiquei num misto de sentimentos, sabe? Eu não realizei muito bem como foi esse sentimento. Foi um sentimento de proteção mas, um sentimento de prisão junto. E eu fiquei pensando muito e refletindo muito sobre as prisões que a gente escolhe, sobre a vida. A gente lidando com o mundo capitalista é isso. A gente tem que escolher onde a gente amarra o nosso jegue.

Eu sou uma pessoa que não gosta de ficar sozinha. Eu gosto de ter companhias em lugares seguros e isso me fez refletir bastante durante a quarentena. Apesar do incômodo com tudo e de toda a preocupação com o bem estar do próximo, da família, dos amigos, dos entes queridos, das pessoas que a gente gosta e das pessoas que a gente não gosta, mas a gente não quer que morra. Apesar de tudo isso, existiu um conforto em poder parar. Um conforto em entender o que tava acontecendo. 

Pensando que as pessoas estavam agora em um lugar que você esteve durante muito tempo da sua vida. Nesse lugar meio que impossibilitado, estranho, inseguro. instável. Isso foi um pensamento que tive. E por muitas vezes me senti egoísta também de pensar que eu não estou me sentindo tão mal por ficar em casa, mas, ao mesmo tempo, isso me trazia outras reflexões sobre outras pessoas que não tenham casa, que estivessem em uma situação de vulnerabilidade e não tivessem o mínimo de conforto, que ainda bem, por conta de toda a minha trajetória, eu consigo ter. Muitos pensamentos aguando essa cabeça. 

Teve esse momento de me sentir segura na minha casa e, não tô sabendo explicar, mas de poder compartilhar esse sentimento com o mundo de alguma forma: “é dessa forma que eu me sinto todos os dias”. Sem tanto acesso, acuada, coagida dentro da minha casa, que é o lugar que eu consigo ter um ambiente seguro de alguma forma. Isso me ocorreu sim e talvez tenha sido a coisa que não me deixou enlouquecer. 

Sua carreira solo é muito rica em referências, o que você tem lido e assistido para alimentar isso? 

Acho que tudo que eu faço é um grande acúmulo, um acúmulo de sentimento, de vivência. Acúmulo de observação, de DNA e espiritualidade. Tudo é um acúmulo que transborda no que eu faço, no que eu escrevo e como eu interajo com o mundo. Acho que a quarentena me espremeu para que isso saísse ainda mais. Todas essas referências já estavam presentes em mim e saíram ainda com mais vontade, talvez por esse ócio que não foi um ócio totalmente, mas um ócio criativo no meu caso.

Fico pensando muito sobre isso porque não consumi grandes coisas nessa quarentena. No início comecei a fazer um curso de crítica de cinema e aí assisti alguns filmes muito bons. Bastante deles. Não me lembro de quase nenhum porque a coisa da memória não sei o que tá acontecendo, mas parece que eu tô flutuando em uma nuvem que às vezes é muito densa e às vezes ela não é nada. Parece um sonho. Essa busca [de referência] eu tô fazendo mais internamente do que nas minhas pesquisas. 

Tudo que tenho feito ultimamente é para tentar me desconectar, tentar não ver, tentar curar alguma coisa ou dar um tempo pra eu conseguir existir e continuar de pé. Não tá fácil assistir jornal, não tá fácil assistir nenhum entretenimento. A gente tira pelo próprio BBB, que a gente vai assistir pra tentar se alienar “propositalmente”, e a gente não consegue porque traz a tona questões muito importantes e muito sérias que estão sendo desgastadas naquele programa, ou seja, estamos fadadas a estar doentes e numa depressão global eu diria. E tudo isso tá me fazendo não buscar muita coisa cabeçuda. 

Não tô afim de entrar em nada que me deixe muito reflexiva, que me faça pensar demais porque já sou uma pessoa que pensa demais. Eu tô assistindo “Crepúsculo”, umas coisas assim. 

Eu tô lendo, ler eu gosto bastante, mas teve um momento que dei uma parada. Estou produzindo muitos textos. Coisas que me doem e as pessoas leem e elas acham muito bonito, mas foi tão dolorido para produzir aquilo, como se fosse uma forma de choro mesmo só que em palavras, aí  eu falei comigo mesma: “ai, que chata, que mulher chata, chega, já tá todo mundo sofrendo também” e comecei a ler Hilda Hilst e tô me divertindo com essa leitura. 

Estou com o livro na cabeceira, é o “Contos de Escárnio”, eu adoro, morro de rir. É um negócio que trabalha nossa sexualidade e esse momento de quarentena é outro problema que a gente tá tendo com a nossa sexualidade. Tá ficando uma sexualidade esquisita, sem muita diversão, né? Muito vício em masturbação é o que eu tenho ouvido nos meus ciclos de amizades, entre minhas amigas cis, amigas trans, amigos gays, todo mundo. E eu não sei até que ponto isso pode ser saudável. Tragédias e coisas que a gente vai ter que lidar, como você mesma disse, depois. Estou tentando me abster e assistir as coisas que me divertem, ler aquilo que me diverte. Nada muito bom. Tudo “Sessão da Tarde” como eu diria. 

Aqui em casa assistimos “As Panteras” ontem e hoje vamos assistir “As Panteras 2”. 

Que delícia [ri]. É isso. Acho que tá nesse momento. Não tá na hora da gente exigir grandes coisas, grandes feitos, grandes pensamentos, grandes reflexões. Sendo que as grandes reflexões que a gente tem é essa aqui: “acho que agora eu tô percebendo que a quarentena tá me fazendo mal”, sabe? Uma reflexão simples, que faz sentido e acolhe outras pessoas. Acho que é o momento da gente tratar as coisas de forma mais acolhedora e tentar trazer as pessoas para dentro porque tá todo mundo mal.

E no meio dessa geringonça que tá acontecendo, a gente acaba cedendo pra um governo que tá péssimo, que tá só fazendo mal. A gente acaba ignorando esses algozes e indo atrás de pessoas pequenas, peixes pequenos, como diria a minha avó, e tá virando uma grande controvérsia. Estamos ficando doentes e perdendo o foco. E eu não quero perder o foco então vou assistir os “Trapalhões” [ri]. 

Como é ser artista, nesse período com esse governo e com a questão de depender de patrocínios e lives? A gente vê grandes patrocinios para artistas brancos mas, poucos para artistas negros e ainda menos para pessoas trans/travestis. Como isso atravessa você?

Olha, tá sendo um momento bem delicado eu diria. Não tá sendo equânime e nunca foi. Mesmo antes da quarentena nunca foi legal para todo mundo, sempre foi legal para alguns e hoje, com a questão toda de visibilidade na internet isso conta muito. O nosso único ganha pão eu diria [que são] as lives e publicidades, é isso que tá mantendo alguns artistas. E não são todos, porque isso não chega para todos. 

Não são todos que estão com o perfil que eles querem de publicidade e de investimento. É preocupante porque acho que a gente não tem que depender disso, de publicidade, a gente não tem que depender de publicidade. A publicidade tem que andar junto e auxiliar, fazer com que seja mais tranquilo, chamativo, que alce mais voos, mais público, mas, a gente tem que tomar cuidado porque a publicidade quer te conquistar e quer vender e o artista ele quer fazer você pensar e dançar, [pausa] talvez. 

São coisas diferentes no meio disso tudo e acabam se confundindo porque a única coisa que a gente tá tendo no nosso meio de comunicação tá sendo o computador, o telefone, isso aqui [a chamada de vídeo], as redes sociais. Tá sendo muito difícil se desconectar disso aqui também. A gente tem que saber como utilizá-las e conquistar o que a gente precisa para sobreviver. Não porque a gente faça a nossa arte por publicidade, mas porque a gente não sabe fazer outra coisa. Porque a gente ama fazer o que a gente faz, e a gente vai dar um jeito, a gente sempre deu. Os contorcionistas-artistas sempre fizeram várias peripécias para conseguir sobreviver no meio do caos.

Acredito que os artistas no geral não têm acesso a publicidade, não têm acesso a dinheiro e investimento de lives. Eu mesma não fui convidada para nenhuma. Falo de consciência muito limpa que não rolou e, se rolasse, teria que ser por um valor justo e não por menos porque é uma live. As contas continuam chegando da mesma forma, a internet não baixou, não tem como abrir mão do básico para que a gente trabalhe em uma estrutura.

Falando de artistas pretos, travestis e trans no geral, o buraco fica muito mais embaixo porque nós somos nichadas. Somos núcleos de artistas, porque quando se coloca nessas caixinhas fica muito mais difícil o acesso, a comunicação e o dinamismo da mídia com a gente: “ah, eu preciso de uma travesti preta para falar sobre isso, uma pessoa assim e assado para aquilo”. A gente vira os fins dos meios e é difícil a gente se locomover no meio disso. 

Tem chamado muita atenção, tem se falado muito sobre, e tudo tem a probabilidade de melhorar, mas tá foda pra todo mundo. Não tá fácil, tá difícil, tá um marasmo pra todo mundo eu acredito. E quando eu falo todo mundo é tirando os artistas e as artistas do mainstream, tirando essas pessoas que tem dinheiro, que fizeram um bom pé de meia e não tão passando nem um tipo de dificuldade, e conseguem colocar na rua clipes gigantescos e cheios de efeitos especiais durante esse período de quarentena e que conseguem pagar um clipe desse, porque você vai ter que fazer pelo menos uns três testes de covid até a gravação. Tudo isso é dinheiro e poderia ser usado de outra forma. Quem não tem dinheiro para isso se vira nos trinta e isso é injusto, eu considero injusto, mas eu não vou saber aqui apontar uma solução.

A solução seria talvez a desigualdade reduzir de algum jeito, o nosso governo mudar, mudar o pensamento do nosso governo, o racismo não existir, a transfobia não existir, a ignorância humana não existir, eu vou até me contradizer no que eu falei. A busca pelo entretenimento tá sendo totalmente vazia, ela não tem contexto e nem todo mundo tá interessado em ouvir algo que tem uma mensagem no fundo. Tudo isso acaba gentrificando a música, centralizando ela em algum lugar, em um ponto e as publicidades já estão localizadas em um ponto, e isso é resultado da nossa sociedade como ela é. Isso só está sendo traduzido para a gente de uma forma mais latente. 

De resto eu espero que a arte consiga sobreviver de alguma forma ainda, e que a gente consiga executar os nossos sonhos e os nossos trabalhos. É difícil mas a gente sempre arranja um jeitinho. As plataformas digitais estão aí, sei que é difícil a gente expandir elas, mas pelo menos elas estão aí. Não estamos mais na era do disco em que poucas pessoas eram selecionadas e não tinham outras condições. Vamos tentar acreditar que é o mínimo que a gente pode fazer nesse momento de depressão global, criar outras perspectivas e acreditar no nosso potencial. Acreditem, acreditem e acreditem. É a única forma da gente conseguir fazer essa volta por cima.

Você acompanha e comenta o BBB nas suas redes sociais. Essa edição pode causar algum efeito nas discussões raciais e nas discussões progressistas em geral? 

Não deveria. Não deveria causar impacto algum. O BBB nunca foi parâmetro para absolutamente nada em questões sociais. Ali não tem estudiosos, cientistas sociais, tem pessoas tendo suas experiências individuais e passando para o coletivo. O BBB é entretenimento de todas as classes e todos os tipos de pessoas. É um entretenimento imenso, que atinge e abrange todo o nosso país. Todo mundo se comove, mas não é parâmetro para definição de absolutamente nada. 

E, se fosse, se o BBB for parâmetro para qualquer luta social, talvez isso justifique o nosso presidente. A culpa vai ser das pessoas que estão colocando o BBB como um estudo antropológico. Eu assisto o programa com o intuito de me divertir, para analisar as pessoas e também rir delas, [para] ver o quanto o ser humano é frágil, dobrável, enganador e enganado também. Tudo isso eu vejo ali dentro e as perspectivas pra mim são essas. 

BBB não é um lugar para a gente analisar lutas, nem nada social. É bobo fazer isso e talvez esteja dando um grande tiro no pé se você estiver fazendo isso porque está deslegitimando todas as lutas de classe, as lutas sociais, as lutas pretas, isso não é parâmetro. Não dá para pegar uma mulher preta e colocar nela a coroa de 56% de uma população, não se faz isso, o nome disso é desonestidade. E se as pessoas quiserem insistir na desonestidade de fato estamos com o presidente certo mas, se elas quiserem rever suas colocações, suas posições, a gente consegue pensar de uma forma mais ampla. 

A classe, a raça e o gênero estão em tudo, mas nem tudo serve para a raça, a classe e o gênero. Não é assim que acontece, não é assim que a banda toca. Tem pessoas que estudaram que pesquisaram durante uma vida para escrever um livro para falar de questões raciais e aí chega um BBB e destrói tudo isso? Acho que o nome disso é desonestidade então não façam isso, quem está lendo isso, que isso é desonesto. Se você tem preguiça de estudar, assuma a sua responsabilidade em ser uma pessoa racista, machista, transfóbica. Assuma que o problema está em você e na sua preguiça de ir até o conhecimento porque o BBB nunca será parâmetro para absolutamente nada.

Falando enquanto mulher lésbica, vi algumas pessoas dizendo que o comportamento da Lumena era um “reflexo da comunidade lésbica” e não é tão simples e tão homogêneo assim. 

A gente sempre vai usar os exemplos, e é outro ponto em que não quero me contradizer  mas, se me contradizer foda-se, porque sou assim também. Tem pontos e pontos, a Lumena é uma mulher preta e lésbica e ela tem as subjetividades dela, e as subjetividades dela estão sendo colocadas como a questão de um grupo e isso é desonesto e só. A questão toda é essa. 

Óbvio que existem problemas e  questões nela que não podem ser negadas. Tanto nela, como na Karol, no Nego Di e até no próprio Lucas, é óbvio. Todo mundo tem problemas, só que o racismo das pessoas chega nessa hora, quando as pessoas começam a interpretar que por ela ser uma mulher negra, vão colocar isso na questão de um grupo todo, que tem todo um contexto e tem militantes sérios, não se faz isso. Precisa analisar o indivíduo e não o coletivo porque o indivíduo é incapaz de representar o coletivo. As pessoas precisam entender isso. 

A gente se emociona e vai no âmago das coisas: “ah, porque isso vai destronar todas as coisas”, se isso acontecer é porque a gente merece o presidente que a gente tem. É o que eu deixo para todo mundo pensar porque não é assim que a banda toca e que as coisas são. Se são é porque as pessoas estavam só esperando esse tipo de erro, cometido em rede nacional e em horário nobre, acontecer para que elas pudessem colocar as suas garras de fora e falar que é tudo chato e desnecessário. 

Recentemente a influencer Ygona faleceu e, apesar das pessoas falarem que apoiavam ela, bem entre aspas, ela sempre estava nesse lugar da chacota, da gozação e tinha a imagem dela ridicularizada, principalmente por pessoas que se dizem aliadas e até pessoas LGBTQIA+. As pessoas, que se dizem progressistas, continuam colocando o corpo de pessoas trans e travestis, principalmente negras e fora dos padrões, nesse lugar de chacota e ridicularização. Como você enxerga essa questão? 

Olha, vou falar da minha experiência visual e do que eu acompanhava, e não só da Ygona. As pessoas têm muita dificuldade em assumir que são transfóbicas. O mundo é transfóbico, o mundo é gordofóbico e o mundo é racista. Partindo desse princípio as pessoas vão sempre escolher os lugares que a gente vai ocupar, elas que vão decidir, como eu disse antes, as caixinhas que a gente coloca as pessoas. Quem detém o poder é quem decide aonde a gente vai aparecer. 

Eu não quero falar abobrinha aqui e não quero falar nada que vai magoar alguém de alguma forma mas, o que percebo como uma travesti também é o seguinte, as pessoas adoram que a gente seja engraçada, que a gente faça o entretenimento de graça para elas, que a gente tenha um palavreado extremamente baixo sempre, que a gente sempre faça as pessoas rirem, sempre seja a chacota. [As pessoas] esperam que a gente sempre esteja no trapézio da internet para elas terem acesso e se divertirem, porque a vida delas deve ser tão triste, tão chata, que elas precisam rir da gente pra conseguir, sei lá, alguma coisa. E a gente vê também nesse momento de risada como um espaço para sobreviver e acaba abraçando ele. 

Assim acontece muitas vezes com mulheres pretas, mulheres gordas, travestis e cisgêneras da mesma forma. É um espaço cruel que as pessoas criam porque não é um espaço humanizador, não é um espaço generoso, acolhedor, afetivo. É um espaço de coisificar, de monstrificar, de circo mesmo – aqueles que faziam com corpos que consideravam estranhos no passado, com o que não faz parte da norma. Tudo isso era risível, era parte de um circo que continua acontecendo na internet e, muitas vezes, a gente é impotente de conseguir identificar e impotente também de conseguir lutar contra e a gente acaba aceitando esse lugar que a maioria nos coloca para sobreviver.

Acredito muito que seja esse o lugar e é uma reflexão que as pessoas cisgêneras e brancas precisam fazer entre elas: “até onde eu posso rir, o que é risível e o que não é. o que é comprometedor, racista, transfóbico e gordofóbico”. É uma reflexão que as pessoas têm que fazer.

Me incomodava muito com as pessoas rindo da Ygona. Sempre me incomodei, sempre achei escroto, sempre achei estranho, nunca achei legal, sempre via uma maldade nas pessoas e isso me dói. Tive essa sensação tanto da notícia que ela estava doente quanto da notícia sobre o falecimento dela. O quanto vale um corpo para as pessoas? As pessoas acham que elas estão ajudando ou será que é maldade mesmo? Sempre penso nisso porque a ajuda, quando ela não é solicitada, pode ser uma forma de atrapalhar o processo das pessoas. 

Tem várias formas que a gente observa essas entregas de pessoas que fazem e acontecem na internet que, às vezes, me deixam muito em dúvida sobre o teor de quem tem assistido muito mais do que de quem tá mostrando. Quem tá mostrando tá mostrando o que tem, tá mostrando o que é e o que pode mas e quem tá vendo? Quem tá alimentando? Quem tá rindo? Quem tá curtindo o circo de horror do momento? Quem são essas pessoas, sabe? Penso em Big Brother também. Penso nessa coisa que sempre teve da gente gostar de assistir a morte das pessoas, por que eu acho que é isso. Uma morte assistida foi o que aconteceu com a Ygona, do início ao fim e é isso.

Também não tenho uma resposta porque depende de um mundo que  não domino que é o mundo cisgênero branco, o mundo que tem dinheiro de alguma forma. É difícil para mim falar sobre esse assunto porque é um assunto delicado e doloroso, que mexe com muita coisa não só em mim mas em muitas outras meninas. É uma percepção que a gente já tem. A própria Linn da Quebrada tem várias músicas que falam sobre isso: “eu tô bonita ou tô engraçada?”. O que é ser engraçada para as pessoas que não são travestis, que não fazem parte da mesma realidade que nós? Até onde hoje pode ir a sua risada? Até onde você tem o direito de rir e até onde você tem o direito de guardar a sua risada e revisitar ela de alguma forma e pensar: “porque eu estou rindo disso? isso é realmente risível? ou eu estou só botando para fora todo o meu preconceito, o meu racismo e a minha transfobia?”. 

É uma grande pena e uma grande perda também. A Ygona era muito nova e inexperiente ainda da maldade das pessoas. Acredito que tinha muita coisa para ela aprender no caminho dela, acho que ela poderia sim se tornar uma influencer digital, com o tempo e com os aprendizados da vida. É uma perda imensa e eu espero que as pessoas reflitam sobre isso porque foi uma morte assistida terrível. É terrível você acompanhar o início de uma pessoa, ver ela numa série de problemáticas e dando crescimento para que ela se expanda e você continue consumindo e rindo. Chega num momento que aquilo fica devastador, porque a pessoa percebe que é aquilo que os outros querem ver e continua oferecendo até o momento que isso se perde e se transforma em morte. E as pessoas não se culpam, não se revisitam. 

Passando para um conteúdo mais leve, como foi a ideia para o reality apenas com mulheres trans e travestis? Você já planejou algo mais concreto sobre? 

Então eu tenho um nome, não vou falar ainda mas, já tenho nome. Já tinha pensado em fazer um reality, em participar ativamente por trás fazendo com que as coisas funcionem de uma forma informativa, divertida, principalmente, e não transfóbica em nenhum aspecto. Essa era uma preocupação minha, porque via isso acontecer em todos os realitys presentes com pessoas trans, todos. 

Todos porque não tem uma gestão, uma direção, um olhar ou um roteiro de pessoas trans. O que eu pensei em fazer não é nada inovador, não sou uma grande inovadora das coisas mas, eu quero sim que sejam travestis, que a gente não precise higienizar nenhum termo para conseguir acessar esse lugar e que a gente possa compartilhar as nossas experiências, as nossas piadas – que todo mundo se apropria. E [os telespectadores] verem isso acontecendo em tempo real. Como é que cada coisa se encaixa. 

[Mostrar a gente] conversando sobre as nossas vidas, nossos cotidianos, como a gente se veste, como cada coisa se encaixa, nossas descobertas do corpo, nossas descobertas da mente – sem que isso seja cobrado, sem que seja uma pergunta. É uma espécie de observatório, isso pra mim sim seria um estudo, para pessoas cisgêneras [ri]. Para elas se atentarem e verem a diversidade da gente, perceberem que não somos iguais, que temos nossas milhares de diferenças. [Verem] que a gente também pode ter os nossos atritos, que a gente tem nossas experiências, umas são mais doces e outras mais amargas, entendeu? Tudo isso pode ser colocado de uma forma que as pessoas possam enxergar e elas vão conseguir rir também. 

Isso partiu muito dessa ideia, dessa necessidade mesmo, construir uma equipe e ter verba suficiente para isso, porque as meninas tem que ser premiadas e pagas, e eu acho que não tem que ser nada baixo orçamento. Eu detesto tudo que é baixo orçamento. Eu não tenho cara de baixo orçamento [ri]. Não gosto e não é assim que a gente tem que trabalhar. Até porque, se as marcas estão se propondo a ser pró LGBT+, pró travestis, pró mulheres trans e pessoas trans no geral, incluindo homens trans, acredito que a gente tenha investimento suficiente para um grande reality, para um Netflix, para um Prime. Alguma coisa legal, interessante, com conteúdo, com entretenimento, para as pessoas acessarem essa nossa humanidade, que elas tanto querem ignorar, porque é muito esforço para ignorar. 

Partiu muito desse lugar que a gente sempre tá sendo colocada para falar de coisas tristes da nossa vida, sabe? Sempre partindo desse lado e acho que isso vai ser falado naturalmente durante a convivência delas e vai ser muito natural e nem vai ser forçado por uma pessoa cisgênera, tirando dela a resposta que ela quer ouvir. Vai ser isso. Muito engraçado. Seriam muitas pessoas anônimas e pessoas que a gente já conhece. Acho que seria incrível e poderia ter provas incríveis. Uma convivência numa casa bonita, grande e confortável, com festas. Acho que seria incrível. Preciso muito de patrocínio! Tiro o projeto do chão amanhã! [ri]

Então minha última pergunta é, se você pudesse deixar um recado para possíveis patrocinadores, o que você diria?

Eu diria que quero ser uma espécie de Boninho com Anitta, eu quero ser Bonitta! 

E quero ter apoio e patrocínio. Sou uma pessoa capaz de produzir tudo isso. Tenho uma equipe que funciona muito bem, que vai saber ser os meus braços nese polvo. Vai ser um entretenimento que, se você de fato não compactua com a transfobia, vai patrocinar, porque não vai ter. A nossa edição vai ser chique. Não vamos humilhar ninguém, não vai ter escárnio do lado de fora. 

É essa necessidade de humanizar a gente no meio de tudo isso, de humanizar as nossas coletividades, sabe? Das pessoas entenderem porque uma quer muito ter a outra perto e ter todas elas perto uma da outra e construir outros problemas, que não sejam problemas cisgêneros. Problemas com transfobia, com racismo, problemas que as pessoas nem sabem que a gente tem, isso sim vai ser rico. Ver que ali não vai ter uma barreira de transfobia, talvez tenha mas veio com um corpo que foi mal informado, um corpo que foi doutrinado pelos espaços onde caminhou. 

É uma pira muito investível. Se vocês estão interessados, por favor entrem em contato com as minhas redes sociais para esse investimento. Quero bem uma Netflix, uma Globoplay, uma Amazon Prime, uma Disney. Qualquer uma dessas tenho certeza que vai realizar um trabalho rico, divertido e muito necessário. Me ajudem a ser uma mistura de Boninho com  Anitta, me ajudem a ser Bonitta! 

Nosso papo com Diva Menner, a primeira participante trans a chegar às semi-finais do “The Voice Brasil”

Por Cyro Moaris, freelancer de conteúdo da Casa 1

Mulher trans, negra e periférica. Diva Menner enfrentou desafios até se tornar a primeira mulher trans a chegar às semifinais do “The Voice Brasil”. A pernambucana de 36 anos respondeu a perguntas enviadas pelo blog da Casa 1, falando um pouco de família, como foram os desafios para se firmar como artista, como foi a sua experiência no maior reality show de música do país e dos seus planos para o futuro.

Casa 1: Vamos começar falando um pouco de você como pessoa física e não a artista. Como foi sua criação, sua família, sua infância? 

Diva Menner: Minha família é minha mãe. Minha mãe que me criou, não tive pai. Ela que assumiu essa responsabilidade de ser meu pai e minha mãe. Maravilhosa. E tenho uma irmã cis, mulher cis, maravilhosa. Tive uma infância no final da década de 80 para o início da década de 90, então, foi uma infância muito “infantil”, por assim dizer, brincava muito. Tive a sorte de ter sido muito bem criada nesse sentido. Falando da minha transexualidade, eu sempre fui muito quietinha. Na época, ainda enquanto menino, eu já tinha os trejeitos femininos, inclusive, eu já era confundida em algumas situações com menina, coisa que me aborrecia muito na época. Aborrecia muito mais a minha mãe, na verdade. Eu tinha medo, às vezes, de sair na rua com minha mãe para não ser confundida com uma menina. Isso acontecia muito na infância. Na adolescência, os hormônios vieram aflorando, os hormônios masculinos da puberdade, aí eu fiquei mais masculino, mas enquanto isso não acontecia eu sofria um pouquinho por conta disso.

E quando a música apareceu na sua vida? Quando começou a cantar?

A arte sempre foi muito presente. Eu lembro que eu desde criança, eu já desenhava, pintava, dançava muito bem, cantava as músicas da minha época, né? A música foi surgindo aos pouquinhos. Eu nunca imaginei que algum dia fosse me transformar numa cantora de profissão. E quando isso aconteceu, eu agarrei com unhas e dentes e já faz 15 anos eu vivo inteiramente da música. Comecei a me profissionalizar aos 18 anos quando ingressei numa escola de canto popular e, logo depois, eu fui para Conservatório Pernambucano de Música, estudar Canto Lírico e fiquei durante sete anos. Foi muito bacana porque eu conheci uma galera muito bacana da música, consegui conhecer um pouco mais da minha voz e obter umas técnicas para conseguir cantar de tudo.

E como foi sua trajetória na música até chegar no “The Voice”?

Falar de trajetória, é complicado porque eu ainda não realizei todos os meus sonhos, só um pedacinho. De conseguir viver da música e ter participado do maior reality show do mundo, dentro do meu País. Reality show musical onde eu pude mostrar minha voz, meu talento pro Brasil inteiro. Era só um pouquinho de um sonho que ainda tava tão distante. E hoje foi realizado, mas é só o início. Eu sou muito realizada nessa minha trajetória de cantora porque eu consegui e consigo viver inteiramente da música num País totalmente preconceituoso, num estado…numa cidade que não tedá tanta oportunidade de ser diferente e viver da tua diferença, da tua musicalidade. Não tem muita oportunidade e eu consigo. Aos trancos e barrancos, a gente consegue pagar as nossas contas, os nossos boletos.

Qual a sua memória mais marcante com a música?

Eu nunca vou esquecer de um dia onde eu fiz uma performance da cantora Alcione, caracterizada, vestida de Alcione, e ela assistiu. Se levantou, foi até o cara do som pegou o microfone, subiu no palco comigo e a gente cantou. Foi uma surpresa maravilhosa e eu nunca vou esquecer.

E quais são suas referências? Tem algum(a) ídolo(a)?

As minhas referências vão desde o jazz, blues, rock ‘n roll, samba, bossa nova. Essas grandes vozes dessas cantoras pretas americanas. Cantoras da MPB também, como Elza Soares, Elis Regina, minha encantam, de verdade. Eu tenho total influência dessas divas.

Você tem o sonho de dividir o palco com alguma cantora ou cantor?

Eu tenho um sonho de cantar, sim. Queria cantar com Michael Jackson, queria cantar com Whitney Houston. Ai, como eu queria com Aretha Franklin, com Tim Maia, queria ter cantado com tanta gente. Quem está com a gente e eu gostaria muito de cantar é a Elza Soares.

E como foi a seleção para o “The Voice”?

Eu tenho a plena convicção de que a minha seleção para o The Voice Brasil foi muito mais rígida, muito mais criteriosa pelo simples fato de eu ser uma mulher trans do que qualquer outro participante do programa. Mas o tratamento foi muito legal. Eu tive um apoio muito grande de toda produção, todo mundo, e foi muito bacana.

Passou de primeira ou fez mais de uma tentativa?

Fiz muitas tentativas. Fui escolhida umas 3 vezes para fazer as seletivas regionais, que são testes que eles fazem por todo o Brasil. Em 2018, eu já estava ‘na agulha’ pra fazer o 2019, mas acabei entrando no 2020.

Por que escolheu o time Iza?

Escolhi a Iza porque eu acho que a gente tinha mais a ver naquele momento. Talvez, o Carlinhos Brown, talvez o Lulu Santos seria bom pra mim também. Mas, por ela ser igual a mim, uma mulher preta, eu acho que isso também contou muito para eu ter escolhido a Iza.

O que acha que sua participação como primeira mulher trans no “The Voice” pode representar para a população LGBTQIA+ e, principalmente, para as pessoas trans?

Eu digo que eu tenho um orgulho muito grande de ter sido a primeira mulher trans a participar do The Voice Brasil, a chegar nas semifinais, porque a gente vai abrindo portas para as próximas. É uma responsabilidade muito grande ter sido referência, inspiração para muitas outras que sonham em subir naquele palco e tem algum bloqueio, algum receio de subir naquele palco e não conseguir pelo simples fato de ser trans. Não, você é capaz. Eu acho que um sonho quanto mais impossível de sonhar, quando você decide realizar, quando o universo te abre as oportunidades é muito mais gostoso. Foi o que aconteceu comigo. A gente tá abrindo portas para as próximas. Não só no “The Voice”, mas em qualquer outro lugar no mundo. A gente é capaz.

E tocado nesse tópico, como foi o processo de transição pra você?

Foi processo de transição foi bem tranquilo. Foi anônimo, por conta própria, pesquisando. Eu comecei a definir o que já era, mais ou menos, moldado no meu corpo. Naturalmente, eu sempre fui bem feminina, bem andrógino, eu diria. E os hormônios vieram para definir mais, o meu rosto, o meu corpo, minha pele. Depois, eu fui procurar um endocrinologista e passei três anos fazendo transição e ainda continuo na transição. Sempre. Mulher trans está sempre em transformação porque o uso do hormônio é bem lento. Bem mais lento para uma mulher trans do que para um homem trans. Mas foi bem tranquilo. Claro que o uso excessivo dos hormônios causa muita coisa ruim para nossa saúde física e psicológica. Mas tudo por uma boa causa, que é a gente se sentir bem. Conseguir se olhar no espelho e conseguir corresponder àquilo que nossa alma já era.

O preconceito é uma realidade na vida da maioria das pessoas trans e negras, é também o seu caso?

Já sofri preconceito e sofro até hoje na verdade. Quando eu fiz a minha transição, quando eu deixei de ser menino para ter minha alma e meu adequados, eu perdi muitas pessoas, muitas amizades, que eu achava que eram amizades e não eram. Perdi algumas pessoas, perdi…e assim, dou graças a Deus por isso ter acontecido, tá? Enfim, há males que vem para o bem. Pra gente e para o nosso crescimento. Já sofri, sim, preconceito por ser periférica, as pessoas não dão muito valor. Passaram a
me dar valor agora por conta do programa The Voice Brasil. Isso é Pernambuco, é Recife, é Brasil. Porque não vamos ser hipócritas e esconder a realidade no nosso país, que é realmente o país que mais mata transexuais no mundo inteiro, é um país muito preconceituoso, né? Onde as pessoas só valem o que tem. Infelizmente, as pessoas olham uma mulher trans como um objeto de desejo proibido. Todos querem, mas ninguém tem coragem de abraçar, de dar uma oportunidade, de pegar
na mão e levar pro cinema, dar um beijo. Ninguém tem coragem de fazer isso com a gente. Só escondido. Então, a gente vê que é país da hipocrisia nesse sentido também. E olhe que eu nem tô falando de política.

O que diria para outras pessoas trans que podem estar sofrendo preconceito ou passando por dificuldades no processo de transição?

Então, tem um conselho que eu dou porque há muitas meninas trans que acabam se descobrindo ese assumindo pra família e pra si mesma muito jovens. E, justamente por serem tão jovens, elas, às vezes, se precipitam. E, lá na frente, eu conheço várias que se arrependeram e sofrem muito por querer voltar ao que eram. Então, eu diria “espera um pouquinho”. Espera ficar com uns 18 anos de idade pra você saber o que você quer da sua vida de verdade. Se você realmente é uma pessoa trans. Eu sei que a nossa alma, ela fala. Muito. Mas o arrependimento, ele vem quando a gente menos espera. Eu conheço tantas trans que hoje não querem mais se assumir trans. E não são mais, elas se enganaram. Elas viveram aquele momento, mas não são mais. No meu caso, eu me descobri trans desde sempre, mas eu só quis assumir a minha identidade feminina depois dos 30 anos de idade, 34, 33, por aí… Hoje, eu tenho plena consciência do que é ser uma mulher trans e não quero voltar atrás.

E para finalizar, aquela pergunta clássica: quais os seus planos de futuro?

Esse ano vou lançar a minha música autoral, um clipe bem bacana. Vamos aguardar as cenas dos próximos capítulos. Eu tô muito feliz.

Olivia Torres: “Hoje em dia, eu adoro a ideia de viver à margem, mas demora”

Conversamos sobre o que acontece quando não nos vemos na cultura. O sentimento da não existência, da culpa e anormalidade. Falar sobre como dar visibilidade é trazer outras narrativas para o campo de visão, deixar à mostra e tirar do oculto outras formas de existir.

Post feito pela voluntária Thais Eloy

Olivia Torres tem 26 anos, nasceu em São José do Rio Preto, mas foi criada no Rio de Janeiro. É atriz, cantora e artista visual. E também escritora. “Eu tô começando a fazer um movimento pra esse lado aí, vou assumir”.

Em seu instagram, ela ajuda a mapear referências lésbicas no audiovisual e compartilha suas descobertas em uma pasta no Google Drive com os links para download. “A primeira, e provavelmente mais arrebatadora [compreensão sobre ser lésbica], foi na sala de cinema. Uma sensação nítida de que se eu tivesse assistido aquilo durante a minha adolescência, tudo seria radicalmente diferente” narrou a atriz em um vídeo que publicou no seu instagram em janeiro desse ano.

O vídeo continua com imagens sobrepostas do cotidiano da atriz e de filmes como “Dyketactics” de Barbara Hammer e “Born In Flames” (Nascidas das Chamas) de Lizzie Borden. No meio da conversa, Olivia pede um segundo para se despedir da namorada que não aparece na tela da vídeochamada.


Foto: divulgação

Como surgiu a ideia do drive com filmes sobre narrativas lésbicas?

Ah, então isso a gente pode comentar, mas existe uma questão bem específica… Por que é proibido fazer isso, né? (ri) Mas a gente pode falar sobre isso, sim. (ri) Eu sou atriz. Trabalho com teatro, com cinema e com televisão. E sempre senti, acho que como outras pessoas LGBTQIA+, falta de representatividade e dificuldade de me enxergar, e posso afirmar que um dos motivos pelos quais demorei tanto pra me assumir, ou me entender como uma mulher lésbica, foi porque eu não conseguia enxergar essa possibilidade.

Apesar de trabalhar no meio artístico, não conseguia enxergar para além dos meus contatos próximos, que na verdade não eram tão próximos assim, uma possibilidade de uma vivência para além de algo que eu imaginava que era um estereótipo. Era um desejo muito nublado ainda, sabe? Eu fiz um vídeo sobre isso, de uma sensação que eu tive muito forte.

Minhas primeiras compreensões aterradoras foram assistindo filmes na sala de cinema ou em casa. AÍ eu assisti algum filme e lembro de sair, e chorar muito, e ligar pra minha melhor amiga dizendo e pensando “Quem que não fez uma parada dessa antes?” ou porque as coisas não são distribuídas ao ponto de que cheguem até a gente, por que existe, obviamente em uma quantidade muito ínfima e insuficiente, mas ainda assim os que existem não chegam. E existe um recorte sempre muito específico de mulheres brancas e super normativas que se apaixonam e que morrem. Sempre tem um suicídio, alguma coisa assim. E eu sou muito cinéfila, assisto muito filme, gosto muito, estudo isso, aí pensei “Cara, quer saber, vou dar uma pesquisada nesses filmes” e comecei a fazer uma pesquisa mais vertical e, especificamente, nas histórias lésbicas.

Injusto dizer romances, porque eu gosto muito de filmes que não envolvam nenhum tipo de romance. A personagem é sapatão e não é sobre ela se apaixonar e ter um desejo romântico, mas um desejo sexual ou, sei lá, sobre outras experiências que nos envolvem. E eu descobri muita coisa, muita pérola, e eu falei para umas amigas minhas para a gente fazer uma sessão semanal de filmes lá em casa, e nenhuma delas tinha assistido esses filmes que eu encontrei, e eu não conseguia achar esses filmes pra além de baixar ilegalmente, mas assim em nenhum canal de streaming, gratuito ou não gratuito, aí eu falei “Cara, quer saber, eu não tô machucando ninguém. Esses filmes não estão disponíveis, simplesmente nenhuma plataforma desejou colocar esses filmes no catálogo e eu discordo do pensamento deles e eu vou distribui-los”, basicamente isso (ri).

Tenho o link salvo nos meus favoritos. Faz parte da lista de filmes que quero assistir com a minha namorada.
Que tudo! Inclusive eu preciso atualizar, tem mais para colocar. Está bem desatualizado.

Você abordou o assunto do seu vídeo no IGTV (plataforma de vídeo do Instagram). Nesse vídeo você menciona que falava “eu te amo copiados” para seus relacionamentos heterossexuais. Você entende isso como heterossexualidade compulsória?

Ah super, para mim foi muito confuso. Até o ponto de eu assumir a minha lesbianidade, eu tinha meio que me assumido para mim algo parecido com uma assexualidade porque eu pensava “Isso aqui [relacionamento sexual com homens] não tá funcionando”

Nossa, eu também pensei isso em um ponto da minha trajetória.

Você também? Eu tenho um texto sobre isso. No mês da nossa visibilidade, tem várias frentes de conversa. E era muito difícil para mim porque eu não conseguia obviamente elaborar muitos pensamentos sobre isso, então era “Cara, eu não gosto dessa parada”. Até o momento que eu comecei a transar com mulheres e eu pensei “Calma aí, não é sobre isso, não é um desejo que não pertence ao meu corpo. Ele só tá sendo direcionado para o lugar errado” (ri).

Você fica tentando mimetizar o que você enxerga, que são aprendizados, e, no final das contas história é isso. [o ato de contar histórias] Nasceu na Grécia Antiga e era uma forma de ensinamento. Sentavam-se em rodinha e coisas do universo eram ensinadas. Tem uma coisa ótima que eu estudei, que em algum momento foi proibida a contação de história na Grécia Antiga, porque eles achavam que era uma forma perversa de ensinamento. Eles achavam que ao invés de você explicar, explicitar as coisas de uma maneira tradicional clássica e teórica, você usava das emoções para explicar. Você estava meio que manipulando as pessoas do seu entorno.

É curioso pensar nisso. Ao mesmo tempo, eu acho que existe mesmo uma criação de empatia criada pelas histórias ou de afastamento de uma realidade. Você fala “Ah, entendi, estou compreendendo meu universo a partir de várias imagens que estão me dando, mas isso não cabe no que eu desejo e eu não quero viver à margem”. Hoje em dia, eu adoro a ideia de viver à margem, mas demora.

Você acha que existe uma invisibilização das nossas pautas no meio LGBTQIA+?

Super. Até como exemplo o próprio cinema. O tanto de filme que você vai encontrar sobre homens gays e o tanto de filme que você vai encontrar sobre lésbis [mulheres lésbicas e mulheres bissexuais] não é comparável. Ainda é isso. Somos mulheres e ainda somos não mulheres. Ainda é uma ideia de um não-lugar. Ou de uma fetichização dos nossos desejos, que faz com que a gente fique mais invisibilizada ainda porque aí é uma alegoria sexual.

Persiste ainda a confusão entre aceitação e fetiche?

Acho muito complexo isso. Ao mesmo tempo que existe uma fetichização muito grande, eu acho que tem uma necessidade normativa das pessoas héteros de criarem uma narrativa para nós LGBTs que sejam de espelhamento da deles. Então é assim “Gente, todo mundo pode amar quem quiser, vamos ser felizes, vamos criar uma família”. Eles ficam também regrando as experiências deles para a gente, quando eu queria falar de outras coisas que não amor.

Queria falar da pulsão erótica na experiência de pessoas LGBTQIA+, mas, não, sempre tem que ser um quadradinho que eles de alguma forma controlem, e aí é o amor, a família… Gostaria de falar de coisas que vão além disso. E quando se fala sobre isso, a reação das pessoas é automaticamente de fetichização, de falta de escuta, de outro comportamento. Principalmente dos homens héteros que aprendem em pornôs que o nosso desejo está de alguma forma à favor do desejo deles. É complexo porque eu tenho vontade de falar sobre isso também. Questões que permeiam o erótico, mas acaba caindo em um lugar (pausa) nojento mesmo.

Você esperava a repercussão que o vídeo no seu IGTV teve?

Não, foi bem surpreendente. É claro que se cria uma expectativa quando a gente vai colocar alguma coisa no mundo, mas foi de fato muito maior do que eu esperava. É importante dizer de números obviamente, mas do contato que as pessoas criaram. Eu percebi como as mulheres lésbicas estão de fato carentes de representatividade e isso foi muito difícil.

Agora eu recebo mensagem de pessoas de todas as idades pedindo algum tipo de auxílio que eu não sei dar, que eu não tenho condição de dar. Emotivo, financeiro, de saúde mental ou física. Eu entrei em contato também com uma responsabilidade que eu gosto de carregar ao meu lado. Uma responsabilidade que toda pessoa que gosta de produzir conteúdo tem que ter, e eu gosto porque é direcionada ao meu grupo, as minhas pessoas, o tanto de laço que realmente se criou e o meu conforto de gerar pensamentos de forma mais livre.

Me surpreendeu muito, pra além do resultado de número, e o que gerou em mim ter conversado sobre isso foi muito poderoso. O tanto de combustível que me deu. E é muito recente, foi no início do ano. Foi transformador e foi a melhor coisa que eu fiz. E depois desse vídeo coloquei mais outros dois sobre esse tema. Tinha muita dificuldade, ainda tenho um pouco, de pensar o que postar, sabe? E agora eu não tenho mais, porque não tenho mais amarras.

O que o mês de agosto significa para você?

Significa muita coisa, porque é muito poderoso pensar coletivamente sempre. E a gente ter assumido um mês como o nosso, e que a gente produza significado cada vez mais para esse mês eu acho muito forte. E acho que serve como combustível mesmo, porque também não acredito que nenhuma de nós vai parar de produzir conteúdo sobre isso nos próximos meses. Mas acho que é um espaço que se abre maior para se conversar sobre isso para além do nosso círculo, dá uma expandida.

Eu assisti a um vídeo da Bruna Linzmeyer sobre isso de fazer um exercício de pensar nas que vieram antes da gente e dar uma visibilidade. Fazer uma varredura mesmo da poeira em cima das histórias que estão sendo apagadas e de selecionar os nossos interesses. Acho que serve como combustível, o que é uma grande parada. Combustível… É bonita essa palavra, né? E isso serve para os outros meses serem bem mais saudáveis, criando outros laços e conseguindo expandir as nossas comunicações com as outras pessoas que é mais importante. Não, minto, não é mais importante não. Acho que é mais importante a gente de fato se fortalecer entre a gente. Mas também é significativo expandir.

Você acha que as mulheres lésbicas da história brasileira são lembradas o suficiente?

Não. Acho que as mulheres de forma geral são esquecidas, e no movimento LGBTQIA+ também, um tanto quanto. No mês do orgulho, o tanto de pessoas que falaram, acho que foi muito mais ínfima. Não sei, na verdade. Talvez esteja falando uma besteira porque não consigo enxergar o macro, eu consigo enxergar na verdade uma bolhinha. Mas acho que isso não é uma problemática e só vai ser se a gente não elaborar coisas em cima disso. Não gosto de ficar colocando pedras nos problemas. Existem esses problemas e, então, a gente vai articulando em cima deles.

Para encerrar, indica um filme para esse mês.

Ai, tem muitos… Um mais fácil de achar? Os mais fáceis de achar talvez sejam melhores. Cara, eu vou dizer um que acho muito fofo, que é muito divertido. É uma comédia. comédia adolescente inclusive que eu já vi três vezes na minha vida. E é sempre um respiro enorme de diversão, de rir com os estereótipos que a gente cria, ou que são criados sobre a gente, em um lugar bem leve, feliz e contente. E eu gosto que seja um filme que é direcionado aos jovens, porque eu penso que se eu tivesse assistido esse filme quando eu tinha 14 anos, tudo teria
sido diferente. É o “Nunca fui Santa”, conhece?

Conheço, mas ainda não assisti.

Ah é um BAFO! É sobre uma gata cheerleader, tem até o RuPaul fazendo um hétero.

Nessa pegada adolescente tem o D.E.B.S também. Você conhece?
Não.

É um filme sobre quatro espiãs e uma delas se apaixona pela vilã.
Maravilhoso. Vou assistir. Sabe um que eu quero indicar também… Posso indicar três? (ri)

Pode.

Queria indicar o “The Watermelon Woman” que é o primeiro filme que foi dirigido e escrito por uma mulher negra assumidamente lésbica: Cheryl Dunye. Ela é escritora e fala justamente sobre o apagamento histórico de uma mulher negra por quem ela se encanta, que é uma atriz que ela sempre assiste em filmes, mas que nunca tem o nome nos créditos e então ela vai atrás. E eu queria indicar um chamado “Bound” das mesmas diretoras de “Matrix”, que são mulheres trans e são gêmeas. Elas são babado. E é um filme que eu amo porque é mega sensuellen. As gatas de couro e dá máfia, matando boys. É isso. Acho que o exercício maior é expandir as possibilidades de narrativas mesmo.

[Entrevista] Renata Carvalho: “Ser travesti salvou a minha vida”

A primeira vez em que vi a Renata Carvalho foi em 2016 na peça “Zona” do grupo “O Coletivo”, que se apresentavam em casa, na cidade de Santos, litoral de São Paulo. O espetáculo acontecia nas ruas da região portuária e finalizava em um bar/puteiro. A presença de Renata era uma grande pauta, afinal, uma atriz trans em cena ainda era coisa rara. No mesmo ano veio o estrondoso sucesso “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, onde Renata vivia Jesus, uma travesti, nos dias atuais, que assisti no Sesc Pinheiros.

Quando a Casa 1 abriu em 2017, Renata veio na festa de inauguração e já fã, fiquei emocionado e agradecido. Semanas depois uma nova visita, dessa vez na Biblioteca Caio Fernando Abreu, pegou em mãos o livro “Manifesto Contrassexual”, de Paul B.Preciado. “Eu estava louca atrás desse livro”, disse para o amigo que a acompanhava.

No mesmo ano, graças ao prêmio Zé Renato, fez uma apresentação do “Evangelho…” na calçada da Casa 1 que ainda não contava com a estrutura do galpão. Foi a coisa mais espetacular que já presenciei: algumas pessoas passavam pelo meio da cena xingando, durante as falas, gritos de gol ensurdecedores vinham das janelas por conta de uma final de campeonato de futebol onde jogava Palmeiras e Corinthians, que fizeram com que Renata tivesse que rebolar e muito. Assisti a peça em vários outros contextos, e na minha opinião, nenhuma das vezes foi tão potente quanto naquele dia na calçada.

Com “Evangelho…” Renata se apresentou ainda outras três vezes na Casa 1, duas no Galpão Casa 1, durante a programação da exposição “Descoberta – Construção do Corpo Nú”e na “I Semana de Visibilidade Trans”, em 2017 e 2018 respectivamente. Ambas lotadas. Ainda que eu ache até hoje que a apresentação na calçada seja sublime, sempre me senti em dívida pela falta de estrutura que peça e atriz mereciam então para a segunda edição da Semana de Visibilidade Trans conseguimos o icônico Teat(r)o Oficina Uyna Uzona.

Renata aplaudida em pé pelo público no Teatro Oficina. Foto: Carla Carniel

A apresentação no Oficina foi histórica, mais de 400 espectadores, pelo menos um quarto deles e delas trans. Confesso que senti um pouco de medo, o gigantesco Oficina em geral conta com uma centena de atores em cena compondo um coro para dar conta de todo aquele espaço projetado por Lina Bo Bardi: será que a Renata daria conta sozinha? Não só deu como foi aplaudida por mais de 15 minutos.

No dia seguinte me confidenciou que não tinha conseguido dormir depois de tamanha adrenalina e por falta de planejamento nosso teve que apresentar “Domínio Público”, junto com outros artistas censurados recentemente. Nessa peça Renata atua, co-dirige e também é responsável pelo seu texto. Completíssima. Por isso tudo e muito mais que falaremos a seguir, a atriz dá nome ao nosso ateliê de artes plásticas e também foi a primeira pessoa que pensei para abrir essa série de perfis que desejo fazer ao longo do ano aqui no blog da Casa 1.

Dentro de mim mora outra

Esse é o título do espetáculo de 2012 onde Renata contava sua história até então, mesmo ano em que se junta a companhia de teatro santista “O Coletivo”. Nascia ali o que seria o primeiro passo dos estudos da transpóloga, título que usa para se referir a sua pesquisa de antropologia dos corpos trans, a Transpologia. A cronologia de Renata vai e vem, refletindo sua inquietação e pensamentos borbulhantes que fazem com que tenha pelo menos quatro livros em processo de escrita na gaveta, além de muitos outros tantos projetos.

“Comecei ator mas passei para diretor porque me foram negados papeis masculinos pela minha feminilidade fora dos palcos. Sempre me restavam apenas personagens como Veludo de ‘Navalha na Carne’ e Giro de ‘Abajur Lilás'”, relata se referindo aos textos de Plinio Marcos e a si mesma no masculino do passado. Renata especificamente não ignora ou esconde o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento, mas o uso do gênero masculino se encerra assim em que relata sua aproximação com a população trans e consequentemente do seu processo de transição: “Eu não tinha entendimento do meu percebimento travesti e isso só aconteceu em 2007 quando fui ser agente de prevenção voluntária com a população trans”, explica.

Em 2009 volta aos palcos como atriz em “Nossa Vida Como Ela É”, baseada na obra de Nelson Rodrigues, outra referência da vida teatral. “Tenho proximidade do Plinio porque além da obra ele é de Santos e o Nelson porque vejo em seu texto diversidade, ele fala sobre as mulheres, a forma como ele desvelava a burguesia brasileira era algo raro. Nelson desvendava a podridão da classe média”, explica contando que leu “O Anjo Pornográfico”, biografia do jornalista e dramaturgo escrita por Ruy Castro, pelo menos quatro vezes.

Baseado em Nelson Rodrigues fez “Nelson Futebol Clube”, em 2001 e na direção, “Pelo Buraco da Fechadura” em 2004, peça que pretende revisitar com elenco trans no futuro. No entanto Renata faz questão de deixar claro: “não gosto do Nelson como pessoa, acho que ele era um escroto machista”. Pergunto então a ela se é possível separar a obra do criador, tendo em vista o debate recente sobre a obra de nomes como Woody Allen e Roman Polansky. “Tanto os que você citou quanto o Bertolucci eram privilegiados e ocupavam uma posição de domínio e usaram isso para fazer coisas horríveis, quando se trata desse lugar moral eu não consigo diferenciar a produção de quem produz, o Woody Allen é um grande, mas é também um grande filho da puta – não, filho da puta não porque não tem nada de errado em ser puta – filho do Bolsanaro é melhor”, finaliza dando uma alta gargalhada.

A arte como reflexo da sociedade

“Uma obra deve ser lida no seu tempo, para que eu vou montar Romeu e Julieta sem trazer o olhar de hoje? Me interessa como a arte colabora para criação do imagético da travesti, do negro, da mulher, da loucura”, discorre a atriz defendendo as encenações de textos com novas roupagens e significados. “Tem que se fazer releituras sim, uma obra é aberta para ser lida, dissecada, discutida. A partir do momento em que você ressignifica um texto isso já é uma voz própria e uma crítica do seu tempo“, explica diante da minha pergunta sobre as dezenas de remontagens que tomaram os palcos nos últimos anos sob perspectiva dos corpos dissidentes, entre eles “Maquina Branca” da Ave Terrena e “Gota d’Água Preta” de Jé Oliveira. “O Gota é um bom exemplo, como a gente nunca percebeu que se passa todo em uma favela e todas as Joanas eram brancas?” Sobre a peça, aproveita o gancho e vai além: “Porque só agora o Jé Oliveira, um diretor negro, ganhou um prêmio Shell”, se referindo ao fato do prêmio que só depois de 32 anos de existência, em 2019, premiou um diretor negro.

A resposta para a pergunta que faz, ela mesma responde: “É um círculo vicioso onde sempre ficam os mesmos, não tem uma amplitude do olhar. A gente só exalta alguns artistas, só  tem os mesmos artistas circulando e eles se auto premiam e prêmio é um lugar de prestigio social, de exemplo e nossos corpos não podem ser exemplo. Aí os milhões acabam indo sempre para o Bob Wilson, para o Gerald Thomas, pro Felipe Hirsch, para a Daniela Thomas, a Bia Lessa, enfim, esses nomes que podem fazer o que quiser”, e cita ainda o grupo mineiro Galpão “que fazem cenários que abaixam, levantam, rodam o Brasil enquanto grupos independentes já começam um espetáculo pensando em diminuir o cenário e o elenco para caber em uma van e poder circular”, conta.

Renata emocionada agradecendo o público de “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”

Para Renata, além das patotas, o olhar colonial em cima da arte é o motivo da mesmice e pouco espaço para corpos dissidentes. “Não podemos mudar as coisas fazendo as mesmas coisas. Precisamos mudar o modo como fazemos arte porque em vários momentos da história fizemos arte de forma irresponsável” afirma a atriz lembrando que o trabalho de hoje vai ter impacto daqui 50 anos: “Estamos mudando o olhar, reorganizando esse olhar, tirando o olhar da branquitude, da cisgeneridade” e complementa falando de outros corpos como o das pessoas gordas, com deficiência, dos corpos positivos, entre outros. “Precisamos tapar o buraco da arte que não nos coloca em destaque, com histórias aprofundadas, verticalizadas, humanizadas”e cita os espetáculos “Isto é Um Negro” do grupo E Quem é Gosta?, “As 3 Uiaras de SP City” da Ave Terrena, “Manifesto Transpofágico”de sua autoria e a performance “Macaquinhos” que agitou a cena quando estreou em 2014.

Luta contra o transfake

Dentre as muitas batalhas públicas que travou em prol da visibilidade trans e de outros tantos corpos, está o embate com a Cia. Mungunzá de Teatro pela montagem “Luís Antônio Gabriela”, com texto e direção de Nelson Baskerville de 2011. “A peça era um pedido de desculpas que não se desculpou, um texto muito desrespeitoso, com um homem cisgênero interpretando a Gabriela e eu saí do teatro nervosa querendo voar em todo mundo”, conta. Depois de anos de luta e debates públicos, a companhia escalou em 2018 a atriz Fabia Mirassos para assumir o papel de Gabriela. “Quando vi a Fabia chorei, nada mudou mas tudo mudou”, aponta explicando que aquele corpo em cena eliminou muitos esteriótipos como por exemplo o de que um corpo de uma travesti é um corpo masculino.

Fundadora do “MONART – Movimento Nacional de Artistas Trans” (travestis, mulheres e homens trans e pessoas trans não binárias) e do “Representatividade Trans”, movimento que luta contra o TransFake, ou seja, pessoas cisgêneras interpretando pessoas trans. Renata explica que a luta é maior do que a atuação:”Primeiro temos que falar sobre proporcionalidade, quantas pessoas trans estão interpretando pessoas cis? Quantas trans estão interpretando trans? Quantos corpos trans estão fazendo parte da construção de uma obra? E não estou falando apenas sobre atuação, estou falando de direção, iluminação, cenário, figurino”, detalha, explicando ainda que “não somos um corpo humanizado, então a justificativa dada é que não temos o poder de humanizar um personagem e por isso acabamos não tendo espaço na arte“.

“Quando a gente fala de travesti fala de corporeidade (termo da filosofia para designar a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo), quando fala de corporeidade fala de colonização, de neocolonialismo, de liberalismo, neoliberalismo, capitalismo. É sobre quais corpos são válidos e quais não são. É muito mais vertical do que estar interpretando um corpo trans”, afirma esvaziando completamente as críticas de que a luta pela representatividade e pelo fim da prática do Transfake é apenas uma questão de ego ou do politicamente correto.

Renata aponta que existem sim muitas narrativas para corpos trans, mas por serem contadas sempre a partir de corpos (e vivências) em geral brancos e cisgêneros, faz com que a imagem consolidada seja sempre pejorativa. “Sob a perspectiva religiosa nossa narrativa é de que somos corpos sem almas, sem Deus, endemoniados; sob a perspectiva médica somos um corpo patologizado, doente; sob a perspectiva legal somos corpos criminalizados, ainda hoje ligados a crime sexuais. Isso tudo sem contar a narrativa carnavalesca, da construção caricata do nosso corpo, algo que chamo de transfobia recreativa”, desabafa.

O caminho até chegar nesse ponto da reflexão e pensamentos segundo a atriz foi longo. “Quando transiciono junto com o trabalho de agente de prevenção voluntária começo a estudar o corpo trans sob a perspectiva da saúde, da psicologia, da psiquiatria, mas com o trabalho em teatro passo a ver peças, filmes, livro e me dou conta de que não existem livros contando nossa história, apenas a nossa exclusão“. O passo seguinte seria uma aproximação do feminismo negro e da interseccionalidade, em especial da leitura de nomes como Djamila Ribeira, Carla Akotirene, Joice Berth, Angela Davis e Audre Lorde, onde “vejo que a ‘culpa’ da minha exclusão não é minha, é da exclusão do meu corpo. Quando me percebo travesti eu mudo meu olhar, eu amplio meu olhar, tenho outro entendimento do meu corpo e do mundo e por esse entendimento ampliado de tudo digo que ser travesti salvou a minha vida”.

E se engana quem acredita que Renata defende cegamente que relação e o conhecimento dos corpos é algo inerente das pessoas trans: “Não é porque se é uma pessoa trans que você tem um entendimento do corpo trans, na arte por exemplo, tem representatividade que não representa porque aquelas pessoas não tiveram tempo para pensar no corpo”, e sabe que a exclusão sistemática da população é um dos principais motivos, ” a grande maioria das travestis não tem tempo para pensar o que significa seu corpo, elas estão correndo atras de viver, de pagar conta, conseguir um trabalho, afeto, saúde mental”, pontua reconhecendo seus privilégios.

“Estou no teatro há 24 anos e teatro é a arte da repetição, eu tive tempo para ver, rever, falar, estudar e de poder me expressar pela minha arte”, celebra citando outros nomes que também tiveram essas oportunidades e a inspira: as dramaturgas e atrizes Ave Terrena, Leonarda Glück, Marina Matei, a artista -educadora Dodi Leal, as cantoras Linn da Quebrada, Raquel Virgínia, Assucena Assucena e Danna Lisboa, a publicitária, ativista e multi artista Neon Cunha, a professora e doutora Jaqueline Gomes de Jesus e as deputadas Erika Hilton e Erica Malunguinho.

Se como Renata mesmo diz, os livros não contam a história dos corpos trans, apenas da exclusão, vão ser nas pessoas que vai buscar inspiração e conhecimento. “Foi e é pra mim essencial ter referencias trans, então eu quero falar de Keila Simpson, Giovana Baby (ativistas da  ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais), Symmy Larrat (ativista e ex presidente da ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos), Indianare Siqueira (ativista e fundadora da Casa Nem)”, citando ainda nomes de figuras que já nos deixaram mas foram fundamentais para o movimento, como Cláudia Wonder, Phedra de Córdoba, Brenda Lee e Andrea de Mayo.

Depois de anos de lutas e de prática, veio então a calma, a voz ganhou um tom calmo, pausado e microfonado em “Manifesto Transpofágico”, espetáculo que estreou em 2019 na “Mostra Internacional de Teatro” e que a atriz entende como uma espécie de continuação do seu primeiro monólogo “Dentro de Mim Mora Outra” só que mais voltado para a história da sua comunidade, ainda que costurado pela sua trajetória pessoal. “Quando comecei o ‘Representatividade Trans’ e com as censuras que sofri e ainda sofro com o Evangelho fiquei conhecida como violenta, como um corpo bélico, que causa desconforto”, relembra contando ainda que acabou inclusive adoecendo. “É difícil defender o óbvio todo dia mas aprendendo sobre comunicação não violenta e com a Djamila Ribeiro, entendi que para chegar em determinados lugares preciso falar de outra forma”, finaliza.

“Manifesto Transpofágico” se tornou rapidamente um sucesso de público e crítica mas mesmo com a fala calma Renata sabe que não se trata de um texto suave: “Ele (o espetáculo) já é violento pelo o que eu conto e eu não queria abalar o que eu chamo de fragilidade cisgênera – que se abala fácil, então quando a gente fala alto as pessoas botam a culpa nisso, por isso sigo calma em cena”, explica a atriz que passa praticamente todo o espetáculo apenas de calcinha: “Manifesto vem para colocar o corpo trans em discussão e eu literalmente me desnudo no palco para que isso aconteça. Eu quero jogar o meu corpo travesti nas pessoas, eu passo bunda, passo peito na plateia, para que as pessoas naturalizarem esse corpo”, explica.

Outro sucesso recente é a participação no longa “Vento Seco”, de Daniel Nolasco onde interpreta Paula, uma mulher cis sindicalista que trabalha em uma fábrica de fertilizantes e é segundo a atriz, “a parte solar do longa”. Além de Renata, outros dois atores trans interpretam pessoas cis na trama, algo importante tendo em vista as escassas oportunidade de trabalho desses corpos. O longa estreou no Festival de Berlim com ótimas críticas e tinha sua estreia nacional programada para o final do ano no Festival Mix Brasil, mas carece de confirmação por conta da pandemia do novo Coronavirus. Além do longa, Renata também gravou “Primeiros Soldados” de Rodrigo de Oliveira, que fala sobre os primeiros casos de HIV/AIDS na cidade de Vitória, no Espirito Santo, sem estreia prevista.

Com tantos projetos e com o avanço de outros tantos atores e atrizes trans pergunto então se já caiu por terra a justificativa de que o público não estaria pronto, tão defendida por quem cria os espetáculos, filmes e programas de TV e a resposta vem afiada e rápida: “Se o público não estiver pronto, vai ter que ficar. A arte precisa se responsabilizar pelo que contrói e pelo que já ajudou a construir” e cita três longas lançados no ano anterior (2019) que ainda contam com a prática do Transfake, “Veneza”, de Miguel Falabella (um dos campeões da prática, diga-se de passagem), “Bate Coração” de Glauber Filho e “Greta”, de Armando Praça, não coincidentemente dirigidos por três homens brancos cisgêneros. “É o que eu chamo de continuidade do pacto da branquitude e da cisgeneridade, onde quem escreve e dirige faz sem estudar, sem entender as vivências trans, muitas vezes sexualizando e criminalizando esses corpos e consequentemente tirando humanidade deles”, pontua.

Para o futuro, os desejos são muitos, “quero que todas as pessoas trans trabalhem com o que querem, que tenham uma vida saudável, saúde mental, eu não trabalho para mim, trabalho para as que estão começando, as que estão nascendo hoje e nem sabe que são travesti, para que elas envelheçam” diz se referindo à expectativa de vida da população trans que é de 27 à 35 anos, expectativa essa que Renata diz ter o privilégio de ter ultrapassado mas que a idade que realmente almeja é 55 anos porque “aí eu vou ter vivido mais como Renata do que como Ricardo“, diz.

No campo do trabalho, ela que recentemente ingressou na faculdade de Ciência Sociais deseja, junto do trabalho artístico, criar um mapa da prostituição e a diáspora travesti na Europa e trabalha em uma versão para “Grandes Sertões: Veredas” de Guimarães Rosa com um elenco todo trans: “Vai ser o Trans Sertrans Veredas com o Riobaldo transicionando e chamando Renata, talvez ambientado em São Paulo, num corpo atemporal. A ideia é começar como um livro e depois peça”, conta. Inquieta que é, também tem no radar uma série ou filme sobre Gisberta e um longa com a atriz Fernanda Montenegro. “Esse texto já tá até pronto e conta a história de uma trans que é criada pela avó mas quando transiciona é expulsa de casa e retorna depois de décadas para cuidar dessa avó com Alzheimer”, e completa com a cena que tem clara na cabeça: “Eu sorrio para minha avó e ela diz ‘nossa, você tem o sorriso do meu neto'”, finaliza.

Cabe agora a nós, reles mortais, esperar esse furacão que é Renata colocar em prática todos esse grandes projetos. Evoé!