Conversamos sobre o que acontece quando não nos vemos na cultura. O sentimento da não existência, da culpa e anormalidade. Falar sobre como dar visibilidade é trazer outras narrativas para o campo de visão, deixar à mostra e tirar do oculto outras formas de existir.
Post feito pela voluntária Thais Eloy
Olivia Torres tem 26 anos, nasceu em São José do Rio Preto, mas foi criada no Rio de Janeiro. É atriz, cantora e artista visual. E também escritora. “Eu tô começando a fazer um movimento pra esse lado aí, vou assumir”.
Em seu instagram, ela ajuda a mapear referências lésbicas no audiovisual e compartilha suas descobertas em uma pasta no Google Drive com os links para download. “A primeira, e provavelmente mais arrebatadora [compreensão sobre ser lésbica], foi na sala de cinema. Uma sensação nítida de que se eu tivesse assistido aquilo durante a minha adolescência, tudo seria radicalmente diferente” narrou a atriz em um vídeo que publicou no seu instagram em janeiro desse ano.
O vídeo continua com imagens sobrepostas do cotidiano da atriz e de filmes como “Dyketactics” de Barbara Hammer e “Born In Flames” (Nascidas das Chamas) de Lizzie Borden. No meio da conversa, Olivia pede um segundo para se despedir da namorada que não aparece na tela da vídeochamada.
Como surgiu a ideia do drive com filmes sobre narrativas lésbicas?
Ah, então isso a gente pode comentar, mas existe uma questão bem específica… Por que é proibido fazer isso, né? (ri) Mas a gente pode falar sobre isso, sim. (ri) Eu sou atriz. Trabalho com teatro, com cinema e com televisão. E sempre senti, acho que como outras pessoas LGBTQIA+, falta de representatividade e dificuldade de me enxergar, e posso afirmar que um dos motivos pelos quais demorei tanto pra me assumir, ou me entender como uma mulher lésbica, foi porque eu não conseguia enxergar essa possibilidade.
Apesar de trabalhar no meio artístico, não conseguia enxergar para além dos meus contatos próximos, que na verdade não eram tão próximos assim, uma possibilidade de uma vivência para além de algo que eu imaginava que era um estereótipo. Era um desejo muito nublado ainda, sabe? Eu fiz um vídeo sobre isso, de uma sensação que eu tive muito forte.
Minhas primeiras compreensões aterradoras foram assistindo filmes na sala de cinema ou em casa. AÍ eu assisti algum filme e lembro de sair, e chorar muito, e ligar pra minha melhor amiga dizendo e pensando “Quem que não fez uma parada dessa antes?” ou porque as coisas não são distribuídas ao ponto de que cheguem até a gente, por que existe, obviamente em uma quantidade muito ínfima e insuficiente, mas ainda assim os que existem não chegam. E existe um recorte sempre muito específico de mulheres brancas e super normativas que se apaixonam e que morrem. Sempre tem um suicídio, alguma coisa assim. E eu sou muito cinéfila, assisto muito filme, gosto muito, estudo isso, aí pensei “Cara, quer saber, vou dar uma pesquisada nesses filmes” e comecei a fazer uma pesquisa mais vertical e, especificamente, nas histórias lésbicas.
Injusto dizer romances, porque eu gosto muito de filmes que não envolvam nenhum tipo de romance. A personagem é sapatão e não é sobre ela se apaixonar e ter um desejo romântico, mas um desejo sexual ou, sei lá, sobre outras experiências que nos envolvem. E eu descobri muita coisa, muita pérola, e eu falei para umas amigas minhas para a gente fazer uma sessão semanal de filmes lá em casa, e nenhuma delas tinha assistido esses filmes que eu encontrei, e eu não conseguia achar esses filmes pra além de baixar ilegalmente, mas assim em nenhum canal de streaming, gratuito ou não gratuito, aí eu falei “Cara, quer saber, eu não tô machucando ninguém. Esses filmes não estão disponíveis, simplesmente nenhuma plataforma desejou colocar esses filmes no catálogo e eu discordo do pensamento deles e eu vou distribui-los”, basicamente isso (ri).
Tenho o link salvo nos meus favoritos. Faz parte da lista de filmes que quero assistir com a minha namorada.
Que tudo! Inclusive eu preciso atualizar, tem mais para colocar. Está bem desatualizado.
Você abordou o assunto do seu vídeo no IGTV (plataforma de vídeo do Instagram). Nesse vídeo você menciona que falava “eu te amo copiados” para seus relacionamentos heterossexuais. Você entende isso como heterossexualidade compulsória?
Ah super, para mim foi muito confuso. Até o ponto de eu assumir a minha lesbianidade, eu tinha meio que me assumido para mim algo parecido com uma assexualidade porque eu pensava “Isso aqui [relacionamento sexual com homens] não tá funcionando”
Nossa, eu também pensei isso em um ponto da minha trajetória.
Você também? Eu tenho um texto sobre isso. No mês da nossa visibilidade, tem várias frentes de conversa. E era muito difícil para mim porque eu não conseguia obviamente elaborar muitos pensamentos sobre isso, então era “Cara, eu não gosto dessa parada”. Até o momento que eu comecei a transar com mulheres e eu pensei “Calma aí, não é sobre isso, não é um desejo que não pertence ao meu corpo. Ele só tá sendo direcionado para o lugar errado” (ri).
Você fica tentando mimetizar o que você enxerga, que são aprendizados, e, no final das contas história é isso. [o ato de contar histórias] Nasceu na Grécia Antiga e era uma forma de ensinamento. Sentavam-se em rodinha e coisas do universo eram ensinadas. Tem uma coisa ótima que eu estudei, que em algum momento foi proibida a contação de história na Grécia Antiga, porque eles achavam que era uma forma perversa de ensinamento. Eles achavam que ao invés de você explicar, explicitar as coisas de uma maneira tradicional clássica e teórica, você usava das emoções para explicar. Você estava meio que manipulando as pessoas do seu entorno.
É curioso pensar nisso. Ao mesmo tempo, eu acho que existe mesmo uma criação de empatia criada pelas histórias ou de afastamento de uma realidade. Você fala “Ah, entendi, estou compreendendo meu universo a partir de várias imagens que estão me dando, mas isso não cabe no que eu desejo e eu não quero viver à margem”. Hoje em dia, eu adoro a ideia de viver à margem, mas demora.
Você acha que existe uma invisibilização das nossas pautas no meio LGBTQIA+?
Super. Até como exemplo o próprio cinema. O tanto de filme que você vai encontrar sobre homens gays e o tanto de filme que você vai encontrar sobre lésbis [mulheres lésbicas e mulheres bissexuais] não é comparável. Ainda é isso. Somos mulheres e ainda somos não mulheres. Ainda é uma ideia de um não-lugar. Ou de uma fetichização dos nossos desejos, que faz com que a gente fique mais invisibilizada ainda porque aí é uma alegoria sexual.
Persiste ainda a confusão entre aceitação e fetiche?
Acho muito complexo isso. Ao mesmo tempo que existe uma fetichização muito grande, eu acho que tem uma necessidade normativa das pessoas héteros de criarem uma narrativa para nós LGBTs que sejam de espelhamento da deles. Então é assim “Gente, todo mundo pode amar quem quiser, vamos ser felizes, vamos criar uma família”. Eles ficam também regrando as experiências deles para a gente, quando eu queria falar de outras coisas que não amor.
Queria falar da pulsão erótica na experiência de pessoas LGBTQIA+, mas, não, sempre tem que ser um quadradinho que eles de alguma forma controlem, e aí é o amor, a família… Gostaria de falar de coisas que vão além disso. E quando se fala sobre isso, a reação das pessoas é automaticamente de fetichização, de falta de escuta, de outro comportamento. Principalmente dos homens héteros que aprendem em pornôs que o nosso desejo está de alguma forma à favor do desejo deles. É complexo porque eu tenho vontade de falar sobre isso também. Questões que permeiam o erótico, mas acaba caindo em um lugar (pausa) nojento mesmo.
Você esperava a repercussão que o vídeo no seu IGTV teve?
Não, foi bem surpreendente. É claro que se cria uma expectativa quando a gente vai colocar alguma coisa no mundo, mas foi de fato muito maior do que eu esperava. É importante dizer de números obviamente, mas do contato que as pessoas criaram. Eu percebi como as mulheres lésbicas estão de fato carentes de representatividade e isso foi muito difícil.
Agora eu recebo mensagem de pessoas de todas as idades pedindo algum tipo de auxílio que eu não sei dar, que eu não tenho condição de dar. Emotivo, financeiro, de saúde mental ou física. Eu entrei em contato também com uma responsabilidade que eu gosto de carregar ao meu lado. Uma responsabilidade que toda pessoa que gosta de produzir conteúdo tem que ter, e eu gosto porque é direcionada ao meu grupo, as minhas pessoas, o tanto de laço que realmente se criou e o meu conforto de gerar pensamentos de forma mais livre.
Me surpreendeu muito, pra além do resultado de número, e o que gerou em mim ter conversado sobre isso foi muito poderoso. O tanto de combustível que me deu. E é muito recente, foi no início do ano. Foi transformador e foi a melhor coisa que eu fiz. E depois desse vídeo coloquei mais outros dois sobre esse tema. Tinha muita dificuldade, ainda tenho um pouco, de pensar o que postar, sabe? E agora eu não tenho mais, porque não tenho mais amarras.
O que o mês de agosto significa para você?
Significa muita coisa, porque é muito poderoso pensar coletivamente sempre. E a gente ter assumido um mês como o nosso, e que a gente produza significado cada vez mais para esse mês eu acho muito forte. E acho que serve como combustível mesmo, porque também não acredito que nenhuma de nós vai parar de produzir conteúdo sobre isso nos próximos meses. Mas acho que é um espaço que se abre maior para se conversar sobre isso para além do nosso círculo, dá uma expandida.
Eu assisti a um vídeo da Bruna Linzmeyer sobre isso de fazer um exercício de pensar nas que vieram antes da gente e dar uma visibilidade. Fazer uma varredura mesmo da poeira em cima das histórias que estão sendo apagadas e de selecionar os nossos interesses. Acho que serve como combustível, o que é uma grande parada. Combustível… É bonita essa palavra, né? E isso serve para os outros meses serem bem mais saudáveis, criando outros laços e conseguindo expandir as nossas comunicações com as outras pessoas que é mais importante. Não, minto, não é mais importante não. Acho que é mais importante a gente de fato se fortalecer entre a gente. Mas também é significativo expandir.
Você acha que as mulheres lésbicas da história brasileira são lembradas o suficiente?
Não. Acho que as mulheres de forma geral são esquecidas, e no movimento LGBTQIA+ também, um tanto quanto. No mês do orgulho, o tanto de pessoas que falaram, acho que foi muito mais ínfima. Não sei, na verdade. Talvez esteja falando uma besteira porque não consigo enxergar o macro, eu consigo enxergar na verdade uma bolhinha. Mas acho que isso não é uma problemática e só vai ser se a gente não elaborar coisas em cima disso. Não gosto de ficar colocando pedras nos problemas. Existem esses problemas e, então, a gente vai articulando em cima deles.
Para encerrar, indica um filme para esse mês.
Ai, tem muitos… Um mais fácil de achar? Os mais fáceis de achar talvez sejam melhores. Cara, eu vou dizer um que acho muito fofo, que é muito divertido. É uma comédia. comédia adolescente inclusive que eu já vi três vezes na minha vida. E é sempre um respiro enorme de diversão, de rir com os estereótipos que a gente cria, ou que são criados sobre a gente, em um lugar bem leve, feliz e contente. E eu gosto que seja um filme que é direcionado aos jovens, porque eu penso que se eu tivesse assistido esse filme quando eu tinha 14 anos, tudo teria
sido diferente. É o “Nunca fui Santa”, conhece?
Conheço, mas ainda não assisti.
Ah é um BAFO! É sobre uma gata cheerleader, tem até o RuPaul fazendo um hétero.
Nessa pegada adolescente tem o D.E.B.S também. Você conhece?
Não.
É um filme sobre quatro espiãs e uma delas se apaixona pela vilã.
Maravilhoso. Vou assistir. Sabe um que eu quero indicar também… Posso indicar três? (ri)
Pode.
Queria indicar o “The Watermelon Woman” que é o primeiro filme que foi dirigido e escrito por uma mulher negra assumidamente lésbica: Cheryl Dunye. Ela é escritora e fala justamente sobre o apagamento histórico de uma mulher negra por quem ela se encanta, que é uma atriz que ela sempre assiste em filmes, mas que nunca tem o nome nos créditos e então ela vai atrás. E eu queria indicar um chamado “Bound” das mesmas diretoras de “Matrix”, que são mulheres trans e são gêmeas. Elas são babado. E é um filme que eu amo porque é mega sensuellen. As gatas de couro e dá máfia, matando boys. É isso. Acho que o exercício maior é expandir as possibilidades de narrativas mesmo.