Invisibilização de pessoas trans com vagina reflete dificuldade de atendimento ginecológico e despreparo de profissionais da saúde; jornalista recebeu ataques nas redes sociais após questionar reportagem da TV Globo sobre pobreza menstrual que não tratava de transgêneros
Por Jennifer Mendonça
No último domingo (2/5), o programa Fantástico, da TV Globo, exibiu uma reportagem sobre pobreza menstrual que tratava sobre a falta de informação ou de dinheiro para ter acesso a itens básicos de higiene durante a menstruação. Na apresentação da matéria e no off, que é como jornalistas chamam a narração em cima de imagens num vídeo, a menstruação é descrita como “um processo natural do corpo feminino” e que “faz parte da biologia feminina”. A Ponte também já abordou o assunto, relatando que, de estudantes a presidiárias, adolescentes, jovens e mulheres em situação de vulnerabilidade social já recorreram a pedaço de jornal ou miolo de pão na ausência de um absorvente.
O que as duas reportagens têm em comum? Nenhuma delas cita homens trans, pessoas transmasculinas (pessoas que não se encaixam no gênero do nascimento nem na binaridade dos gêneros – homens ou mulheres), não-binárias (que não se identificam nem com o gênero feminino nem com o masculino) e intersexuais (que nascem com características sexuais que não se encaixam com a definição típica de masculino ou feminino). O jornalista Caê Vasconcelos, 30 anos, fez esse questionamento em seu perfil no Twitter durante a exibição da matéria na TV Globo e recebeu diversos ataques nas redes sociais, dentre ofensas e xingamentos direcionados para si e para familiares.
“É a terceira vez que falo sobre o assunto e recebo ataques”, conta Caê à Ponte. “É assustador porque a gente ficou tanto tempo invisibilizado, as pessoas não sabendo o que é um homem trans, não sabendo sobre a existência dos nossos corpos e agora que a gente pode usar a internet para falar um pouquinho sobre as nossas vivências, a galera não quer aprender”, desabafa.
O jornalista também recebeu ataques no início deste ano, em duas oportunidades. Primeiro em janeiro de 2020, quando questionou uma publicação no Twitter da escritora JK Rowling, autora da série Harry Potter, na qual ela não concordava com a expressão “pessoas que menstruam” porque o correto seria mulheres na visão dela. A crítica virou artigo na Ponte. Depois, com a declaração da rapper Karol Conká, em fevereiro deste ano, quando ainda participava do reality show Big Brother Brasil. Na ocasião, a cantora tinha que escolher quais participantes gostaria que estivessem com ela na final do programa e disse “vou manter esse pódio bem vulva, uma coisa bem mulher”, ao escolher a psicóloga Lumena Aleluia e a funkeira Pocah.
Nesse caso mais recente, Caê afirma que pretende formalizar uma denúncia no Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância), da Polícia Civil de São Paulo, sobre os ataques que sofreu.
“Toda a vez que eu vejo alguma transfobia seja qual for a mídia, eu me posiciono porque além de homem trans, eu sou jornalista”, pondera Caê sobre a necessidade de discutir sobre gênero e como abordar a questão também na imprensa, que acaba sendo uma plataforma de conhecimento para a sociedade. “São sempre os termos de ‘nasceu no corpo errado’, ‘era menina e virou menino’, se falam de gravidez, é associado sempre como algo da mulher como se um homem trans ou uma pessoa transmasculina não engravidasse”, exemplifica.
E podem engravidar. Em agosto do ano passado, a Ponte contou a história do empreendedor social Noah Scheffel, que teve uma filha antes da transição e um filho depois da transição de gênero, e do casal formado pelo homem trans Apollo Arantes e pela travesti Amanda Palha, que tiveram uma filha.
Ou seja, não é obrigatório que pessoas trans façam cirurgia de redesignação sexual (procedimento cirúrgico que algumas pessoas trans fazem para adequar seu corpo às genitálias do gênero de identificação) ou se submetam a terapia hormonal para que sejam, no caso de homens trans, considerados homens. Há homens trans que têm vagina, vulva e útero. “Nós, pessoas trans, pessoas transmasculinas, pessoas não-binárias com vagina, também menstruamos”, enfatiza Caê.
Por causa da invisibilização dessas possibilidades de corpos, a garantia de direitos como acesso à saúde acaba sendo violada e os profissionais da saúde também acabam não sabendo como lidar com as demandas dessa população. Caê conta que passou a usar post-its em papéis de exames informando o pronome a ser usado para que não fosse tratado no feminino durante as consultas. “A ginecologia é extremamente ligada ao universo feminino e a gente vê que meninos trans, pessoas transmasculinas com vagina, sofrem violência obstétrica, médica, porque ou você não é atendido porque tem um nome masculino no seu documento ou não querem atender porque não sabem como atender, sendo que a minha buceta é igual a de qualquer outra mulher cisgênera [que nasceu e se identifica com o gênero feminino]”.
A ginecologista e obstetra Ana Thais Vargas, que começou a atender essa população em 2016 a partir do contato com o centro de acolhida Casa 1, afirma que teve que estudar e buscar informação por conta própria. “A gente não aprende absolutamente nada na nossa formação para o público LGBT”, critica.
De acordo com ela, as principais demandas que recebe são sobre hormonização, anticoncepção e alterações menstruais. Cada corpo funciona de uma forma, por isso o acompanhamento médico multidisciplinar é importante, com integração profissionais como endócrino (no caso de aplicação de hormônios), psiquiatra e psicólogo. Leia aqui as cartilhas da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) sobre como acessar equipamentos do SUS (Sistema Único de Saúde) para questões de transição, como prevenir infecções sexualmente transmissíveis e demais cuidados de saúde para a população trans.
Durante a terapia hormonal, o uso de testosterona (hormônio masculino), por exemplo, acaba bloqueando a menstruação, mas não inibe totalmente que a pessoa engravide. Além disso, também é importante se cuidar contra ISTs (infecções sexualmente transmissíveis). “Com o uso da testosterona, deixa-se de produzir hormônio feminino, o ovário para de trabalhar e a menstruação para de vir, mas pode haver algum hormônio feminino ‘escondido’ que gera a ovulação [progesterona]”, explica Ana Thais. “Já a pessoa que quer gestar, a gente para o tratamento hormonal, o ovário volta a funcionar e ela pode engravidar”, prossegue.
De acordo com ela, para uma forma mais inclusiva de se referir à menstruação, ao invés de se usar “biologia feminina” é dizer “processo fisiológico que acontece em pessoas com vagina e útero”. Perguntada sobre como melhorar o atendimento médico para a população trans, a ginecologista é enfática: “é preciso ouvir de verdade o paciente, e não só escutar e continuar chamando a pessoa de forma errada, e perguntar, ser claro e direto, procurar estudar, se informar”.
A Ponte procurou a assessoria de imprensa do Conselho Federal de Medicina e questionou se é realizada algum tipo de capacitação a profissionais para atendimento ginecológico e urológico à população transgênero, mas até a publicação não houve resposta.
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Foto de capa: Marcha do Orgulho Trans realizada em junho de 2018 em SP | Daniel Arroyo/Ponte