Por Alcir Pécora
Miss Macunaíma”, de Alexandre Rabelo, é livro prolixo, com partes e procedimentos diversos. O mais evidente deles é usar personagens de “Macunaíma – o Herói sem Nenhum Caráter”, de Mário de Andrade, para recontar o sentido da obra.
Não é o primeiro a fazê-lo. Em 2017, Valquíria Carozze publicou “Mário, Modernista a Caráter”, um romance-paródia no qual o próprio Macunaíma vem dizer o que pensa do seu autor, e, para isso, cria cartas que fariam parte da correspondência de Mário.
Com escopo distinto, é também o que faz Rabelo: recria as cartas colocando no centro delas a mágoa de Mário com o parceiro modernista, Oswald de Andrade, que faria piadas preconceituosas sobre a sua homossexualidade e ainda sobre a sua origem pobre e negra.
O labéu de “Miss Macunaíma” é sacado de um texto da Revista de Antropofagia, de 1929, com a entrevista fictícia de certa “tapuya”, “a mais genuína representante da antropofagia feminina no Brasil”, que Mário teria interpretado como uma tentativa de Oswald de ridicularizá-lo.
O assunto da sexualidade de Mário não é novo. Até admira quanta atenção já mereceu dos jornais, a ponto de parecer a única “revelação” a buscar-se nas cartas guardadas por arquivos importantes como o IEB-USP e a Casa de Rui Barbosa. E quando elas, de fato, confessam menos do que se gostaria, os próprios arquivos são acusados de ocultamento de provas. É o que evidencia Marcos Moraes, um dos maiores estudiosos da correspondência de Mário.
No caso do romance de Rabelo, diante da falta da carta real de confissão, ele mesmo a providencia. Dirigida a um “querido e abusado Sergio”, confeiteiro negro da Liberdade, a carta fictícia descreve um encontro em que Mário lhe fez sexo oral na rua, e outro em que transam num motel (“Desci até o talo e acariciei o saco”) e até beijam na boca, “proibição máxima”.
O relato das preocupações de Sergio com os efeitos dos seus dotes, ternamente tranquilizadas por Mário, é um must da estética kitsch (“Você teve medo de me arregaçar, como se nunca se houvesse se acostumado com o próprio tamanho, como se por ser grande não fosse macio”).
O romance também inventa outras cartas escritas por Mário nos dez últimos dias antes de sua morte, em 25 de fevereiro de 1945, tendo destinatários como Bandeira, Tarsila e Oswald, os quais, nessa época, não mais figuravam como seus interlocutores principais. Claro, trata-se de ficção e não de história, mas fica evidente que o romance prefere destinatários célebres ao tratar de um assunto “tabu”.
No conjunto das cartas criadas, tanto Mário está valorizado como gay, de origem pobre e preta, como Oswald está vilanizado como racista, homofóbico e zeloso dos privilégios da elite. Assim, o primeiro declara ao segundo que “o chiste, o deboche, a crítica feroz, o sarcasmo, o cinismo, o ódio” são reação contra quem confronta “seus ideais de sala europeias” e “mimos de uma classe que não se conforma em perder com essa crise”.
Já nas cartas reais que Mário escreveu em 1945, as suas preocupações são outras: o Congresso dos Escritores, a confecção de “O Carro da Miséria” e “Meditação sobre o Tietê”, o lançamento de suas “Obras Completas”, o prefácio do livro de Chostakovitch, o “pavor” da morte etc., tendo Guilherme de Figueiredo e Murilo Miranda como correspondentes mais assíduos.
Se houver aí alguma unidade, não se dá em torno da sua sexualidade, mas sim de suas posições políticas, de sua consagração literária e dos cuidados com o seu legado intelectual ao país, aspectos todos dramatizados com a consciência de que, afinal, o escritor tem de assumir a sua “torre de marfim”, pois “não pode perder a sua profissão, se duplicando na profissão de político”.
As cartas reais de 1545 tampouco defendem identidade negra ou índia para o Brasil. Ironizando críticos estrangeiros, Mário escreve ao pintor Carlos Scliar: “Se esquecem que a nossa civilização é fundamentalmente europeia, e sonham com uma China ou uma África de quinze séculos atrás”. E acrescenta que, diante de obra brasileira, mesmo produzida na cidade, logo sentem o “perfume furioso da floresta virgem, o canto rouco dos índios em celebrações místicas, o diabo”.
Mas eu falei de romance prolixo. Além da invenção das cartas, o livro é composto de um pastiche bem feito de passagens relativas a Macunaíma; imagina-o como artista pioneiro a levar o picho para as galerias; monta uma colagem apoteótica com letras de música que vão do hino nacional até Marília Mendonça, a desfiar um rosário de misérias brasileiras, “em que todo mundo vai mamar nessa teta e iremos todos para casa do caralho”.
Há enfim um diálogo entre Roberto Piva e João Silvério Trevisan a representar o que Rabelo supõe ser uma “linhagem de escritores gays” a resistir “à boca suja de quem não gosta de nós”. Nem é preciso dizer mais para evidenciar que o talento humorístico de Rabelo invoca mais as lutas identitárias neste tempo de boçalidade bolsonarista triunfante do que uma leitura crítica verossímil de qualquer dos dois modernistas.
MISS MACUNAÍMA
Avaliação Bom
Preço R$ 69,90 (240 págs.)
Autor Alexandre Rabelo
Editora Record