A cidade onde a população pegou em armas para expulsar portugueses e lutar pela independência do Brasil em 1822 elegeu sua primeira prefeita negra no ano passado, 490 anos depois da sua fundação.
Mas o caminho não tem sido fácil para Eliana Gonzaga (Republicanos), 52, eleita no ano passado prefeita de Cachoeira, cidade histórica do Recôncavo Baiano, derrotando grupos políticos tradicionais da região.
Na campanha eleitoral, ela foi alvo de ataques racistas em redes sociais. Dias após sua vitória, dois de seus principais aliados políticos foram assassinados em crimes com fortes indícios de execução. Por fim, ela passou a receber ameaças de morte e avisos para que renuncie ao cargo.
Filha de feirantes, Eliana começou a trabalhar cedo, ajudando os pais no mercado municipal de Cachoeira. Na juventude, aproximou-se da política por meio do sindicato de trabalhadores de agricultura familiar.
“Desde então, venho fazendo esse trabalho de formiguinha com políticas para evitar o êxodo rural e enfrentando fazendeiros para garantir do direito à terra”, afirma Eliana.
Disputou seu primeiro mandato eletivo em 2008, quando foi eleita vereadora. Reelegeu-se em 2012 e quatro anos depois foi candidata à vice-prefeita, sendo derrotada.
Em 2020, decidiu concorrer à prefeitura em uma ampla coligação de partidos de oposição ao prefeito Tato Pereira (PSD), que disputava a reeleição. A campanha foi agressiva e marcada por ataques racistas em textos que circulavam em grupos locais em um aplicativo de mensagens.
Mesmo assim, venceu as eleições para prefeitura de forma surpreendente, colocando fim a um ciclo de 16 anos de governos da família Pereira, um dos clãs mais tradicionais da cidade de 33 mil habitantes.
Mas não conseguiu sequer comemorar a vitória. Dois dias depois da eleição, seu aliado e cabo eleitoral Ivan Passos foi brutalmente assassinado em Cachoeira. “Ele foi abatido com dez tiros, mesmo número do meu partido. O recado foi dado”, afirma a prefeita.
Nos dias seguintes, começou a circular na cidade uma lista com possíveis novas vítimas, que incluía familiares da prefeita e seus aliados políticos mais próximos. Temerosa, tirou várias pessoas da cidade e as enviou para Salvador, onde ficaram hospedadas na casa de amigos.
Uma delas foi Georlando Silva, aliado que foi candidato vereador pelo mesmo partido da prefeita. Em vídeo gravado ainda em abril de 2020, ele conta que estava recebendo ameaças de opositores.
Georlando voltou para Cachoeira no dia 30 de dezembro, nas vésperas da posse de Eliana como prefeita. Foi nomeado coordenador de obras da prefeitura, mas acabou sendo assassinado no dia 7 de março com 19 tiros no rosto. “Foi um crime muito macabro, chocou toda a cidade”, lembra Eliana.
A própria prefeita já vinha recebendo ameaças veladas desde a sua vitória. Antes mesmo de tomar posse, recebeu um telefonema em que uma rajada de arma de fogo foi disparada do outro lado da linha. Desde então, passou a andar com escolta armada e carro blindado.
No início deste mês, ela foi intimidada por homens em uma motocicleta enquanto participava de uma ação de vacinação para Covid-19 em um drive-thru na cidade. Eles fugiram após perceberem a presença de policiais no local.
Nesta terça-feira (21), um grupo de 56 entidades do movimento negro e sindical emitiram uma nota de solidariedade à prefeita e cobraram apuração rígida do caso pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia.
“Consideramos um absurdo inaceitável que uma mulher negra democrática e legitimamente eleita seja mais uma vez alvo da violência de grupos autoritários e violentos que não aceitam a vontade de povo expressa pelo voto. Repudiamos as ameaças de mortes, os ataques racistas e misóginos”, diz a nota.
A Polícia Civil da Bahia informou que a denúncia de ameaça contra a prefeita foi registrada em dezembro de 2020. Depoimentos de suspeitos foram colhidos, mas o teor não foi divulgado para evitar interferências nas investigações.
Eliana afirma que não pode dar informações sobre as motivações das ameaças, mas lembra que estas nunca aconteceram até o momento em que foi eleita prefeita da cidade. Diz que permanece no cargo e não cogita renunciar.
“Continuarei de pé porque sei que essa luta não é individual. Essa é uma luta coletiva que remete aos nossos ancestrais. O povo de Cachoeira não elegeu uma covarde. Vou ficar e fazer uma gestão de excelência.”
SALVADOR, BA (FOLHAPRESS)
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