Ativista e artista, Vicenta Perrotta produz roupas não binárias, fazendo um trabalho que chama de “transmutação têxtil”, criando uma peça a partir de uma vestimenta já existente, trabalhando temas como desconstrução, descarte, acúmulo e precaridade.
Uma das coordenadoras do Ateliê TRANSmoras, um espaço de arte e cultura com renda destinada à pessoas transvestigêneres, ela também constrói residências artísticas no ateliê localizado na Moradia Estudantil da Unicamp. Foi nesse espaço que ela conheceu as integrantes da Rainha Kong , uma coletiva teatral de São Paulo que investiga novas linguagens e formas de se pensar o fazer teatral, performático e artístico.
Vicenta é a responsável pela composição do figurino da peça “Sarah e Hagar decidem matar Abraão”, peça que mescla a história contida no livro Gênesis com um futuro distópico, no qual é apresentada uma terra já habitada por bilhões de pessoas e tomada pelo lixo. “Estou adorando trabalhar com isso. Para mim está sendo uma outra experiência acompanhar uma produção de figurino desde o começo da escrita do projeto até a finalização da entrega da peça. É a minha primeira experiência completa, com pesquisa, proposta, ensaio, texto, iluminação… Construindo esse processo imagético mesmo”, conta Perrotta.
Escrita por Tiago Viudes e com direção de Diego Moschkovich, o texto procura retomar a fundação do patriarcado, de acordo com a bíblia. Para isso, a peça retoma o mito de Sarah, Hagar e Abraão, procurando outros ecos deste mito que não estejam sacramentados na perspectiva patriarcal com o qual ele é interpretado até hoje. Mais do que isso, a montagem traz a possibilidade dessa história ser narrada através da encenação de um elenco queer, interessado em romper com a perspectiva patriarcal, no teatro e no mundo.
A multiartista acredita que o convite para esse trabalho surgiu pelo seu histórico com a reconstrução e a quebra do pacto construído pelo capitalismo. “O meu trabalho tem muito a ver com isso, entender o que é descarte, o que é o lixo enquanto estereótipo e quebrar esse processo e reconstruir uma história. A gente pega esses restos, rasga e começa uma nova história”.
Suas criações buscam trazer um outro posicionamento intelectual e social. Uma roupa que não é roupa. Suas vestimentas abrem caminho para produzir um pensamento mais crítico e menos alienado. Essa abordagem conversa diretamente com a proposta do novo espetáculo da coletiva.
“A moda carrega muito o patriarcado, na imagética. Também é um pilar na construção do estereótipo. O que é moda? Eu acredito muito que eu não faço moda porque moda é esse processo mercadológico, industrializado, autoalienante. Meu trabalho quebra essa indústria, quebra esse processo. Eu proponho algo que desloque as pessoas do que é uma camisa. Quando a camisa tá no pé a gente desloca esse imaginário. Você vai olhar aquilo e aquilo vai te incomodar. Você vai se questionar. Esse é um dos processos mais importantes do que eu faço como trabalho e do que tá sendo proposto no figurino”.
As referências que ela buscou para a peça foram os povos do deserto e uma vontade de “quebrar tudo e contar uma nova história”. Vicenta também tem estudado muito o consumo de moda, a importância direta desse consumo na construção de estereótipos e sobre descarte e acúmulo. “Também quero [dialogar] com essa questão do texto que é bem acumulado de diálogo, acumulado de informação. Quero falar sobre o acúmulo, de lixão, do Deserto do Atacama que virou o acúmulo do descarte e desse processo do que chamamos de lixo”.
A peça “Sarah e Hagar decidem matar Abraão” estreia no dia 25/3 para pessoas convidadas e será aberta ao público no dia 26/3, no TUSP. 10% da lotação da sala é reservada gratuitamente para pessoas trans.
“Sarah e Hagar decidem matar Abraão”
A peça mescla a história contida no livro Gênesis com um futuro distópico, no qual é apresentada uma terra já habitada por bilhões de pessoas e tomada pelo lixo. Neste futuro distópico, são apresentadas as figuras de Fátima e Ishká. Ishká é uma senhora infértil, que não consegue gerar filhos para seu marido, Elias. No decorrer da narrativa, Ishká articula, junto de sua serva Fátima, a morte e o desmembramento de Elias, pois é só a partir desta ação que as duas podem aventar a possibilidade de saírem em busca do paraíso. A história de Fátima e Ishká serve, aqui, para tensionar o mito da bíblia a ponto de que a afirmação ‘Sarah e Hagar decidem matar Abraão’ seja possível.
SERVIÇO
O QUE? Temporada de Sarah e Hagar decidem matar Abraão
QUANDO? De 26/03 a 17/04
Quintas a sábados às 21h e domingos às 19h
estreia 25/03 fechada para convidados | temporada a partir de 26/03
ONDE? no Teatro da USP [TUSP] – R. Maria Antônia, 294 – Vila Buarque, São Paulo – SP
QUANTO? R$10,00 | R$5,00 [meia entrada]
10% da lotação da sala é reservada gratuitamente para pessoas trans [sujeito a lotação]
DURAÇÃO: 75 minutos
SOBRE A RAINHA KONG
Desde 2016, a RAINHA KONG investiga intersecções de diferentes linguagens artísticas a fim de discutir questões LGBTQIAP+ cenicamente. O coletivo, oriundo do curso de Artes Cênicas da Unicamp, se coloca em cena enquanto ato político de resistência, mas também questionando a construção de novas narrativas – a partir de histórias e corpos até então silenciados – na investigação e formatação de novas linguagens e formas de se pensar o fazer teatral, performático e artístico.
A primeira produção do coletivo, O Bebê de Tarlatana Rosa, reordena o conto homônimo de João do Rio, alocando-o em uma perspectiva queer, confluindo a narrativa do conto com depoimentos biodramáticos des integrantes do elenco. Além disso, a coletiva organizou diversos cursos e oficinas em parceria com diverses artistas e coletivos LGBTQIAP+ como a Casa1, Helena Vieira, Ave Terrena, Ferdinando Martins, Daniel Veiga, etc.
Foto de capa: Carla Carniel